A Cidade Crispada


Foi alguns meses depois do 27 de Maio de 1977.
Estava em fuga - de militancias, do continuo bater no ferro quente do camartelo da demolicao pessoal, familiar e social; de Luanda e seus kifumbis, kazumbis e kalundus.
Ia em busca de um sol que distendesse o meu estado de crispacao e iluminasse o caminho desconhecido que decidira encetar - numa cidade desconhecida e de totais desconhecidos para mim.
O pretexto era estudar para um curso que so' ali era leccionado.
Ah, e queria muito conhecer de perto e ao vivo as misticas Mumuilas e seus segredos, seus cabelos e oleos de mompeke.
Mas encontrei uma cidade desconhecida e pessoas desconhecidas talvez em maior estado de crispacao do que o meu - ou ter-se-ia a minha crispacao atenuado assim que la' cheguei?

Era assim o Lubango quando em seu nevoeiro crispado desembarquei pela primeira vez.

E na primeira manha que la' passei, vi pela primeira vez agua deixada a dormir de vespera numa celha no quintal da familia desconhecida que me recebeu, no dia seguinte transformada em quase bloco de gelo.
La' vivi pela primeira vez os rigores do inverno, apesar de ja' ter estado na Europa - em ferias familiares em Portugal durante a segunda metade de 1974. Estranho falar em "ferias" naquele periodo, mas assim foi: umas "graciosas" que a minha mae, funcionaria publica, vinha preparando ha' muito tempo e que agendara para Junho de 1974, sem obviamente poder antecipar o 25 de Abril (por vezes pergunto-me no que se teriam tornado as nossas vidas se por la' tivessemos ficado naquela altura...). Era entao verao e o inverno europeu so' o iria experimentar anos mais tarde, mas nunca nenhum tao rigoroso, nem tao crispado como aquele com que o Lubango me recebeu pela primeira vez.

Mas era uma crispacao que ainda dava potes de leite e queijo frescos, iogurte, manteiga batida e pao quente de manhazinha; cestas de morangos e outras frutas, que antes so' tinha comido em Portugal, todo o dia, todos os dias; pirao de milho com leite azedo e carne seca assada e senhoras mesticas crescidas nos colonatos que falavam de alhinho e cebolinha ... Enfim, algo que cada vez mais escasseava em Luanda: comida! Boa, fresca e variada comida, quase toda (ainda) produzida localmente - como a fabrica artesanal de fiambres, paios, presuntos e chouricos varios que continuava a funcionar ali ha' alguns quilometros e a abastecer a cidade de seus enchidos e fumados de toda a especie.

Era uma crispacao cortada pelo calor interior das Mumuilas (finalmente descobertas fora de um cartao postal, nas suas lides diarias pelas ruas da cidade, mas que, apesar da imensa curiosidade e demorada observacao, sempre preferi, respeitosamente, deixar envoltas em seus insondaveis misterios) e seus maridos e filhos de troncos semi-nus protegidos do cacimbo por seus oleos e takulas, apenas ocasionalmente - nos dias em que o frio era mesmo de cortar e rachar ate' para eles - cobertos por uma manta.

Era uma crispacao que ainda me permitia encomendar livros por catalogo de uma editora em Portugal e recebe-los pouco tempo depois, ali ha' milhas de distancia de todos os nortes e tao perto das guerras de todo o sul.

E era uma crispacao que ainda permitia a realizacao de eventos como um torneio regional de xadrez, organizado pelo kota Hamilton - que ja' entao se tornara familia sem o ser - e que, meu companheiro de xadrez por aqueles dias, para aquele torneio me levara, obviamente sem quaisquer preocupacoes etarias, de genero, ou raca - e' que, nao so' eu era a unica mulher, mas era tambem de todos os participantes a mais nova e, en passant, a unica negra. Entao nao e' que no meu primeiro jogo (e sendo um torneio oficial, vigorava a regra de "pedra tocada, pedra jogada") eu ia dando um "xeque-mate a pastor" ao meu adversario? E nao e' que ele tocou (mesmo!) na pedra errada?! Bom, claramente seria demasiado embaracoso para qualquer dos participantes perder comigo (e ainda por cima daquela forma, e ainda por cima no primeiro jogo!), pelo que os fiscais do torneio, presididos pelo kota Hamilton, decidiram, mui crispadamente, ignorar que tinha havido de facto (e de jure!) "pedra tocada"... Bem, os jogos foram interrompidos ate' ao dia seguinte por causa do (crispado) recolher obrigatorio. So' que, no dia seguinte houve um corte geral de energia (frio) que acabou por se prolongar o suficiente para levar ao cancelamento do torneio (congelamento geral).

