Wednesday, 23 July 2008

ECOS DA IMPRENSA ANGOLANA (18)

Para variar um pouco o “mau habito” de so’ incluir nesta serie artigos dos semanarios (diga-se que apenas porque estes, ao contrario do nosso unico diario, nao sao livremente acessiveis online), comeco com uma noticia publicada hoje no Jornal de Angola… pelo tema e por envolver Ngozi Okonjo-Iewala, que aqui anteriormente referi (acontecimento que quem tenha lido o meu artigo "Angola, Petroleo e Economia Post-Conflito: Que Fazer?", achara' certamente interessante):

O Banco Mundial felicitou Angola pela “boa gestão macro-económica”, assim como pela estabilidade, segurança e paz alcançadas pelos angolanos.Esta felicitação foi manifestada ao princípio da tarde de ontem, em Luanda, pela directora de Gestão (vice-presidente) do Banco, a nigeriana Ngozi Okonjo-Iweala, à saída de uma audiência que lhe foi concedida, no Palácio da Cidade Alta, em Luanda, pelo Primeiro-Ministro Fernando da Piedade Dias dos Santos.Durante a audiência foi abordado o reforço da cooperação entre o país e a instituição financeira.A vice-presidente do Banco Mundial disse ter vindo a Angola “para felicitar o Presidente José Eduardo dos Santos e o Primeiro-Ministro pela estabilidade, segurança e paz alcançadas no país, bem como pela boa gestão macro-económica”.

No SA, encontramos a Resenha aritmética de uma legislatura de 16 anos:

O Relatório de Actividades da Primeira Legislatura, lido na plenária que na terça-feira, 14, encerrou um ciclo parlamentar de 16 anos, considera positivo o desempenho dos órgãos da Assembleia Nacional e dos deputados, à luz de números fornecidos no dito documento. As actividades estatisticamente reportadas no documento, referente ao período entre Novembro de 1992 e o presente mês de Julho, atribuem um rol de actividades à Secretaria da Assembleia Nacional (SAN), o que constitui, entretanto, uma inferição ao trabalho do próprio Parlamento. Os números dizem que durante os 16 anos pelos quais perdurou a legislatura, a SAN produziu 179 leis e 384 resoluções, perfazendo um total de 563 actos legislativos.

Segue-se-lhe, em Eles só não prometem o céu e a terra, a primeira parte de uma serie que o mesmo semanario dedica, a partir deste numero, as propostas eleitorais dos dois maiores partidos politicos Angolanos:

Embora os dois partidos tenham feito questão de mostrar uma pontinha do seu conteúdo em actos públicos, os seus programas de governo não foram totalmente escancarados porque havia a conveniência de os preservar de «olhares indiscretos». Ou, mais concretamente, da espionagem dos adversários e concorrentes. Mesmo assim, não vá o diabo tece-las, os programas da UNITA e do MPLA ainda não andam por aí à mercê de qualquer manápula. Foi o cabo dos trabalhos para o Semanário Angolense lograr aceder a dois exemplares. Assim, a partir desta edição, o leitor já não terá de esperar pelo início da campanha propriamente dita e dos comícios que a partir daí correrão à larga para dar uma olhada às propostas dos gigantes da política angolana.

Severino Carlos apresenta uma recente comunicacao sua sobre Rigor informativo vs verdades jornalísticas:

Vivemos, actualmente, num contexto de super-informação global, cujas características principais centram-se na velocidade da difusão e circulação de informação. Trata-se de uma espécie de darwinismo no universo da comunicação, em que o melhor e mais apto é aquele que não só chega primeiro aos factos dignos de serem noticiados, como também aquele que os divulga primeiro. A lógica é ser o primeiro jornal, rádio ou canal de televisão. É proibido ser ultrapassado. Chega a ser uma tirania para todos: receptores e emissores de comunicação.
Angola não está isolada deste contexto. E, por isso, a vaga tem vindo a salpicar o nosso país. Não é um fenómeno necessariamente negativo, mas configura um quadro que, face às debilidades da envolvente político-organizativa e às condições materiais em que os jornalistas laboram, gera sérios problemas específicos de rigor informativo. Ou, melhor dizendo, problemas que imbricam com uma das regras de ouro da actividade jornalística: o pressuposto de que toda a informação, para ser entendida como tal, e não como um exercício de manipulação ou de contra-informação, deve caracterizar-se pela objectividade. O que quer dizer que tem de ser enxuta e despida da emotividade e da visão pessoal do jornalista que a veicula. Por fim, e mais importante do que tudo, tem de ser verdadeira.

