A Irresponsabilidade do Vazio

[Ou, Ignorancia Ou ... O Insustentavel Peso do ‘Nao Ser’]



"(...) Age was respected among his people, but achievement was revered. As the elders said, if a child washed his hands he could eat with kings. Okonkwo had clearly washed his hands and so he ate with kings and elders."
Biyi Bandele [in Introduction to Chinua Achebe's Things Fall Apart - Penguim, 2001 edition]

N.B.: Chinua Achebe started writing Things Fall Apart, his magnum opus published three years later, in 1958, which has earned him the title of 'The Grandfather of African Literature', at the age of 25.



Olhamos para os cantos
Buscando um espaço
Anunciado tempo de sonho
Em espiral
No percurso das veias
Já corroídas pelo vazio, raiz da loucura
Se não preenchido a tempo.

[Extracto de Canto dos Olhos – A.S. in S.O.S.]


Juro por Deus [e desde ja’ Lhe peco perdao por invocar assim o Seu nome em vao – e’ que, cada vez mais, vou dando por mim regressando ‘a minha fe’ em Deus (ou, mais precisamente, em Jesus, meu xara’), dos meus tempos de infancia e adolescencia: quanto menos vou acreditando nos homens (e mulheres) deste mundo, mais necessidade vou sentindo de ter Alguem em quem acreditar!... Embora continue a detestar homilias!...] que tinha decidido ha’ ja’ bastante tempo nao voltar a deixar-me arrastar em discussoes inocuas com “surdos-mudos”, especialmente os do tipo arrogante ignorante e/ou intelectualmente desonesto. De facto, comecei a implementar essa decisao de forma efectiva no inicio deste ano com este "Thought for the Year" e, em seguida, ao longo das ultimas semanas, com a retirada progressiva de todos os posts real ou potencialmente polemicos que neste blog publiquei, em particular os relacionados com uma certa tristemente celebre campanha

Neles se incluiam os que escrevi, ainda nos primordios deste blog, sob o titulo generico “Makas na Sanzala”, sobre algumas das “homilias” de Mia Couto (MC). Nao e’, portanto, sem alguma relutancia que me sinto compelida a voltar a escrever a proposito de mais uma delas – o que, muito a contragosto, me levou a ter que ‘repostar’ alguns dos posts relacionados que ja’ havia retirado. Ja’ ha’ muito nao recebia, por email, tais “homilias” – mais precisamente desde a que ficou mais conhecida pelo “sejamos claros” –, pelo que me desgostou sobremaneira voltar agora a receber mais uma dessas missivas em forma de “arma de arremesso” (transcrita no final deste texto)…

E’ entitulada “O Peso do Vazio” (o que me recorda uma outra, de Pepetela, entitulada “O Horror do Vazio” – e’, o vazio parece estar na moda!… Ja' agora, um outro 'tipo de vazio', o do bolso, pode ser encontrado aqui) e, de tao aparentemente aimless, soou-me, recorrendo ao rico vocabulario do seu mui distinto e consagrado autor, oca, bacoca, vazia e… irresponsavel!

Porque? Porque, como em praticamente todas as outras, ha’ nela referencias a “factos”, aparentemente observaveis e verossimeis, mas deles apenas emanam “argumentos” falaciosos e incongruentes e “conclusoes” especulativas – enfim, uma sucessao de non sequiturs, ou, para usar mais uma vez a proficua retorica de MC, um interessante embrulho de pensamentos (ou da sua ausência) num bonito invólucro de palavras, porem... sem qualquer substancia! – que, consequentemente, em nada contribuem para uma qualquer mudanca significativa do status quo que, supostamente, se pretende “denunciar”… Muito pelo contrario, apenas contribuem para o reforcar!

"...when we are comfortable and inattentive, we run the risk of committing grave injustices absentmindedly."
E’-me, portanto, relativamente facil passar ao largo de alguns desses “factos” e “argumentos” (mesmo porque nisso o autor me ajuda ao afirmar, a dado passo, que “Toda esta longa introdução vem a propósito de um outro jogo de aparências”) e referir-me apenas 'aqueles que mais directamente me levaram a tecer estas linhas – abrindo, contudo, uma pequena excepcao para o que diz a proposito das “praticas do sistema bancario”, sobre as quais me debrucei, em referencia especifica ao caso de Angola, ha’ ja’ algum tempo, aqui, e, ja’ agora, para certas “artistas muito profundas e com obras cheias de conteudo” como as referidas aqui , aqui, ou aqui… [...LOL!LOL!LOL!...]

Fala MC em algo como “gente que acumula cursos e se especializa em CVs”: eu poderia, embora com os caveats aqui apresentados, incluir-me entre alguma dessa gente, excepto no que toca ao “nao interessa o que realmente sabes fazer”, porque todos os empregadores citados no meu CV estao em condicoes de emitir, in bona fide, referencias atestando o que sei, ou sou capaz, ou nao, de fazer (exemplos disso podem ser encontrados aqui e aqui… - sendo de notar que as referencias profissionais transcritas neste ultimo link foram passadas em estrita confidencia a um na altura prospectivo novo empregador, sem o meu conhecimento e sem copia para mim. Seria posteriormente aquele novo empregador quem, perante circunstancias extraordinarias, viria a copia-las para mim, por email, para o meu conhecimento...).

"We cannot trample upon the humanity of others without devaluing our own. The Igbo, always practical, put it concretely in their proverb Onye ji onye n'ani ji onwe ya: "He who will hold another down in the mud must stay in the mud to keep him down."

