Sunday 14 January 2007

AINDA O MIA COUTO...

"Mia Couto e O Exercício Da Humildade"

“É sempre assim que acontece na minha vida, quando percebo alguma coisa já é demasiado tarde.”

De todo modo, sua prosa de ficção hoje não é literatura de militância.


Couto: Certo. Esse foi um processo de tomada de consciência, por exemplo, que nasceu sempre em rupturas, em pequenos conflitos. Porque hoje eu tenho uma relação com essa militância já afastada, crítica, o que não quer dizer que não tenha essa militância. A dos outros mudou e a minha também, se calhar, mudou. E o primeiro livro de poesia que eu publiquei já foi numa briga, já foi numa zanga. Me irritava muito o fato de que toda poesia que falasse do eu, que falasse da intimidade fosse tida como uma poesia burguesa. E eu escrevi este primeiro livro em 1983, já como que em oposição a isto. Era uma poesia lírica e intimista, que falava do amor.

E a influência de Guimarães Rosa?


Couto: Primeiro tenho que falar de Luandino Vieira, o escritor angolano, que é o primeiro contato que eu tenho com alguém que escreve um português que é arrevesado, que está misturado com a terra. E Luandino marcou-me muito. Foi o primeiro sinal da autorização de como eu queria fazer. Eu sabia que eu queria fazer isso, mas eu precisava de uma credencial do mais velho que disse “esse caminho é abençoado”. E ele confessa que foi autorizado, também ele, por um outro, um tal João Guimarães Rosa que eu não conhecia, porque não chegavam aqui estes livros. Depois da Independência deixaram chegar livros do Brasil e é uma coisa irônica, do ponto de vista histórico.

O hino nacional de vocês está mudando exatamente agora, não é?


Couto: É. Está mudando agora. Tem uma história até muito engraçada. Em 1981, 1982, o presidente Samora, que era vivo na altura, pensou que o hino nacional não funcionava. Era um hino muito partidário. Começava por “viva, viva a Frelimo”. E ele tinha já a apreciação de que nem todos os moçambicanos seriam da Frelimo. Então, era preciso um hino que cobrisse os moçambicanos todos. Ele (Samora) colocou seis poetas e seis músicos numa casa, fechou-nos lá e disse “vocês têm que sair daqui com várias propostas de hinos feitas”. E fomos fechados numa casa aqui na Matola e aquilo era ótimo. (...) Eles (a Frelimo) vinham nos visitar para ver como era que estava sendo feito. E produzimos meia dúzia de hinos que ficaram ali e nunca mais foram aprovados. Agora, por causa do novo clima político que a partir de 1995 passou a existir, um clima de democracia aberta e multipartidarismo, passou a ser mesmo obrigatório que este país tivesse um outro hino. Pelo menos uma outra letra.

Qual a sua principal crítica ao partido?

Couto: Acho que a Frelimo passou a ter um discurso falseado, mascarado, com objetivos ainda socialistas quando eles todos já se tinham convertido em empresários de sucesso. Eu já não estou lá. Mas quando a Frelimo cantava era uma coisa que me fascinava. Lembro da primeira vez que eu vi Samora Machel, que era um deus para nós, nós endeusávamos aquele homem. Era nosso Guevara. E quando nós fomos como jornalistas ter com este homem na Tanzânia, no percurso, todos nós íamos pensando em como íamos impressionar aquele homem. Queríamos que ele gostasse de nós. E cada um pensava no que dizer: “olha, eu sei parte dos discursos dele de cor, eu sei citar coisas da Frelimo”. E quando chegamos ao pé dele, a grande impressão que eu tive é que ele era um homem de um grande magnetismo, uma pessoa que exalava esta aura, e era muito pequenino, baixinho, com uma grande energia. E a primeira pergunta que ele nos fez foi “algum de vocês sabe cantar?”. E nós não sabíamos. Como intelectuais sabíamos fazer coisas políticas etc. Esta coisa depois me fez pensar. Ele nos disse: ‘como é possível um homem que não sabe cantar, que não sabe dançar nada? Como é que vocês podem ser pessoas se não sabem cantar nem dançar? O que é que sabem fazer?” Então, nós sabíamos fazer coisas que, de fato, eram um pouco chatas, não é? Um pouco aborrecidas. E este era o grande fascínio, a Frelimo cantava.

Havia muitos brancos nesse grupo da sua geração?

Couto: Eu sempre fui um dos poucos brancos. Os brancos neste país sempre foram uma minoria que não conta.

Na época da crise mais intensa, você era discriminado? Seus pais são portugueses?

Couto: Meus pais são portugueses. O racismo colonial era contra os mulatos, e os pretos. Eu era tido como branco de segunda, porque nasci aqui. Eu não tinha acesso a certas funções no governo colonial. Meus pais eram brancos de primeira, e eu era branco de segunda. Meus filhos seriam brancos de terceira, e aquilo estava hierarquizado. Era um sistema que discriminava mais os pretos. (...) Depois da Independência, eu nunca fui objeto de racismo, nunca fui discriminado assim. No cotidiano, não sinto. Esqueço-me da minha raça. (...) Também tem uma grande força aquilo que falamos ontem, o modelo americano da ação afirmativa.