No NJ, Fernando Pacheco critica alguns desenvolvimentos e posturas em relacao a politica agricola no pais, Enquanto o ferro está quente:

Tenho criticado os nossos mais conceituados economistas por também não dedicarem a devida atenção à agricultura e à produção de alimentos. Na recente apresentação do prestigiado Relatório Económico do Centro de Estudos e Investigação Científica da Universidade Católica o meu amigo Justino Pinto de Andrade dedicou menos de dois dos mais de trinta minutos da sua intervenção ao capítulo da agricultura, apesar de ele abordar temas pertinentes e polémicos como os biocombustíveis. Nestes momentos lembro-me de como seria importante para Angola ter economistas como o malogrado moçambicano José Negrão, que tanto contribuiu para que a agricultura do seu país tivesse crescido de forma tão contundente desde o fim da guerra.
(…)
A ausência de sentido crítico e a auto censura de jornais e de técnicos não têm permitido que a opinião pública se aperceba de alguns dos enormes erros que se estão a acontecer. Um exemplo inquietante do que estou a dizer tem a ver com a importação de gado de raça nelore do Brasil, que aparece frequentemente nas telenovelas da Globo. Subitamente surgiram em Angola empresas brasileiras a vender esse gado e tudo indica que até final deste ano as importações terão atingido cerca de cem mil cabeças, apesar dos resultados não estarem a ser animadores. Como está envolvida gente importante, não foram ouvidas as instituições competentes nem os conselhos dos técnicos mais qualificados, nem sequer respeitadas as normas mais elementares de importação de gado, como, por exemplo, a obrigatoriedade de quarentenas, como acontece em todo o mundo.

Voltando ao SA, encontramos a noticia do lancamento amanha, em Lisboa, do canal internacional da TPA:

Na próxima quinta-feira, 24, o canal internacional da Televisão Pública de Angola (TPA) será apresentado no Coliseu dos Recreios de Lisboa (Portugal), numa gala especialmente preparada para o efeito e na qual marcará presença o ministro da Comunicação Social de Angola, Manuel Rabelais. Durante a cerimónia será gravado o primeiro programa, o «Hora Quente», do humorista Pedro Zage. Artistas angolanos vão abrilhantar a gala em que se farão presentes vários dignitários portugueses, além de figuras ligadas à comunicação social de ambos os países. O «cardápio» da festa oferece os músicos Yola Araújo, Puto Lilas, Carlos Burity, Bonga, Karina Santos, Bruna Tatiana, Maya Cool e Yuri da Cunha.

Finalmente, uma entrevista de Mia Couto ao NJ:

Visitei Angola na condição de escritor e de biólogo. Em todos os casos, encontrei gente de uma afabilidade extrema, o que faz renascer a vontade de voltar sempre e sempre. Devo também dizer que, do ponto de vista literário, tenho uma espécie de dívida para com Luandino Vieira, cuja leitura me encorajou a enveredar por processos de recriação da norma portuguesa.
(…)
O Agualusa é um amigo e o que eu penso digo-lho a ele directamente.
(…)
Não vivo num país de negros mas de moçambicanos. E é muito raro que me lembrem que tenho raça. Invariavelmente, a minha condição de branco é lembrada apenas quando se reivindica o usufruto de privilégios e é necessário criar hierarquias na base da raça.
(…)
O facto de sermos africanos e de língua portuguesa coloca-nos numa condição de dupla dificuldade. É preciso entender que África continua a funcionar como uma coisa exótica e que apenas 'vende' se estiver a envergar vestes folclóricas e estereotipadas. Por outro lado, cada vez menos se fazem traduções. Por exemplo, em Inglaterra menos de 3% dos livros publicados resultam de traduções. Temos, portanto, que vencer estes dois obstáculos, e isso está a acontecer, a pouco e pouco, mas há ainda um longo caminho a percorrer.
(…)
O escritor é aquele que conhece a língua dos sonhos e, mais do que um idioma específico, usa a dimensão poética da palavra. Esse ser existe em todos nós, mesmo nos que não se crêem escritores. Adormecemos dentro de nós a capacidade de inventarmos histórias e, mais do que histórias, modos únicos de as contarmos. A oralidade que trazemos da nossa infância é tida como uma menoridade que o estado chamado de adulto deve saber ofuscar.(Capa do ultimo livro de Mia Couto, Editorial Caminho, 2008)
Para variar um pouco o “mau habito” de so’ incluir nesta serie artigos dos semanarios (diga-se que apenas porque estes, ao contrario do nosso unico diario, nao sao livremente acessiveis online), comeco com uma noticia publicada hoje no Jornal de Angola… pelo tema e por envolver Ngozi Okonjo-Iewala, que aqui anteriormente referi (acontecimento que quem tenha lido o meu artigo "Angola, Petroleo e Economia Post-Conflito: Que Fazer?", achara' certamente interessante):