Mas nao me deterei demasiado sobre isso, pelo que me ficarei por sugerir a MC que tente investigar, preferencialmente junto de alguma dessa gente, porque tem necessidade de o fazer… muito provavelmente chegaria a conclusao fundamentada de que, na maior parte dos casos, sera’ para preencher algum vazio – real ou induzido, pessoal ou social – nomeadamente o que e’ criado pela inexistencia nos “nossos paises” de estrategias coerentes de desenvolvimento sustentavel como as a que aqui recentemente me referi. Mas, ainda que nao fosse essa a razao de fundo, seria tal pratica “intrinsecamente desprovida de conteudo” como o autor pretende levar os seus (incautos?) leitores a “concluir”? Deixo a pergunta no ar… Sendo certo que, no que me possa pessoalmente dizer respeito, deixei registado pelo menos parte do que se me oferece dizer sobre esse tipo de questoes aqui.

[Abro aqui um parentesis apenas para dar o seguinte exemplo: como aqui ha’ tempos mencionei, para alem da contabilidade que tive que estudar como parte do curso de economia, fiz tambem um curso professional de contabilidade e viria depois a trabalhar durante algum tempo como contabilista em Portugal. Mas vejamos como, quando e porque eu me vi forcada (!) a fazer tal curso:

Foi numa altura em que, como alias em todo o periodo em que estive a estudar em Portugal, me via aflita to make ends meet, como dizem os anglofonos - entre pagamentos de renda, sustento do filho (sem um unico alfinete ou meio tostao furado alguma vez contribuido pelo pai dele, desde que ele nasceu...) e gastos com livros e materiais escolares para ambos, etc.

Ora, como tambem aqui ha' algum tempo referi, como pobre e insignificante criatura rejeitada e estudante bolseira do INABE, tive que me virar para poder sobreviver com a cabeca erguida - com alguma ocasional, porem minima, ajuda por parte de pessoas de boa vontade, como foi o caso de uma amiga assistente social que me facilitou o recurso, durante algum tempo, a uma magra assistencia monetaria da Santa Casa da Misericordia... Houve entao, nessa minha luta pela sobrevivencia, alguem numa instituicao a que fui pedir ajuda, que me disse, com lagrimas nos olhos, que achava que eu "estava a ser vitima de perseguicao politica" e que a melhor forma que encontrava na altura para me ajudar era conseguir-me um lugar num curso do Instituto do Emprego e Formacao Profissional, patrocinado pela UE, embora eu nao tivesse direito a faze-lo porque nao tinha nacionalidade portuguesa... e assim fui fazer o tal curso de contabilidade, a noite, depois das minhas aulas na universidade, apenas porque o curso era remunerado...

A questao que se coloca agora neste contexto e' a seguinte: teria eu, caso tivesse as bolsas e outros "facilitismos" que eram dados aos "filhos e filhas legitimos da patria", como aqui referi, alguma necessidade de "acumular" tal curso ao meu CV?!

Mas, sabia que... Fernando Pessoa foi contabilista?!

Fecho parentesis.]

“The whole idea of a stereotype is to simplify. Instead of going through the problem of all this great diversity - that it's this or maybe that - you have just one large statement; It is this.”

Fala tambem MC em “desenvolvimento sustentavel” como um “conceito vazio” ou "da moda": definitivamente, nao me proponho deter-me sobre tal boutade, pelo que me limitarei a sugerir, a quem possa estar interessado, as consideracoes que aqui ha’ ja’ quase 10 anos teci sobre o tema, ou, mais recentemente, aqui. O mesmo farei relativamente ao que diz sobre “workshops”, a alguns dos quais me referi aqui.

Ja’ sobre as “comunidades locais”, talvez me propusesse alongar-me um pouco mais, mas perante a forma leve (leviana) como a elas se refere (equiparando-as ao conceito do “bom selvagem de Rousseau”, o qual, de resto, parece fazer aqui as vezes dos tao vilipendiados “genuinos”, “indigenas”, “autoctones”, “aborigenes”, etc., noutras versoes do mesmo discurso… e, pior do que isso, associando-as a um statement tao amoral como este: "O esforço de idealização promovido quer pelos profetas do desenvolvimento quer pelos defensores dos fracos não confere com a realidade que é mais complexa e mundana"... - que, alias, me faz lembrar o certo "que mal fez a pobreza a alguem para ser combatida?!"...), “concluo” que apenas posso ter o seguinte a dizer: a maior parte das “comunidades locais” nos "nossos paises", em toda a probabilidade, nao leem os escritos de MC – nomeadamente, porque sao pobres, maioritaria, quando nao totalmente, iletradas, geralmente nao teem electricidade e livros e jornais nao sao propriamente os “produtos” de que se alimentam ou que mais facilmente chegam 'as suas “localidades” (e como aqui se pergunta, "e se ninguem produz o que e' que o parasita (o homem novo
?) - 'que vive de escrever livros e artigos que nao chegam as comunidades locais' - vai parasitar"?!) … por isso, os praticantes (interestingly enough, tal como eu aqui me referi a alguns dos 'ideologos' da "Cultura Africana Contemporanea", MC chama-lhes “tropas”, “missionarios” e “profetas”… ) do “desenvolvimento sustentavel” (tambem) tentam trabalhar directamente com elas, preenchendo assim o vazio deixado pela frequente e quase total ausencia do estado no apoio a essas comunidades e fazendo-o em alguns casos atraves de produtivos “workshops” (… repare-se que nao falo aqui de “talkshops” como sao todas as “homilias”…) com os seus representantes!