Isso tem força?

Couto: Tem força em alguns momentos. Não é uma política oficial, como é, por exemplo na África do Sul, mas tem. É usado como argumento quando é preciso.

Você concorda com essa política?

Couto: Eu, não. Eu não sei pensar essa política lá no lugar onde ela nasceu. Aparentemente ela nasce com propósitos completamente diferentes dos que estão sendo usados ou aplicados aqui. A ação afirmativa nasce para impor direitos de minorias. Aqui é usado pelo direito da maioria. O que é uma coisa estranha. Por exemplo, o rap, que é um movimento de revolta contra quem está no poder aqui tem tanta força porque mesmo os que estão no poder, sendo pretos, são brancos. Neste sentido de que as pessoas que se sentem excluídas culturalmente e para terem acesso a certa posição social têm que copiar, têm que falar português, por exemplo. Tem que abdicar de sua cultura original e isso cria um sentimento de intranqüilidade. E no fim as pessoas acham legítimo um movimento de ação afirmativa porque estão lutando contra uma coisa que é quase fantasmagórica. Um movimento de ação afirmativa aqui devia defender a mim enquanto minoria, não é?

E por que o apelido "Mia"?

Couto: Por causa dos gatos. Eu era miúdo, tinha dois ou três anos e pensava que era um gato, comia com os gatos. Meus pais tinham que me puxar para o lado e me dizer que eu não era um gato. E isto ficou. Eu, lá fora, sou sempre esperado como preto ou como mulher. Certa vez, numa delegação do Samora Machel, que foi daqui visitar Fidel Castro, eu fui o único homem na vida a quem Fidel Castro deu saias e colares e brincos, pensando que eu era mulher. Ele deu prendas a todos, e a minha caixa. Isso me diverte. Essas questões de identidade me divertem muito, quer seja do sexo, quer seja da raça. Eu não tenho raça. Minha raça sou eu mesmo.

Ler o resto aqui.

"Mia Couto e O Exercício Da Humildade"

“É sempre assim que acontece na minha vida, quando percebo alguma coisa já é demasiado tarde.”

De todo modo, sua prosa de ficção hoje não é literatura de militância.


Couto: Certo. Esse foi um processo de tomada de consciência, por exemplo, que nasceu sempre em rupturas, em pequenos conflitos. Porque hoje eu tenho uma relação com essa militância já afastada, crítica, o que não quer dizer que não tenha essa militância. A dos outros mudou e a minha também, se calhar, mudou. E o primeiro livro de poesia que eu publiquei já foi numa briga, já foi numa zanga. Me irritava muito o fato de que toda poesia que falasse do eu, que falasse da intimidade fosse tida como uma poesia burguesa. E eu escrevi este primeiro livro em 1983, já como que em oposição a isto. Era uma poesia lírica e intimista, que falava do amor.

E a influência de Guimarães Rosa?


Couto: Primeiro tenho que falar de Luandino Vieira, o escritor angolano, que é o primeiro contato que eu tenho com alguém que escreve um português que é arrevesado, que está misturado com a terra. E Luandino marcou-me muito. Foi o primeiro sinal da autorização de como eu queria fazer. Eu sabia que eu queria fazer isso, mas eu precisava de uma credencial do mais velho que disse “esse caminho é abençoado”. E ele confessa que foi autorizado, também ele, por um outro, um tal João Guimarães Rosa que eu não conhecia, porque não chegavam aqui estes livros. Depois da Independência deixaram chegar livros do Brasil e é uma coisa irônica, do ponto de vista histórico.

O hino nacional de vocês está mudando exatamente agora, não é?


Couto: É. Está mudando agora. Tem uma história até muito engraçada. Em 1981, 1982, o presidente Samora, que era vivo na altura, pensou que o hino nacional não funcionava. Era um hino muito partidário. Começava por “viva, viva a Frelimo”. E ele tinha já a apreciação de que nem todos os moçambicanos seriam da Frelimo. Então, era preciso um hino que cobrisse os moçambicanos todos. Ele (Samora) colocou seis poetas e seis músicos numa casa, fechou-nos lá e disse “vocês têm que sair daqui com várias propostas de hinos feitas”. E fomos fechados numa casa aqui na Matola e aquilo era ótimo. (...) Eles (a Frelimo) vinham nos visitar para ver como era que estava sendo feito. E produzimos meia dúzia de hinos que ficaram ali e nunca mais foram aprovados. Agora, por causa do novo clima político que a partir de 1995 passou a existir, um clima de democracia aberta e multipartidarismo, passou a ser mesmo obrigatório que este país tivesse um outro hino. Pelo menos uma outra letra.

Qual a sua principal crítica ao partido?