O Banco Mundial felicitou Angola pela “boa gestão macro-económica”, assim como pela estabilidade, segurança e paz alcançadas pelos angolanos.Esta felicitação foi manifestada ao princípio da tarde de ontem, em Luanda, pela directora de Gestão (vice-presidente) do Banco, a nigeriana Ngozi Okonjo-Iweala, à saída de uma audiência que lhe foi concedida, no Palácio da Cidade Alta, em Luanda, pelo Primeiro-Ministro Fernando da Piedade Dias dos Santos.Durante a audiência foi abordado o reforço da cooperação entre o país e a instituição financeira.A vice-presidente do Banco Mundial disse ter vindo a Angola “para felicitar o Presidente José Eduardo dos Santos e o Primeiro-Ministro pela estabilidade, segurança e paz alcançadas no país, bem como pela boa gestão macro-económica”.

No SA, encontramos a Resenha aritmética de uma legislatura de 16 anos:

O Relatório de Actividades da Primeira Legislatura, lido na plenária que na terça-feira, 14, encerrou um ciclo parlamentar de 16 anos, considera positivo o desempenho dos órgãos da Assembleia Nacional e dos deputados, à luz de números fornecidos no dito documento. As actividades estatisticamente reportadas no documento, referente ao período entre Novembro de 1992 e o presente mês de Julho, atribuem um rol de actividades à Secretaria da Assembleia Nacional (SAN), o que constitui, entretanto, uma inferição ao trabalho do próprio Parlamento. Os números dizem que durante os 16 anos pelos quais perdurou a legislatura, a SAN produziu 179 leis e 384 resoluções, perfazendo um total de 563 actos legislativos.

Segue-se-lhe, em Eles só não prometem o céu e a terra, a primeira parte de uma serie que o mesmo semanario dedica, a partir deste numero, as propostas eleitorais dos dois maiores partidos politicos Angolanos:

Embora os dois partidos tenham feito questão de mostrar uma pontinha do seu conteúdo em actos públicos, os seus programas de governo não foram totalmente escancarados porque havia a conveniência de os preservar de «olhares indiscretos». Ou, mais concretamente, da espionagem dos adversários e concorrentes. Mesmo assim, não vá o diabo tece-las, os programas da UNITA e do MPLA ainda não andam por aí à mercê de qualquer manápula. Foi o cabo dos trabalhos para o Semanário Angolense lograr aceder a dois exemplares. Assim, a partir desta edição, o leitor já não terá de esperar pelo início da campanha propriamente dita e dos comícios que a partir daí correrão à larga para dar uma olhada às propostas dos gigantes da política angolana.