"...Let me say that I do think decency and civilization would insist that the writer take sides with the powerless. Clearly, there's no moral obligation to write in any particular way. But there is a moral obligation, I think, not to ally oneself with power against the powerless. I think an artist, in my definition of that word, would not be someone who takes sides with the emperor against his powerless subjects."

Lamento, portanto, ter que concluir que este tipo de “homilia” nao constitui, como parece pretender-se, “critica social”: trata-se, tao so’ e apenas, de “guerrilha psicologica politico-ideologico-propagandistica e revanchista anti-pessoal”, tao indiscriminada (e cobarde!) na sua (nao?) escolha “criteriosa” dos seus alvos como as minas terrestres anti-pessoais o sao – e, por isso, irresponsavel, imoral e... criminosa!

Tao pouco se trata de “debate de ideias” (o que, desde logo, vem implicito em “homilia”…), coisa alias a que quem, como MC, vem da escola marxista-leninista, ou stalinista totalitaria, ou post-colonial fascista, nao estara’ muito habituado: para uma nocao do que constitui verdadeiramente debate de ideias ver, por exemplo, aqui. Um outro exemplo, mais modesto, mas igualmente valido, poderia ser dado pela serie “Fogo Cruzado” do 'defunto' Semanario Angolense.

"In the vocabulary of certain radical theorists contradictions are given the status of some deadly disease to which their opponents alone can succumb. But contradictions are the very stuff of life. If there had been a little dash of contradiction among the Gadarene swine some of them might have been saved from drowning."

Ha’ criticas a fazer-se 'aquela que tambem e’ designada “industria do desenvolvimento”? Certamente! E, por acaso, posso incluir-me (sendo este, ou este, apenas dois exemplos disso) entre alguns dos que ha’ muito as venhem fazendo por dentro, na teoria e na pratica, e… por isso tenho pago (muito!) alto o preco! E tambem por isso permito-me o atrevimento de me julgar capaz de discernir entre “critica sustentavel” com argumentos solidamente fundados na realidade concreta e o mero “bota abaixo” ou “deitar fora a agua do banho com o bebe” just for the sake of it, ou para se servirem obscuras agendas politico-ideologicas, por pura ignorancia, racismo, ressentimento, ociosidade, diletantismo, narcisismo, ressaibo, ou apenas para preencher um qualquer vazio no ego (ou, dito de outro modo, no 'nao ser') do seu autor… sorry about that!

Finalmente, como ja’ vem sendo recorrente neste tipo de “guerrilha” de baixo coturno ou, talvez melhor dito, guerra suja, para a tornar mais “sustentavel”, “efectiva”, “credivel” e, sobretudo, “acima de qualquer suspeita de racismo” (vejam-se, a esse proposito, outros exemplos desse expediente aqui e aqui), MC roga por um certo "salvar Africa dos Africanos" de que se fala no fim deste post e, em seguida, recorre (em desespero de causa?) a uma citacao de um intelectual Africano Negro: “Quanto teremos que dar razão ao grande escritor Chinua Achebe quando disse, na carta que escreveu a Agostinho Neto: “O riso sinistro dos reis idiotas de África que, da varanda dos seus palácios de ouro, contemplam a chacina dos seus próprios povos?” …

Nao, excelentissimo e doutissimo MC, nao se tratou de uma carta, mas do poema que Achebe, que nunca chegou a conhecer Agostinho Neto pessoalmente, escreveu, em 1981, expressamente para um numero especial da revista Okike, da qual foi editor-fundador, dedicado a memoria do primeiro Presidente de Angola, entao falecido dois anos antes. E essa passagem pode ser encontrada na seguinte estrofe daquele poema (transcrito integralmente aqui e tambem aqui, onde o postei ja' ha' mais de tres anos... e, ja' agora, note-se como MC evita os dois primeiros versos e amputa o terceiro...):

For I have seen how
Half a millennium of alien rape
And murder can stamp a smile
On the vacant face of the fool,
The sinister grin of Africa's idiot-kings
Who oversee in obscene palaces of gold
The butchery of their own people.

Claro que, tratando-se de um poema laudatorio, nao se esperaria que Achebe se estivesse a referir a “chacina que se seguiu ao 27 de Maio de 1977” em Angola, assumindo-se a hipotese (pouco provavel) de que dela tivesse conhecimento na altura… mas apetece perguntar:

i) Sera’ que MC reve as motivacoes da sua "guerrilha anti-pessoal" e o seu mui peculiar, prosaico e mundano revisionismo historico neste poema  de Agostinho Neto?

ii) Sera’ que MC tem nocao de que, Chinua Achebe, de etnia Igbo e, a seu tempo, alto dignitario do Biafra*, noutras circunstancias poderia ter dirigido precisamente essa passagem do seu poema (e especialmente as palavras que se seguem ao "For I have seen how..." que invocam a sua vivida e observada experiencia do Biafra) tanto a Agostinho Neto como a Jose’ Eduardo dos Santos, tal como hipoteticamente o faria qualquer outro intelectual que fosse proximo da causa da Jamba de Jonas Savimbi?

Quaisquer que sejam as respostas, tal como as citacoes com que venho intercalando este texto, foi tambem o grande escritor Chinua Achebe quem escreveu o seguinte:

"The white man is very clever. He came quietly and peaceably with his religion. We were amused at his foolishness and allowed him to stay. Now he has won our brothers, and our clan can no longer act like one. He has put a knife on the things that held us together and we have fallen apart."

(Chinua Achebe, in Things Fall Apart)

I rest my case.