Ah! E havia outras crispacoes. Como a de ver, por mero acaso, um verdadeiro tugurio onde nomes sonantes do antigo establishment colonial, ostentando suas vastas barbas e longas unhas retorcidas, ha' muito precisadas de um corte e uma boa escovadela com agua e sabao, mantinham sordidamente suas escravas sexuais negras em plena pos-colonia; ou a dos ecos de permanentes conflitos de propriedade entre os ex-colonos grandes latifundiarios e criadores de gado e as comunidades pastoricias locais; ou a suprema crispacao da faculdade (onde conheci este outro kota) e da residencia universitaria - mas essas pertencem a outros registos.

Era, entao, uma cidade crispada com esparsos momentos de distencao.

Mas era preciso faze-los, ou ir encontra-los.

Como, numa das duas ou tres festas em que estive, no periodo de pouco mais de um ano em que la' vivi (tendo de la' regressado a Luanda com aquele que era sobrinho/afilhado do kota Hamilton, que la' havia nascido e que eu ja' conhecia dos tempos em que, ainda no tempo colonial, ele era colega de turma de uma das minhas irmas e era frequentemente motivo de galhofa la' em casa e, depois, do tempo das kanvwanzas de 74/75 em Luanda e que cerca de dois anos depois de termos vindo juntos do Lubango viria a ser o pai do meu filho e que, muitos anos depois, me diria que eu era "a mulher mais pudica que ele conhecera" - coitado deve andar a revolver-se na cova agora com certas "brincadeiras" que nos sao trazidas pelo vento que passa sabe-se la' vindo d'aonde... E a la' voltaria alguns anos mais tarde, com o meu filho - tendo dessa vez desembarcado numa cidade ja' mais ensolarada e de qualquer crispacao cortada por uma rosa de porcelana pela mao do kota Aires (... que, logo-logo, decidira que eu "sabia diferenciar um Monet de um Manet", apesar de nao saber que eu ja' tinha visto e estudado a obra de ambos nos Petit e Grand Palais de Paris...) e pelo re-inicio das festas da Senhora do Monte, depois da sua longa crispacao e congelamento no pos-independencia - para o lancamento do meu primeiro livro, sob o olhar sempre supervisor do kota Hamilton...), usando o meu vestido feito de pano do Kongo, desenhado por mim e talhado e costurado pela minha mae em Luanda, dancei rumba, soukouss e kwassa-kwassa como se nao houvesse amanha - havia la', na altura, uma pequena comunidade Bakongo ligada a universidade. E a minha mae, que ja' tinha visto a sua primeira filha, que chegara ate' ao setimo ano dos liceus ainda no periodo colonial, sumir sob a nuvem negra do 27 de Maio, tambem apareceu por la', em dois ou tres dias de crispacao, para se certificar de que eu estava mesmo la'... e viva!

Ou nas cerca de 15 vezes que desci a Serra da Leba, como num escorrega de infancia ou roller-coaster ride de feira (nela o nosso perito condutor e aventureiro-mor haveria, anos mais tarde, de perder a vida num aparatoso acidente...), quase em todas elas com grupo de aventureiros despreocupados, demandando os mangais do fundo da serra, as praias e o deserto do Namibe, a Baia das Pipas (... e as nossas magico-fantasticas pescarias sob o luar em meio-mar com os pescadores locais...), ou as caves do Tombwa e as gravuras rupestres do Tchitundo-Hulo... Uma vez, decidimos mudar a direccao da nossa bussula do sul para o norte e fomos ate' ao Lobito, por entre paisagens indescritiveis de que a memoria apenas guarda com maior vivacidade uns certos campos de girassois emergindo no horizonte como uma verdadeira ode a vida. De la' (mais precisamente do Hotel Terminus na restinga do Lobito) regressariamos, todos de comum acordo, com uma pequena cafeteira electrica que, decidiramos, nos ia dar muito geito na residencia universitaria, mas que apenas a mim (que, mui cristianamente, decidira assumir sozinha toda a mea culpa, apesar de por aqueles dias ainda ser oficialmente menor de idade...) iria servir uma bebida crispada que, como cafe' forte requentado sem acucar, me iria deixar um permanente travo amargo na garganta...