Severino Carlos apresenta uma recente comunicacao sua sobre Rigor informativo vs verdades jornalísticas:

Vivemos, actualmente, num contexto de super-informação global, cujas características principais centram-se na velocidade da difusão e circulação de informação. Trata-se de uma espécie de darwinismo no universo da comunicação, em que o melhor e mais apto é aquele que não só chega primeiro aos factos dignos de serem noticiados, como também aquele que os divulga primeiro. A lógica é ser o primeiro jornal, rádio ou canal de televisão. É proibido ser ultrapassado. Chega a ser uma tirania para todos: receptores e emissores de comunicação.
Angola não está isolada deste contexto. E, por isso, a vaga tem vindo a salpicar o nosso país. Não é um fenómeno necessariamente negativo, mas configura um quadro que, face às debilidades da envolvente político-organizativa e às condições materiais em que os jornalistas laboram, gera sérios problemas específicos de rigor informativo. Ou, melhor dizendo, problemas que imbricam com uma das regras de ouro da actividade jornalística: o pressuposto de que toda a informação, para ser entendida como tal, e não como um exercício de manipulação ou de contra-informação, deve caracterizar-se pela objectividade. O que quer dizer que tem de ser enxuta e despida da emotividade e da visão pessoal do jornalista que a veicula. Por fim, e mais importante do que tudo, tem de ser verdadeira.

No NJ, Fernando Pacheco critica alguns desenvolvimentos e posturas em relacao a politica agricola no pais, Enquanto o ferro está quente:

Tenho criticado os nossos mais conceituados economistas por também não dedicarem a devida atenção à agricultura e à produção de alimentos. Na recente apresentação do prestigiado Relatório Económico do Centro de Estudos e Investigação Científica da Universidade Católica o meu amigo Justino Pinto de Andrade dedicou menos de dois dos mais de trinta minutos da sua intervenção ao capítulo da agricultura, apesar de ele abordar temas pertinentes e polémicos como os biocombustíveis. Nestes momentos lembro-me de como seria importante para Angola ter economistas como o malogrado moçambicano José Negrão, que tanto contribuiu para que a agricultura do seu país tivesse crescido de forma tão contundente desde o fim da guerra.
(…)
A ausência de sentido crítico e a auto censura de jornais e de técnicos não têm permitido que a opinião pública se aperceba de alguns dos enormes erros que se estão a acontecer. Um exemplo inquietante do que estou a dizer tem a ver com a importação de gado de raça nelore do Brasil, que aparece frequentemente nas telenovelas da Globo. Subitamente surgiram em Angola empresas brasileiras a vender esse gado e tudo indica que até final deste ano as importações terão atingido cerca de cem mil cabeças, apesar dos resultados não estarem a ser animadores. Como está envolvida gente importante, não foram ouvidas as instituições competentes nem os conselhos dos técnicos mais qualificados, nem sequer respeitadas as normas mais elementares de importação de gado, como, por exemplo, a obrigatoriedade de quarentenas, como acontece em todo o mundo.

Voltando ao SA, encontramos a noticia do lancamento amanha, em Lisboa, do canal internacional da TPA:

Na próxima quinta-feira, 24, o canal internacional da Televisão Pública de Angola (TPA) será apresentado no Coliseu dos Recreios de Lisboa (Portugal), numa gala especialmente preparada para o efeito e na qual marcará presença o ministro da Comunicação Social de Angola, Manuel Rabelais. Durante a cerimónia será gravado o primeiro programa, o «Hora Quente», do humorista Pedro Zage. Artistas angolanos vão abrilhantar a gala em que se farão presentes vários dignitários portugueses, além de figuras ligadas à comunicação social de ambos os países. O «cardápio» da festa oferece os músicos Yola Araújo, Puto Lilas, Carlos Burity, Bonga, Karina Santos, Bruna Tatiana, Maya Cool e Yuri da Cunha.

Finalmente, uma entrevista de Mia Couto ao NJ:

Visitei Angola na condição de escritor e de biólogo. Em todos os casos, encontrei gente de uma afabilidade extrema, o que faz renascer a vontade de voltar sempre e sempre. Devo também dizer que, do ponto de vista literário, tenho uma espécie de dívida para com Luandino Vieira, cuja leitura me encorajou a enveredar por processos de recriação da norma portuguesa.
(…)
O Agualusa é um amigo e o que eu penso digo-lho a ele directamente.
(…)
Não vivo num país de negros mas de moçambicanos. E é muito raro que me lembrem que tenho raça. Invariavelmente, a minha condição de branco é lembrada apenas quando se reivindica o usufruto de privilégios e é necessário criar hierarquias na base da raça.
(…)
O facto de sermos africanos e de língua portuguesa coloca-nos numa condição de dupla dificuldade. É preciso entender que África continua a funcionar como uma coisa exótica e que apenas 'vende' se estiver a envergar vestes folclóricas e estereotipadas. Por outro lado, cada vez menos se fazem traduções. Por exemplo, em Inglaterra menos de 3% dos livros publicados resultam de traduções. Temos, portanto, que vencer estes dois obstáculos, e isso está a acontecer, a pouco e pouco, mas há ainda um longo caminho a percorrer.
(…)
O escritor é aquele que conhece a língua dos sonhos e, mais do que um idioma específico, usa a dimensão poética da palavra. Esse ser existe em todos nós, mesmo nos que não se crêem escritores. Adormecemos dentro de nós a capacidade de inventarmos histórias e, mais do que histórias, modos únicos de as contarmos. A oralidade que trazemos da nossa infância é tida como uma menoridade que o estado chamado de adulto deve saber ofuscar.(Capa do ultimo livro de Mia Couto, Editorial Caminho, 2008)

3 comments:

Koluki said...

Nota de Rodape’ - 1

Não vivo num país de negros mas de moçambicanos. E é muito raro que me lembrem que tenho raça. Invariavelmente, a minha condição de branco é lembrada apenas quando se reivindica o usufruto de privilégios e é necessário criar hierarquias na base da raça.


Destaco esta afirmacao de Mia Couto, em primeiro lugar porque, como devem ter reparado, praticamente desde o inicio deste blog, tenho vindo a expressar alguns dos meus pontos de discordancia com o que, a dada altura, por me ter visto tao frequentemente ‘bombardeada’ com textos seus que avulsamente teem sido circulados pela internet, passei a apelidar de ‘homilias’… e, em segundo lugar, porque apela a uma questao que, invariavelmente, me coloca em rota de colisao nao so’ com algumas das ideias de Mia Couto mas tambem com um certo discurso que apelidaria de ‘retro-colonial’ (em oposicao a ‘post-colonial’) prevalente em certas esferas do mundo lusofono e em particular nas ex-colonias portuguesas de Angola e Mocambique, a saber: a questao da “Accao Afirmativa”, ou o que na Africa do Sul se convencionou chamar “Black Empowerment”.

Explico-me: como tambem ja’ aqui anteriormente expressei, penso que uma das maiores deficiencias nas abordagens das relacoes raciais no mundo lusofono e’ a virtual ausencia de uma dimensao de analise sociologica nessas abordagens, de tal forma que a “questao da raca” e’ invariavelmente vista apenas sob um prisma ‘genetico’, ‘cultural’ ou ‘etnologico’, mas a sua dimensao social e historica e’ geralmente ignorada (de facto, a unica tentativa de abordagem nesse sentido de que tenho conhecimento, e que me perdoem a minha ignorancia quanto a outras que porventura existam, encontrei-a apenas recentemente neste texto do CODESRIA). Isto e’, parece-me que muitos de nos andamos tomados por uma visao ahistorica, miope e enviezada da nossa propria realidade historico-social e, consequentemente, incapacitados de projectar as implicacoes dessa realidade para a esfera das relacoes socio-economicas nos nossos paises, particularmente nesta era post-colonial. Por isso parece tao relevante para Mia Couto notar que “não vivo num país de negros mas de moçambicanos”.

Parece-me, no entanto, que Mia Couto se esquece, ou talvez nao lhe ocorra como relevante para as suas observacoes da sociedade colonial ou da post-colonial, que a raca e’, antes de mais, um constructo ideologico, datado no tempo historico e destinado a ter como valencia social precisamente a criacao de hierarquias com base na raca. Acontece, porem, que tal constructo nao foi elaborado pelas sociedades pre ou post-coloniais, tal como as conhecemos, mas pelo colonialismo. E, mais importante ainda, a raca, ou a ideia de raca, nao desaparece apenas porque assim o decidimos, ou queremos, particularmente quando ela serviu de base de estruturacao de toda uma sociedade ao longo de seculos… em termos mais especificos, penso que o individuo “racializado” pela sociedade colonial nao se torna, como que por um golpe de magica ou acto de feitico, “desracializado” apenas porque Mia Couto escreveu um belo livro entitulado “Cada Homem E’ Uma Raca”…