*[Para uma leitura contemporanea da historia do Biafra e das suas “comunidades locais”, veja-se Half of a Yellow Sun de Chimamanda Ngozi Adichie , tambem ela Igbo e 'descendente politica, cultural e literaria' de Achebe - sera' de notar, em particular, como nessa obra, em um dos relatos dos massacres indiscriminados de Igbos que precederam a secessao e a guerra do Biafra, ela descreve episodios de "xiboletismo" como os ocorridos durante a Sexta Feira Sangrenta em Luanda. Outra observacao digna de nota e' que o simbolo do 'half of a yellow sun' da bandeira do Biafra era o equivalente ao do 'meio-sol vermelho e galo negro' da bandeira da UNITA...]


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O peso do vazio

Mia Couto


As próprias letras das canções e os respectivos vídeo-clipes são um culto da ostentação oca e bacoca. Meninos de fatos italianos, cheios de penteados (a mostrar que lhes pesa mais o cabelo que a cabeça) e com dourados a pender dos dedos, dos dedos e do pescoço (a mostrar que precisam apenas de mostrar), meninos que cantam pouco e se repetem até à exaustão, fazem o culto deste vazio triste...

Durante anos, o sistema bancário esteve vendendo vazios. Durante esse tempo a arte esteve no empacotar esse vácuo. Esse cultivo da aparência em substituição da substância invadiu as nossas sociedades, no Norte e no Sul do planeta. Esse fascínio pelo brilho exterior estende-se a todos os domínios. Não interessa tanto quem sejas. Interessa o que vestes e como te vendes. Não interessa o que realmente sabes fazer. Interessa a arte de elaborar CVs, de acumular cursos e de te saberes colocar na montra. Não interessa o que pensas. Interessa como embrulhas o pensamento (ou a sua ausência) num bonito invólucro de palavras. Não interessa, no caso de seres governante, como governas e como produzes riqueza para a sociedade. Interessa a pompa e a circunstância. Em suma, o que pesa é o vazio.

Nas artes, o espectáculo tomou conta dessa generalizada ausência de conteúdo. Pouco importa a voz da cantora. Quem escuta a desafinação se ela rebola os quadris com sedução de gata? Quem disse que uma boa cantora tem que cantar? Numa nação em que pouco dinheiro pode salvar vidas, patrocínios chorudos foram aplicados em programas mediáticos de procura do rosto mais bonito, do corpo mais bonito.

As próprias letras das canções e os respectivos vídeo-clipes são um culto da ostentação oca e bacoca. Meninos de fatos italianos, cheios de penteados (a mostrar que lhes pesa mais o cabelo que a cabeça) e com dourados a pender dos dedos, dos dedos e do pescoço (a mostrar que precisam apenas de mostrar), meninos que cantam pouco e se repetem até à exaustão, fazem o culto deste vazio triste em que o que brilha é falso e o que é verdadeiro é mentira. Que valores se veiculam? O carro de luxo (dado pelo papá), a vida fútil, a riqueza fácil. Ai, pátria amada quanto te amam de verdade? Ai, África odiado quanto desse ódio te foi dedicado pelos próprios africanos? Quanto teremos que dar razão ao grande escritor Chinua Achebe quando disse, na carta que escreveu a Agostinho Neto: “O riso sinistro dos reis idiotas de África que, da varanda dos seus palácios de ouro, contemplam a chacina dos seus próprios povos?”

Essa substituição do conteúdo pobre pela forma e pelo aparato pobre faz parte da nossa cultura de empreendedores instantâneos. Há que criar uma empresa? O melhor é que ela não produza nada. Produzir é uma grande chatice, custa tempo e dá muito trabalho. O que está é o lobby, a compra e venda de influências, é ser empresário de sucesso sobretudo porque esse sucesso vem de ser filho de alguém. Para a empresa ser de “peso” há que se gastar tudo na fachada, no cartão de visita, na sala de recepção.

Toda esta longa introdução vem a propósito de um outro jogo de aparências. O acto de pensar foi dispensado pelo uso mecânico de uma linguagem de moda. Já falei de workshops como um espécie de idioma que preenche e legitima a proliferação de seminários, workshops e conferências que pululam de forma tão improdutiva pelo mundo inteiro. Existem termos de moda como “o desenvolvimento sustentável”. Um desses termos mágicos que dispensa qualquer tipo de raciocínio e que cauciona qualquer juízo moral ou proposta política é a expressão “comunidade local”.

Mas aqui surge uma outra operação: por artes inexplicáveis as chamadas “comunidades locais” são entendidas como agrupamentos puros, inocentes e portadores de valores sagrados. As comunidades rejeitam? Então, nada se faz. As comunidades queixam-se? É preciso compensá-las, de imediato, sem necessidade de produzir prova. As comunidades surgem como entidades fora deste mundo e olhadas como um bálsamo purificador por um certo paternalismo das chamadas potências desenvolvidas.

As comunidades estão acima de qualquer suspeita, são incorruptíveis e têm uma visão infalível sobre os destinos da humanidade. É assim que pensam uns tantos missionários dessa nova religião que se chama “desenvolvimento”. Uma tropa de associações cívicas, organizações não governamentais servem-se desse conceito santificado e santificante. Essa entidade pura não existe. Felizmente. O que há são entidades humanas, com os defeitos e as virtudes de todas as entidades compostas por pessoas reais.

O esforço de idealização promovido quer pelos profetas do desenvolvimento quer pelos defensores dos fracos não confere com a realidade que é mais complexa e mundana. O bom selvagem defendido por Rosseau nunca foi nem “bom”, nem “selvagem”. Foi simplesmente pessoa.