Couto: Acho que a Frelimo passou a ter um discurso falseado, mascarado, com objetivos ainda socialistas quando eles todos já se tinham convertido em empresários de sucesso. Eu já não estou lá. Mas quando a Frelimo cantava era uma coisa que me fascinava. Lembro da primeira vez que eu vi Samora Machel, que era um deus para nós, nós endeusávamos aquele homem. Era nosso Guevara. E quando nós fomos como jornalistas ter com este homem na Tanzânia, no percurso, todos nós íamos pensando em como íamos impressionar aquele homem. Queríamos que ele gostasse de nós. E cada um pensava no que dizer: “olha, eu sei parte dos discursos dele de cor, eu sei citar coisas da Frelimo”. E quando chegamos ao pé dele, a grande impressão que eu tive é que ele era um homem de um grande magnetismo, uma pessoa que exalava esta aura, e era muito pequenino, baixinho, com uma grande energia. E a primeira pergunta que ele nos fez foi “algum de vocês sabe cantar?”. E nós não sabíamos. Como intelectuais sabíamos fazer coisas políticas etc. Esta coisa depois me fez pensar. Ele nos disse: ‘como é possível um homem que não sabe cantar, que não sabe dançar nada? Como é que vocês podem ser pessoas se não sabem cantar nem dançar? O que é que sabem fazer?” Então, nós sabíamos fazer coisas que, de fato, eram um pouco chatas, não é? Um pouco aborrecidas. E este era o grande fascínio, a Frelimo cantava.

Havia muitos brancos nesse grupo da sua geração?

Couto: Eu sempre fui um dos poucos brancos. Os brancos neste país sempre foram uma minoria que não conta.

Na época da crise mais intensa, você era discriminado? Seus pais são portugueses?

Couto: Meus pais são portugueses. O racismo colonial era contra os mulatos, e os pretos. Eu era tido como branco de segunda, porque nasci aqui. Eu não tinha acesso a certas funções no governo colonial. Meus pais eram brancos de primeira, e eu era branco de segunda. Meus filhos seriam brancos de terceira, e aquilo estava hierarquizado. Era um sistema que discriminava mais os pretos. (...) Depois da Independência, eu nunca fui objeto de racismo, nunca fui discriminado assim. No cotidiano, não sinto. Esqueço-me da minha raça. (...) Também tem uma grande força aquilo que falamos ontem, o modelo americano da ação afirmativa.

Isso tem força?

Couto: Tem força em alguns momentos. Não é uma política oficial, como é, por exemplo na África do Sul, mas tem. É usado como argumento quando é preciso.

Você concorda com essa política?

Couto: Eu, não. Eu não sei pensar essa política lá no lugar onde ela nasceu. Aparentemente ela nasce com propósitos completamente diferentes dos que estão sendo usados ou aplicados aqui. A ação afirmativa nasce para impor direitos de minorias. Aqui é usado pelo direito da maioria. O que é uma coisa estranha. Por exemplo, o rap, que é um movimento de revolta contra quem está no poder aqui tem tanta força porque mesmo os que estão no poder, sendo pretos, são brancos. Neste sentido de que as pessoas que se sentem excluídas culturalmente e para terem acesso a certa posição social têm que copiar, têm que falar português, por exemplo. Tem que abdicar de sua cultura original e isso cria um sentimento de intranqüilidade. E no fim as pessoas acham legítimo um movimento de ação afirmativa porque estão lutando contra uma coisa que é quase fantasmagórica. Um movimento de ação afirmativa aqui devia defender a mim enquanto minoria, não é?

E por que o apelido "Mia"?

Couto: Por causa dos gatos. Eu era miúdo, tinha dois ou três anos e pensava que era um gato, comia com os gatos. Meus pais tinham que me puxar para o lado e me dizer que eu não era um gato. E isto ficou. Eu, lá fora, sou sempre esperado como preto ou como mulher. Certa vez, numa delegação do Samora Machel, que foi daqui visitar Fidel Castro, eu fui o único homem na vida a quem Fidel Castro deu saias e colares e brincos, pensando que eu era mulher. Ele deu prendas a todos, e a minha caixa. Isso me diverte. Essas questões de identidade me divertem muito, quer seja do sexo, quer seja da raça. Eu não tenho raça. Minha raça sou eu mesmo.

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4 comments:

paulocosta said...

Blogue elegante, muito elegante.

Koluki said...

Muito obrigada pelo comentario e pela visita. Boa sorte para o seu novo blog!

Muadiê Maria said...

Muito boa a entrevista. Muita poesia em Mia.

Martha

Koluki said...

Querida Martha, seja bem vinda a esta casa!
De facto esta entrevista e' bastante reveladora sobre a vida e a personalidade do Mia. Tem toda a razao quanto a poesia, mas so' acho pena que a poesia publicada dele seja menos conhecida que a prosa (eu pelo menos nao a conheco).
Um abraco e volte sempre.