Poe-se, portanto, a questao: qual e’ o papel social e historico de politicas como a “Accao Afirmativa” ou o “Black Empowerment” nas sociedades post-coloniais? Quanto a mim, nada mais nada menos do que corrigir assimetrias sociais e economicas criadas pelo colonialismo (nas ex-colonias Africanas), a segregacao e discriminacao racial (na Europa, nos EUA e no Brasil) e o apartheid (na Africa do Sul), sem com elas necessariamente replicar tal tipo de assimetrias exclusivamente com base na raca (sob a forma do que tambem se chama “racismo invertido”) nas sociedades que pretendemos edificar para o futuro. Em suma: nao e’, para mim, uma questao de “vinganca”, ou uma questao estritamente do foro politico-ideologico, mas sim uma questao de “justica”, ou seja do foro etico-moral.

Evidentemente, como quaisquer outras politicas, a “Accao Afirmativa” ou o “Black Empowerment” – que do meu ponto de vista se devem limitar apenas a criar oportunidades de acesso a educacao, ensino e formacao profissional e, por essa via, ao emprego qualificado em todos os sectores da vida social e economica, aqueles grupos sociais que historicamente se viram impedidos de aceder a tais oportunidades especificamente por causa da sua ‘raca’ (e aqui ponho ‘raca’ especialmente entre comas por ter em mente a recente classificacao dos Chineses na Africa do Sul como ‘blacks’ para poderem usufruir dos mecanismos do “Black Empowerment”…) – sao susceptiveis de deficiencias de formulacao, falhas de implementacao, oportunismos e deturpacoes de varia ordem, ou seja, de desvios dos seus objectivos primarios, estando por isso o seu sucesso dependente de uma rigorosa avaliacao, escrutinio e monitorizacao por parte das sociedades e individuos afectados por tais politicas.

E aqui ha’ um ponto que me parece crucial no discurso de Mia Couto: “é muito raro que me lembrem que tenho raça”. Isto e’, parece haver nessa afirmacao uma admissao implicita de que ele nao e’ afectado pela mesma ordem de estruturacao racica que caracterizou o colonialismo, a segregacao e discriminacao racial, ou o apartheid. Quanto muito, ele ter-se-a’ sentido “prejudicado” no foro da competicao pelo usufruto de privilegios… Se e’ o caso, pois que se admita que tal so’ pode ser considerado lamentavel. Mas conviria entao tornar explicitas as circunstancias e os casos concretos em que isso se tenha verificado. E’ que, dada a natureza delicada das implicacoes desse tipo de afirmacoes, e no interesse do exercicio de monitorizacao e escrutinio individual e social a que acima me refiro, importa saber mais e melhor sobre os mecanismos sociais e politicos que produzem tais resultados.

Para encurtar razoes e “to put my mouth where my words are”, tenho esta estoria para contar:

Ha’ cerca de 15 anos, quando me encontrava a terminar a minha licenciatura em Economia em Portugal, atraves dos bons auspicios da Camara de Comercio e Industria Portugal-Angola, tomei a oportunidade de fazer um estagio profissional com um dos maiores grupos economicos portugueses que tinha em vista a minha colocacao numa posicao chave das suas operacoes em Angola. Tal estagio, que durou cerca de dois anos e me fez trabalhar em 3 diferentes bancos ligados aquele grupo, permitiu-me cobrir todo o espectro de operacoes bancarias domesticas e internacionais, bem como os mais diversos sectores economicos, desde o comercio a industria, passando pela construcao, turismo e pela bolsa de valores.
Chegada a altura da formalizacao da minha colocacao em Angola com as devidas autoridades do pais, os responsaveis pelo meu estagio organizaram um encontro formal entre mim e a sua contraparte agindo em representacao daquelas autoridades, que resultou no seguinte: segundo a senhora em questao, “nao podem ser sempre as mesmas pessoas a beneficiar e a sua colocacao em Angola tem que ser objecto de uma avaliacao politica”. Ou seja… resultou em nada!
Se me perguntarem de que teria eu “beneficiado”, a nao ser de uma oportunidade que apenas iria beneficiar o meu pais, naquela ou noutras circunstancias, antes ou depois da independencia de Angola, confesso-lhes, muito honestamente, que nao consigo encontrar resposta…