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[Ou, Ignorancia Ou ... O Insustentavel Peso do ‘Nao Ser’]



"(...) Age was respected among his people, but achievement was revered. As the elders said, if a child washed his hands he could eat with kings. Okonkwo had clearly washed his hands and so he ate with kings and elders."
Biyi Bandele [in Introduction to Chinua Achebe's Things Fall Apart - Penguim, 2001 edition]

N.B.: Chinua Achebe started writing Things Fall Apart, his magnum opus published three years later, in 1958, which has earned him the title of 'The Grandfather of African Literature', at the age of 25.



Olhamos para os cantos
Buscando um espaço
Anunciado tempo de sonho
Em espiral
No percurso das veias
Já corroídas pelo vazio, raiz da loucura
Se não preenchido a tempo.

[Extracto de Canto dos Olhos – A.S. in S.O.S.]


Juro por Deus [e desde ja’ Lhe peco perdao por invocar assim o Seu nome em vao – e’ que, cada vez mais, vou dando por mim regressando ‘a minha fe’ em Deus (ou, mais precisamente, em Jesus, meu xara’), dos meus tempos de infancia e adolescencia: quanto menos vou acreditando nos homens (e mulheres) deste mundo, mais necessidade vou sentindo de ter Alguem em quem acreditar!... Embora continue a detestar homilias!...] que tinha decidido ha’ ja’ bastante tempo nao voltar a deixar-me arrastar em discussoes inocuas com “surdos-mudos”, especialmente os do tipo arrogante ignorante e/ou intelectualmente desonesto. De facto, comecei a implementar essa decisao de forma efectiva no inicio deste ano com este "Thought for the Year" e, em seguida, ao longo das ultimas semanas, com a retirada progressiva de todos os posts real ou potencialmente polemicos que neste blog publiquei, em particular os relacionados com uma certa tristemente celebre campanha

Neles se incluiam os que escrevi, ainda nos primordios deste blog, sob o titulo generico “Makas na Sanzala”, sobre algumas das “homilias” de Mia Couto (MC). Nao e’, portanto, sem alguma relutancia que me sinto compelida a voltar a escrever a proposito de mais uma delas – o que, muito a contragosto, me levou a ter que ‘repostar’ alguns dos posts relacionados que ja’ havia retirado. Ja’ ha’ muito nao recebia, por email, tais “homilias” – mais precisamente desde a que ficou mais conhecida pelo “sejamos claros” –, pelo que me desgostou sobremaneira voltar agora a receber mais uma dessas missivas em forma de “arma de arremesso” (transcrita no final deste texto)…

E’ entitulada “O Peso do Vazio” (o que me recorda uma outra, de Pepetela, entitulada “O Horror do Vazio” – e’, o vazio parece estar na moda!… Ja' agora, um outro 'tipo de vazio', o do bolso, pode ser encontrado aqui) e, de tao aparentemente aimless, soou-me, recorrendo ao rico vocabulario do seu mui distinto e consagrado autor, oca, bacoca, vazia e… irresponsavel!

Porque? Porque, como em praticamente todas as outras, ha’ nela referencias a “factos”, aparentemente observaveis e verossimeis, mas deles apenas emanam “argumentos” falaciosos e incongruentes e “conclusoes” especulativas – enfim, uma sucessao de non sequiturs, ou, para usar mais uma vez a proficua retorica de MC, um interessante embrulho de pensamentos (ou da sua ausência) num bonito invólucro de palavras, porem... sem qualquer substancia! – que, consequentemente, em nada contribuem para uma qualquer mudanca significativa do status quo que, supostamente, se pretende “denunciar”… Muito pelo contrario, apenas contribuem para o reforcar!

"...when we are comfortable and inattentive, we run the risk of committing grave injustices absentmindedly."
E’-me, portanto, relativamente facil passar ao largo de alguns desses “factos” e “argumentos” (mesmo porque nisso o autor me ajuda ao afirmar, a dado passo, que “Toda esta longa introdução vem a propósito de um outro jogo de aparências”) e referir-me apenas 'aqueles que mais directamente me levaram a tecer estas linhas – abrindo, contudo, uma pequena excepcao para o que diz a proposito das “praticas do sistema bancario”, sobre as quais me debrucei, em referencia especifica ao caso de Angola, ha’ ja’ algum tempo, aqui, e, ja’ agora, para certas “artistas muito profundas e com obras cheias de conteudo” como as referidas aqui , aqui, ou aqui… [...LOL!LOL!LOL!...]

Fala MC em algo como “gente que acumula cursos e se especializa em CVs”: eu poderia, embora com os caveats aqui apresentados, incluir-me entre alguma dessa gente, excepto no que toca ao “nao interessa o que realmente sabes fazer”, porque todos os empregadores citados no meu CV estao em condicoes de emitir, in bona fide, referencias atestando o que sei, ou sou capaz, ou nao, de fazer (exemplos disso podem ser encontrados aqui e aqui… - sendo de notar que as referencias profissionais transcritas neste ultimo link foram passadas em estrita confidencia a um na altura prospectivo novo empregador, sem o meu conhecimento e sem copia para mim. Seria posteriormente aquele novo empregador quem, perante circunstancias extraordinarias, viria a copia-las para mim, por email, para o meu conhecimento...).

"We cannot trample upon the humanity of others without devaluing our own. The Igbo, always practical, put it concretely in their proverb Onye ji onye n'ani ji onwe ya: "He who will hold another down in the mud must stay in the mud to keep him down."