Foi alguns meses depois do 27 de Maio de 1977.
Estava em fuga - de militancias, do continuo bater no ferro quente do camartelo da demolicao pessoal, familiar e social; de Luanda e seus kifumbis, kazumbis e kalundus.
Ia em busca de um sol que distendesse o meu estado de crispacao e iluminasse o caminho desconhecido que decidira encetar - numa cidade desconhecida e de totais desconhecidos para mim.
O pretexto era estudar para um curso que so' ali era leccionado.
Ah, e queria muito conhecer de perto e ao vivo as misticas Mumuilas e seus segredos, seus cabelos e oleos de mompeke.
Mas encontrei uma cidade desconhecida e pessoas desconhecidas talvez em maior estado de crispacao do que o meu - ou ter-se-ia a minha crispacao atenuado assim que la' cheguei?

Era assim o Lubango quando em seu nevoeiro crispado desembarquei pela primeira vez.

E na primeira manha que la' passei, vi pela primeira vez agua deixada a dormir de vespera numa celha no quintal da familia desconhecida que me recebeu, no dia seguinte transformada em quase bloco de gelo.
La' vivi pela primeira vez os rigores do inverno, apesar de ja' ter estado na Europa - em ferias familiares em Portugal durante a segunda metade de 1974. Estranho falar em "ferias" naquele periodo, mas assim foi: umas "graciosas" que a minha mae, funcionaria publica, vinha preparando ha' muito tempo e que agendara para Junho de 1974, sem obviamente poder antecipar o 25 de Abril (por vezes pergunto-me no que se teriam tornado as nossas vidas se por la' tivessemos ficado naquela altura...). Era entao verao e o inverno europeu so' o iria experimentar anos mais tarde, mas nunca nenhum tao rigoroso, nem tao crispado como aquele com que o Lubango me recebeu pela primeira vez.

Mas era uma crispacao que ainda dava potes de leite e queijo frescos, iogurte, manteiga batida e pao quente de manhazinha; cestas de morangos e outras frutas, que antes so' tinha comido em Portugal, todo o dia, todos os dias; pirao de milho com leite azedo e carne seca assada e senhoras mesticas crescidas nos colonatos que falavam de alhinho e cebolinha ... Enfim, algo que cada vez mais escasseava em Luanda: comida! Boa, fresca e variada comida, quase toda (ainda) produzida localmente - como a fabrica artesanal de fiambres, paios, presuntos e chouricos varios que continuava a funcionar ali ha' alguns quilometros e a abastecer a cidade de seus enchidos e fumados de toda a especie.

Era uma crispacao cortada pelo calor interior das Mumuilas (finalmente descobertas fora de um cartao postal, nas suas lides diarias pelas ruas da cidade, mas que, apesar da imensa curiosidade e demorada observacao, sempre preferi, respeitosamente, deixar envoltas em seus insondaveis misterios) e seus maridos e filhos de troncos semi-nus protegidos do cacimbo por seus oleos e takulas, apenas ocasionalmente - nos dias em que o frio era mesmo de cortar e rachar ate' para eles - cobertos por uma manta.

Era uma crispacao que ainda me permitia encomendar livros por catalogo de uma editora em Portugal e recebe-los pouco tempo depois, ali ha' milhas de distancia de todos os nortes e tao perto das guerras de todo o sul.

E era uma crispacao que ainda permitia a realizacao de eventos como um torneio regional de xadrez, organizado pelo kota Hamilton - que ja' entao se tornara familia sem o ser - e que, meu companheiro de xadrez por aqueles dias, para aquele torneio me levara, obviamente sem quaisquer preocupacoes etarias, de genero, ou raca - e' que, nao so' eu era a unica mulher, mas era tambem de todos os participantes a mais nova e, en passant, a unica negra. Entao nao e' que no meu primeiro jogo (e sendo um torneio oficial, vigorava a regra de "pedra tocada, pedra jogada") eu ia dando um "xeque-mate a pastor" ao meu adversario? E nao e' que ele tocou (mesmo!) na pedra errada?! Bom, claramente seria demasiado embaracoso para qualquer dos participantes perder comigo (e ainda por cima daquela forma, e ainda por cima no primeiro jogo!), pelo que os fiscais do torneio, presididos pelo kota Hamilton, decidiram, mui crispadamente, ignorar que tinha havido de facto (e de jure!) "pedra tocada"... Bem, os jogos foram interrompidos ate' ao dia seguinte por causa do (crispado) recolher obrigatorio. So' que, no dia seguinte houve um corte geral de energia (frio) que acabou por se prolongar o suficiente para levar ao cancelamento do torneio (congelamento geral).