Ora, a senhora em questao era (e’) branca e a sua pretensa argumentacao para a “barragem” da minha “passagem de regresso a Angola” (sendo eu Angolana de pleno direito, estando a estudar e tendo feito aquele estagio profissional em Portugal como Angolana) nao a impediram de colocar no lugar, para o qual os meus patrocinadores tao generosamente me tinham dado a oportunidade de me preparar tecnicamente durante cerca de dois anos, um seu familiar muito proximo (… e atente-se na composicao racica da esmagadora maioria do pessoal bancario tanto em Angola, como em Mocambique…).
Desculpem-me, e’ meu principio nao pessoalizar este tipo de questoes, nem publica nem privadamente, mas se eu tenho que me confrontar tao frequentemente com acusacoes de “racismo”, aberta e veladamente, publica e privadamente, pois que elas se baseiem em factos tao concretos como os que acabo de relatar… De outro modo, receio bem que afirmacoes como as de Mia Couto que aqui destaquei soarao apenas, pelo menos para mim, como reclamacoes de quem esta,’ e sempre esteve, de “barriga cheia”…

Quero, ou preciso eu de “accao afirmativa” ou de “black empowerment” para poder usufruir de direitos (nao privilegios), nomeadamente do direito ao emprego e a uma vida digna, pelos quais tive que lutar? Absolutamente nao. Quero, ou preciso eu de “discriminacao positiva” ou de “quotas” no mercado de trabalho ou na esfera politica, como mulher, para poder ser integrada como qualquer outro ser humano numa sociedade a que pertenco de pleno direito? Absolutamente nao. Mas quando tal possibilidade me e’ deliberadamente cortada por uma mulher (por sinal branca…) e esse tipo de ocorrencias se verifica, e se repete a todo o transe, nao so’ no meu caso como tambem noutros de que tenho directo conhecimento, vejo-me obrigada a ponderar seriamente sobre que tipo de politicas poderao efectivamente colocar as nossas sociedades post-coloniais no caminho certo contra a exclusao social e pela justica e igualdade raciais…
Tenho dito.

Koluki said...

Nota de Rodape' - 2

A mencao que Fernando Pacheco faz, por um lado a necessidade de um maior espirito critico nas nossas sociedades e, por outro, ao malogrado Economista Mocambicano Jose’ Negrao, sugere-me duas notas inter-relacionadas:

i. Acho que tanto quanto nos falta espirito critico, falta-nos cultura do debate. Uma tradicao no sistema de ensino no mundo Anglofono e’ o cultivo do debate de ideias desde os niveis mais baixos/intermedios aos mais altos, atraves de “competicoes de debate” entre escolas, universidades e ate’ entre paises ou de “sociedades/clubs de debate” etc. (ha’ um filme muito interessante de Denzel Washington sobre essa tradicao, que recebi do meu filho, em DVD, como prenda no ultimo Natal: 'The Great Debaters', 2007).

No mundo Lusofono nao existe nada disso, infelizmente. O que me leva a segunda nota:

ii. Tive o grato prazer de, sem nunca o ter conhecido pessoalmente, ter tido com Jose' Negrao um debate bastante interessante a proposito de um artigo seu publicado numa revista online (salvo erro “Cruzeiro do Sul” ou algo parecido – nao o posso verificar agora, mas tenho o seu registo electronico algures). Nao vou aqui, obviamente, replicar o tal debate, pelo que direi apenas que ele se centrou no papel das autoridades tradicionais no processo de desenvolvimento e de algumas questoes relacionadas com a problematica dos modelos de desenvolvimento em paises como Angola e Mocambique.
Portanto, que um Economista da dimensao que lhe confere Fernando Pacheco se tenha disposto a um debate franco e aberto, por email, com alguem que nao conhecia pessoalmente e’ de facto algo a anotar devidamente. E essa constitui a minha singela homenagem a Jose’ Negrao.

Koluki said...