Mas nao me deterei demasiado sobre isso, pelo que me ficarei por sugerir a MC que tente investigar, preferencialmente junto de alguma dessa gente, porque tem necessidade de o fazer… muito provavelmente chegaria a conclusao fundamentada de que, na maior parte dos casos, sera’ para preencher algum vazio – real ou induzido, pessoal ou social – nomeadamente o que e’ criado pela inexistencia nos “nossos paises” de estrategias coerentes de desenvolvimento sustentavel como as a que aqui recentemente me referi. Mas, ainda que nao fosse essa a razao de fundo, seria tal pratica “intrinsecamente desprovida de conteudo” como o autor pretende levar os seus (incautos?) leitores a “concluir”? Deixo a pergunta no ar… Sendo certo que, no que me possa pessoalmente dizer respeito, deixei registado pelo menos parte do que se me oferece dizer sobre esse tipo de questoes aqui.

[Abro aqui um parentesis apenas para dar o seguinte exemplo: como aqui ha’ tempos mencionei, para alem da contabilidade que tive que estudar como parte do curso de economia, fiz tambem um curso professional de contabilidade e viria depois a trabalhar durante algum tempo como contabilista em Portugal. Mas vejamos como, quando e porque eu me vi forcada (!) a fazer tal curso:

Foi numa altura em que, como alias em todo o periodo em que estive a estudar em Portugal, me via aflita to make ends meet, como dizem os anglofonos - entre pagamentos de renda, sustento do filho (sem um unico alfinete ou meio tostao furado alguma vez contribuido pelo pai dele, desde que ele nasceu...) e gastos com livros e materiais escolares para ambos, etc.

Ora, como tambem aqui ha' algum tempo referi, como pobre e insignificante criatura rejeitada e estudante bolseira do INABE, tive que me virar para poder sobreviver com a cabeca erguida - com alguma ocasional, porem minima, ajuda por parte de pessoas de boa vontade, como foi o caso de uma amiga assistente social que me facilitou o recurso, durante algum tempo, a uma magra assistencia monetaria da Santa Casa da Misericordia... Houve entao, nessa minha luta pela sobrevivencia, alguem numa instituicao a que fui pedir ajuda, que me disse, com lagrimas nos olhos, que achava que eu "estava a ser vitima de perseguicao politica" e que a melhor forma que encontrava na altura para me ajudar era conseguir-me um lugar num curso do Instituto do Emprego e Formacao Profissional, patrocinado pela UE, embora eu nao tivesse direito a faze-lo porque nao tinha nacionalidade portuguesa... e assim fui fazer o tal curso de contabilidade, a noite, depois das minhas aulas na universidade, apenas porque o curso era remunerado...

A questao que se coloca agora neste contexto e' a seguinte: teria eu, caso tivesse as bolsas e outros "facilitismos" que eram dados aos "filhos e filhas legitimos da patria", como aqui referi, alguma necessidade de "acumular" tal curso ao meu CV?!

Mas, sabia que... Fernando Pessoa foi contabilista?!

Fecho parentesis.]

“The whole idea of a stereotype is to simplify. Instead of going through the problem of all this great diversity - that it's this or maybe that - you have just one large statement; It is this.”

Fala tambem MC em “desenvolvimento sustentavel” como um “conceito vazio” ou "da moda": definitivamente, nao me proponho deter-me sobre tal boutade, pelo que me limitarei a sugerir, a quem possa estar interessado, as consideracoes que aqui ha’ ja’ quase 10 anos teci sobre o tema, ou, mais recentemente, aqui. O mesmo farei relativamente ao que diz sobre “workshops”, a alguns dos quais me referi aqui.

Ja’ sobre as “comunidades locais”, talvez me propusesse alongar-me um pouco mais, mas perante a forma leve (leviana) como a elas se refere (equiparando-as ao conceito do “bom selvagem de Rousseau”, o qual, de resto, parece fazer aqui as vezes dos tao vilipendiados “genuinos”, “indigenas”, “autoctones”, “aborigenes”, etc., noutras versoes do mesmo discurso… e, pior do que isso, associando-as a um statement tao amoral como este: "O esforço de idealização promovido quer pelos profetas do desenvolvimento quer pelos defensores dos fracos não confere com a realidade que é mais complexa e mundana"... - que, alias, me faz lembrar o certo "que mal fez a pobreza a alguem para ser combatida?!"...), “concluo” que apenas posso ter o seguinte a dizer: a maior parte das “comunidades locais” nos "nossos paises", em toda a probabilidade, nao leem os escritos de MC – nomeadamente, porque sao pobres, maioritaria, quando nao totalmente, iletradas, geralmente nao teem electricidade e livros e jornais nao sao propriamente os “produtos” de que se alimentam ou que mais facilmente chegam 'as suas “localidades” (e como aqui se pergunta, "e se ninguem produz o que e' que o parasita (o homem novo
?) - 'que vive de escrever livros e artigos que nao chegam as comunidades locais' - vai parasitar"?!) … por isso, os praticantes (interestingly enough, tal como eu aqui me referi a alguns dos 'ideologos' da "Cultura Africana Contemporanea", MC chama-lhes “tropas”, “missionarios” e “profetas”… ) do “desenvolvimento sustentavel” (tambem) tentam trabalhar directamente com elas, preenchendo assim o vazio deixado pela frequente e quase total ausencia do estado no apoio a essas comunidades e fazendo-o em alguns casos atraves de produtivos “workshops” (… repare-se que nao falo aqui de “talkshops” como sao todas as “homilias”…) com os seus representantes!