Ah! E havia outras crispacoes. Como a de ver, por mero acaso, um verdadeiro tugurio onde nomes sonantes do antigo establishment colonial, ostentando suas vastas barbas e longas unhas retorcidas, ha' muito precisadas de um corte e uma boa escovadela com agua e sabao, mantinham sordidamente suas escravas sexuais negras em plena pos-colonia; ou a dos ecos de permanentes conflitos de propriedade entre os ex-colonos grandes latifundiarios e criadores de gado e as comunidades pastoricias locais; ou a suprema crispacao da faculdade (onde conheci este outro kota) e da residencia universitaria - mas essas pertencem a outros registos.

Era, entao, uma cidade crispada com esparsos momentos de distencao.

Mas era preciso faze-los, ou ir encontra-los.

Como, numa das duas ou tres festas em que estive, no periodo de pouco mais de um ano em que la' vivi (tendo de la' regressado a Luanda com aquele que era sobrinho/afilhado do kota Hamilton, que la' havia nascido e que eu ja' conhecia dos tempos em que, ainda no tempo colonial, ele era colega de turma de uma das minhas irmas e era frequentemente motivo de galhofa la' em casa e, depois, do tempo das kanvwanzas de 74/75 em Luanda e que cerca de dois anos depois de termos vindo juntos do Lubango viria a ser o pai do meu filho e que, muitos anos depois, me diria que eu era "a mulher mais pudica que ele conhecera" - coitado deve andar a revolver-se na cova agora com certas "brincadeiras" que nos sao trazidas pelo vento que passa sabe-se la' vindo d'aonde... E a la' voltaria alguns anos mais tarde, com o meu filho - tendo dessa vez desembarcado numa cidade ja' mais ensolarada e de qualquer crispacao cortada por uma rosa de porcelana pela mao do kota Aires (... que, logo-logo, decidira que eu "sabia diferenciar um Monet de um Manet", apesar de nao saber que eu ja' tinha visto e estudado a obra de ambos nos Petit e Grand Palais de Paris...) e pelo re-inicio das festas da Senhora do Monte, depois da sua longa crispacao e congelamento no pos-independencia - para o lancamento do meu primeiro livro, sob o olhar sempre supervisor do kota Hamilton...), usando o meu vestido feito de pano do Kongo, desenhado por mim e talhado e costurado pela minha mae em Luanda, dancei rumba, soukouss e kwassa-kwassa como se nao houvesse amanha - havia la', na altura, uma pequena comunidade Bakongo ligada a universidade. E a minha mae, que ja' tinha visto a sua primeira filha, que chegara ate' ao setimo ano dos liceus ainda no periodo colonial, sumir sob a nuvem negra do 27 de Maio, tambem apareceu por la', em dois ou tres dias de crispacao, para se certificar de que eu estava mesmo la'... e viva!

Ou nas cerca de 15 vezes que desci a Serra da Leba, como num escorrega de infancia ou roller-coaster ride de feira (nela o nosso perito condutor e aventureiro-mor haveria, anos mais tarde, de perder a vida num aparatoso acidente...), quase em todas elas com grupo de aventureiros despreocupados, demandando os mangais do fundo da serra, as praias e o deserto do Namibe, a Baia das Pipas (... e as nossas magico-fantasticas pescarias sob o luar em meio-mar com os pescadores locais...), ou as caves do Tombwa e as gravuras rupestres do Tchitundo-Hulo... Uma vez, decidimos mudar a direccao da nossa bussula do sul para o norte e fomos ate' ao Lobito, por entre paisagens indescritiveis de que a memoria apenas guarda com maior vivacidade uns certos campos de girassois emergindo no horizonte como uma verdadeira ode a vida. De la' (mais precisamente do Hotel Terminus na restinga do Lobito) regressariamos, todos de comum acordo, com uma pequena cafeteira electrica que, decidiramos, nos ia dar muito geito na residencia universitaria, mas que apenas a mim (que, mui cristianamente, decidira assumir sozinha toda a mea culpa, apesar de por aqueles dias ainda ser oficialmente menor de idade...) iria servir uma bebida crispada que, como cafe' forte requentado sem acucar, me iria deixar um permanente travo amargo na garganta...