Nota de Rodape' - 3

Ja’ agora, para que o registo fique completo, deixo aqui uma transcricao mais extensa das afirmacoes de Mia Couto a que me refiro na primeira nota a este post.
E, ja’ agora tambem, em face de certo tipo de reaccoes que essa nota imediatamente despoletou (incluindo ‘ameacas de morte’ (des)veladas…) devo acrescentar que a senhora a que nela me refiro faz parte de um certo grupo de ‘ex-colonos’ de Angola que faz sempre muita questao de propagar a sua ‘contribuicao’ para a resistencia anti-colonial… (no caso por ‘associacao’ a um ex-marido, que faria todo o sentido nomear neste contexto, mas que ainda tenho decoro suficiente para evitar faze-lo…).
Impoe-se tambem uma precisao: bem feitas as contas, o meu estagio profissional durou 3 anos.



"Couto: Eu sempre fui um dos poucos brancos. Os brancos neste país sempre foram uma minoria que não conta.

Na época da crise mais intensa, você era discriminado? Seus pais são portugueses?

Couto: Meus pais são portugueses. O racismo colonial era contra os mulatos, e os pretos. Eu era tido como branco de segunda, porque nasci aqui. Eu não tinha acesso a certas funções no governo colonial. Meus pais eram brancos de primeira, e eu era branco de segunda. Meus filhos seriam brancos de terceira, e aquilo estava hierarquizado.

Era um sistema que discriminava mais os pretos. Mas criou-se uma porta que determinou a diferença na comparação com a colonização inglesa. Aqui tu podias, sendo preto, ser branco. Podias ser assimilado. E passar a ter privilégios que tua raça não tinha. Se abdicasses daquilo que seria tua cultura, tua religião, o teu nome, porque tinhas que mudar de nome.

O fator raça, era um fator, mas não era o fator. Era um fator pelo qual se podia transitar. Essa é a diferença do racismo inglês, que tu sendo preto não tens saída, és preto sempre. Podes ser educado como preto, mas lá no meio dos pretos. Depois da Independência, eu nunca fui objeto de racismo, nunca fui discriminado assim.

No cotidiano, não sinto. Esqueço-me da minha raça. Agora, de vez em quando, sim, há casos em que pontualmente, por razões de um certo oportunismo, por razões de quando a porta é estreita e só pode passar um. Aí lembram-se que eu sou branco e que portanto eu não seja tão representativo assim. Também tem uma grande força aquilo que falamos ontem, o modelo americano da ação afirmativa.

Isso tem força?

Couto: Tem força em alguns momentos. Não é uma política oficial, como é, por exemplo na África do Sul, mas tem. É usado como argumento quando é preciso.

Você concorda com essa política?

Couto: Eu, não. Eu não sei pensar essa política lá no lugar onde ela nasceu. Aparentemente ela nasce com propósitos completamente diferentes dos que estão sendo usados ou aplicados aqui. A ação afirmativa nasce para impor direitos de minorias. Aqui é usado pelo direito da maioria. O que é uma coisa estranha. Por exemplo, o rap, que é um movimento de revolta contra quem está no poder aqui tem tanta força porque mesmo os que estão no poder, sendo pretos, são brancos.

Neste sentido de que as pessoas que se sentem excluídas culturalmente e para terem acesso a certa posição social têm que copiar, têm que falar português, por exemplo. Tem que abdicar de sua cultura original e isso cria um sentimento de intranqüilidade. E no fim as pessoas acham legítimo um movimento de ação afirmativa porque estão lutando contra uma coisa que é quase fantasmagórica. Um movimento de ação afirmativa aqui devia defender a mim enquanto minoria, não é?

Mas você é o colonizador, não é?

Couto: Mas eu poderia ser chinês. Imagine que eu fosse chinês. Há moçambicanos chineses. São uma minoria ínfima, e eles podiam usar esse mecanismo da ação afirmativa para dizer “ah, eu também tenho que estar presente, que estar representado não sei onde”. E sucede o contrário disso.

Como seus pais reagiram na época da Independência? Eles pensaram em sair daqui?

Couto: Eles saíram, quatro vezes, sempre definitivamente e voltavam para Portugal, pois este já não era o país que eles conheciam, de que aprenderam a gostar.

Eles saíram por medo?

Couto: Não, por desencontros."

[Extracto daqui]