"...Let me say that I do think decency and civilization would insist that the writer take sides with the powerless. Clearly, there's no moral obligation to write in any particular way. But there is a moral obligation, I think, not to ally oneself with power against the powerless. I think an artist, in my definition of that word, would not be someone who takes sides with the emperor against his powerless subjects."

Lamento, portanto, ter que concluir que este tipo de “homilia” nao constitui, como parece pretender-se, “critica social”: trata-se, tao so’ e apenas, de “guerrilha psicologica politico-ideologico-propagandistica e revanchista anti-pessoal”, tao indiscriminada (e cobarde!) na sua (nao?) escolha “criteriosa” dos seus alvos como as minas terrestres anti-pessoais o sao – e, por isso, irresponsavel, imoral e... criminosa!

Tao pouco se trata de “debate de ideias” (o que, desde logo, vem implicito em “homilia”…), coisa alias a que quem, como MC, vem da escola marxista-leninista, ou stalinista totalitaria, ou post-colonial fascista, nao estara’ muito habituado: para uma nocao do que constitui verdadeiramente debate de ideias ver, por exemplo, aqui. Um outro exemplo, mais modesto, mas igualmente valido, poderia ser dado pela serie “Fogo Cruzado” do 'defunto' Semanario Angolense.

"In the vocabulary of certain radical theorists contradictions are given the status of some deadly disease to which their opponents alone can succumb. But contradictions are the very stuff of life. If there had been a little dash of contradiction among the Gadarene swine some of them might have been saved from drowning."

Ha’ criticas a fazer-se 'aquela que tambem e’ designada “industria do desenvolvimento”? Certamente! E, por acaso, posso incluir-me (sendo este, ou este, apenas dois exemplos disso) entre alguns dos que ha’ muito as venhem fazendo por dentro, na teoria e na pratica, e… por isso tenho pago (muito!) alto o preco! E tambem por isso permito-me o atrevimento de me julgar capaz de discernir entre “critica sustentavel” com argumentos solidamente fundados na realidade concreta e o mero “bota abaixo” ou “deitar fora a agua do banho com o bebe” just for the sake of it, ou para se servirem obscuras agendas politico-ideologicas, por pura ignorancia, racismo, ressentimento, ociosidade, diletantismo, narcisismo, ressaibo, ou apenas para preencher um qualquer vazio no ego (ou, dito de outro modo, no 'nao ser') do seu autor… sorry about that!

Finalmente, como ja’ vem sendo recorrente neste tipo de “guerrilha” de baixo coturno ou, talvez melhor dito, guerra suja, para a tornar mais “sustentavel”, “efectiva”, “credivel” e, sobretudo, “acima de qualquer suspeita de racismo” (vejam-se, a esse proposito, outros exemplos desse expediente aqui e aqui), MC roga por um certo "salvar Africa dos Africanos" de que se fala no fim deste post e, em seguida, recorre (em desespero de causa?) a uma citacao de um intelectual Africano Negro: “Quanto teremos que dar razão ao grande escritor Chinua Achebe quando disse, na carta que escreveu a Agostinho Neto: “O riso sinistro dos reis idiotas de África que, da varanda dos seus palácios de ouro, contemplam a chacina dos seus próprios povos?” …

Nao, excelentissimo e doutissimo MC, nao se tratou de uma carta, mas do poema que Achebe, que nunca chegou a conhecer Agostinho Neto pessoalmente, escreveu, em 1981, expressamente para um numero especial da revista Okike, da qual foi editor-fundador, dedicado a memoria do primeiro Presidente de Angola, entao falecido dois anos antes. E essa passagem pode ser encontrada na seguinte estrofe daquele poema (transcrito integralmente aqui e tambem aqui, onde o postei ja' ha' mais de tres anos... e, ja' agora, note-se como MC evita os dois primeiros versos e amputa o terceiro...):

For I have seen how
Half a millennium of alien rape
And murder can stamp a smile
On the vacant face of the fool,
The sinister grin of Africa's idiot-kings
Who oversee in obscene palaces of gold
The butchery of their own people.

Claro que, tratando-se de um poema laudatorio, nao se esperaria que Achebe se estivesse a referir a “chacina que se seguiu ao 27 de Maio de 1977” em Angola, assumindo-se a hipotese (pouco provavel) de que dela tivesse conhecimento na altura… mas apetece perguntar:

i) Sera’ que MC reve as motivacoes da sua "guerrilha anti-pessoal" e o seu mui peculiar, prosaico e mundano revisionismo historico neste poema  de Agostinho Neto?

ii) Sera’ que MC tem nocao de que, Chinua Achebe, de etnia Igbo e, a seu tempo, alto dignitario do Biafra*, noutras circunstancias poderia ter dirigido precisamente essa passagem do seu poema (e especialmente as palavras que se seguem ao "For I have seen how..." que invocam a sua vivida e observada experiencia do Biafra) tanto a Agostinho Neto como a Jose’ Eduardo dos Santos, tal como hipoteticamente o faria qualquer outro intelectual que fosse proximo da causa da Jamba de Jonas Savimbi?

Quaisquer que sejam as respostas, tal como as citacoes com que venho intercalando este texto, foi tambem o grande escritor Chinua Achebe quem escreveu o seguinte:

"The white man is very clever. He came quietly and peaceably with his religion. We were amused at his foolishness and allowed him to stay. Now he has won our brothers, and our clan can no longer act like one. He has put a knife on the things that held us together and we have fallen apart."

(Chinua Achebe, in Things Fall Apart)

I rest my case.





*[Para uma leitura contemporanea da historia do Biafra e das suas “comunidades locais”, veja-se Half of a Yellow Sun de Chimamanda Ngozi Adichie , tambem ela Igbo e 'descendente politica, cultural e literaria' de Achebe - sera' de notar, em particular, como nessa obra, em um dos relatos dos massacres indiscriminados de Igbos que precederam a secessao e a guerra do Biafra, ela descreve episodios de "xiboletismo" como os ocorridos durante a Sexta Feira Sangrenta em Luanda. Outra observacao digna de nota e' que o simbolo do 'half of a yellow sun' da bandeira do Biafra era o equivalente ao do 'meio-sol vermelho e galo negro' da bandeira da UNITA...]


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As próprias letras das canções e os respectivos vídeo-clipes são um culto da ostentação oca e bacoca. Meninos de fatos italianos, cheios de penteados (a mostrar que lhes pesa mais o cabelo que a cabeça) e com dourados a pender dos dedos, dos dedos e do pescoço (a mostrar que precisam apenas de mostrar), meninos que cantam pouco e se repetem até à exaustão, fazem o culto deste vazio triste...

Durante anos, o sistema bancário esteve vendendo vazios. Durante esse tempo a arte esteve no empacotar esse vácuo. Esse cultivo da aparência em substituição da substância invadiu as nossas sociedades, no Norte e no Sul do planeta. Esse fascínio pelo brilho exterior estende-se a todos os domínios. Não interessa tanto quem sejas. Interessa o que vestes e como te vendes. Não interessa o que realmente sabes fazer. Interessa a arte de elaborar CVs, de acumular cursos e de te saberes colocar na montra. Não interessa o que pensas. Interessa como embrulhas o pensamento (ou a sua ausência) num bonito invólucro de palavras. Não interessa, no caso de seres governante, como governas e como produzes riqueza para a sociedade. Interessa a pompa e a circunstância. Em suma, o que pesa é o vazio.

Nas artes, o espectáculo tomou conta dessa generalizada ausência de conteúdo. Pouco importa a voz da cantora. Quem escuta a desafinação se ela rebola os quadris com sedução de gata? Quem disse que uma boa cantora tem que cantar? Numa nação em que pouco dinheiro pode salvar vidas, patrocínios chorudos foram aplicados em programas mediáticos de procura do rosto mais bonito, do corpo mais bonito.

As próprias letras das canções e os respectivos vídeo-clipes são um culto da ostentação oca e bacoca. Meninos de fatos italianos, cheios de penteados (a mostrar que lhes pesa mais o cabelo que a cabeça) e com dourados a pender dos dedos, dos dedos e do pescoço (a mostrar que precisam apenas de mostrar), meninos que cantam pouco e se repetem até à exaustão, fazem o culto deste vazio triste em que o que brilha é falso e o que é verdadeiro é mentira. Que valores se veiculam? O carro de luxo (dado pelo papá), a vida fútil, a riqueza fácil. Ai, pátria amada quanto te amam de verdade? Ai, África odiado quanto desse ódio te foi dedicado pelos próprios africanos? Quanto teremos que dar razão ao grande escritor Chinua Achebe quando disse, na carta que escreveu a Agostinho Neto: “O riso sinistro dos reis idiotas de África que, da varanda dos seus palácios de ouro, contemplam a chacina dos seus próprios povos?”

Essa substituição do conteúdo pobre pela forma e pelo aparato pobre faz parte da nossa cultura de empreendedores instantâneos. Há que criar uma empresa? O melhor é que ela não produza nada. Produzir é uma grande chatice, custa tempo e dá muito trabalho. O que está é o lobby, a compra e venda de influências, é ser empresário de sucesso sobretudo porque esse sucesso vem de ser filho de alguém. Para a empresa ser de “peso” há que se gastar tudo na fachada, no cartão de visita, na sala de recepção.

Toda esta longa introdução vem a propósito de um outro jogo de aparências. O acto de pensar foi dispensado pelo uso mecânico de uma linguagem de moda. Já falei de workshops como um espécie de idioma que preenche e legitima a proliferação de seminários, workshops e conferências que pululam de forma tão improdutiva pelo mundo inteiro. Existem termos de moda como “o desenvolvimento sustentável”. Um desses termos mágicos que dispensa qualquer tipo de raciocínio e que cauciona qualquer juízo moral ou proposta política é a expressão “comunidade local”.

Mas aqui surge uma outra operação: por artes inexplicáveis as chamadas “comunidades locais” são entendidas como agrupamentos puros, inocentes e portadores de valores sagrados. As comunidades rejeitam? Então, nada se faz. As comunidades queixam-se? É preciso compensá-las, de imediato, sem necessidade de produzir prova. As comunidades surgem como entidades fora deste mundo e olhadas como um bálsamo purificador por um certo paternalismo das chamadas potências desenvolvidas.

As comunidades estão acima de qualquer suspeita, são incorruptíveis e têm uma visão infalível sobre os destinos da humanidade. É assim que pensam uns tantos missionários dessa nova religião que se chama “desenvolvimento”. Uma tropa de associações cívicas, organizações não governamentais servem-se desse conceito santificado e santificante. Essa entidade pura não existe. Felizmente. O que há são entidades humanas, com os defeitos e as virtudes de todas as entidades compostas por pessoas reais.

O esforço de idealização promovido quer pelos profetas do desenvolvimento quer pelos defensores dos fracos não confere com a realidade que é mais complexa e mundana. O bom selvagem defendido por Rosseau nunca foi nem “bom”, nem “selvagem”. Foi simplesmente pessoa.

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