O amigo que no outro dia me fez saber do documentario “Oxala Crescam Pitangas”, agora mandou-me a edicao deste Domingo, 7 de Janeiro, do jornal ‘Publico’, ou melhor, do seu suplemento ‘Publica’, que inclui esta entrevista com o Kiluanje Liberdade, um dos seus realizadores (podera saber mais sobre ele e sobre o documentario aqui no ‘Muito Barulho por Nada’). Por se tratar de uma edicao protegida online, peco desde ja a indulgencia do ‘Publico’ e dos seus autores para esta pequena ‘pirataria’… E’ que a entrevista e’ interessante, oportuna e importante e dela so posto aqui uns extractos… Ideias fortes // Texto Ana Dias Cordeiro Fotografia Miguel Madeira
"Há um grande medo que Eduardo dos Santos desapareça sem haver transição"
Porque haveria o Presidente angolano de desaparecer? Independentemente dos rumores que circulam em Luanda sobre o seu estado de saúde, José Eduardo dos Santos devia começar já a transmitir poderes, não se recandidatar às presidenciais — cuja data provável será 2009 — e impor a mudança inadiável para dar esperança à população. É o que defende o cineasta de 30 anos Kiluanje Liberdade, que, juntamente com o escritor Ondjaki, realizou em 2006 “Oxalá Cresçam Pitangas — Histórias de Luanda” sobre uma cidade que é espelho de todo o país, no ténue fio que separa esperança e desespero. E que vive numa grande tensão social. E racial.
No filme “Oxalá Cresçam Pitangas”, uma personagem diz que Luanda é um “laboratório de sobrevivência”. Outra vê a cidade como “o maior parque de diversões do mundo”. Luanda é triste e alegre ao mesmo tempo?
A nossa ideia era dar uma imagem de esperança e lançar uma interrogação relativamente ao futuro. Queríamos, por outro lado, tentar inverter a imagem que o exterior e que o próprio interior têm de Angola. Mas Luanda é um sítio difícil. A tensão social é muito forte. Ter esperança é complicado, sobretudo para pessoas novas, mas ao mesmo tempo há algo que prende em Angola. É aquele caos e ao mesmo tempo um sítio onde muito facilmente se encontra criatividade para fazer as coisas. E isso prende muito em Luanda. Isso é o que mais me atrai.
O que será da cidade daqui a dez, 15 anos, quando crescerem esses miúdos que são centrais nela?
Essa é a expectativa que o filme deixa em aberto e a que não pode ter a pretensão de responder. É uma interrogação. E, ainda por cima, não são crianças que daqui a cinco anos vão estar no activo. São crianças que já estão no activo. Essa é a grande diferença.
Constrói-se um futuro assim?
A resposta mais fácil a essa pergunta seria provavelmente atacar uma classe política que deixa que isso aconteça. Desse ponto de vista, é difícil viver em Luanda, porque por mais optimista que se seja acaba-se sempre por se desconfiar e por não se ter esperança. Porque pouco está a ser feito. Mas, ao mesmo tempo, sente-se que aquelas pessoas não querem cair nesse abismo. Tem que se fazer um esforço, porque senão o melhor é esquecer Angola, esquecer Luanda, esquecer África.
Para essa imagem próxima do abismo não há quem tenha que ser responsabilizado?
No filme tentámos afastar-nos dessa ideia de responsabilizar sempre os dirigentes. Mas como é óbvio os dirigentes têm culpa, têm pouca atitude.
Nada nos governantes está a mudar?
Não se sente vontade nenhuma em mudar o rumo das coisas em Angola. Infelizmente isso tem que ser dito. Mas, por outro lado, sente-se na população uma grande vontade de avançar. A população sente que tem que ser ela a fazer as coisas. Isso é um sinal de esperança e, ao mesmo tempo, é muito preocupante. Luanda é uma cidade de contradições, em todos os seus aspectos. Sempre no fio entre a esperança e a não esperança, entre acreditar-se e não se acreditar. Sempre no fio e com muita tensão.
De onde vem essa tensão?
Existe tensão social entre negros, mulatos e brancos. Entre ricos, menos ricos e pobres. É uma tensão racial que não faz sentido existir num país como Angola e não se percebe de onde vem. Acabamos por confundir as coisas. Não sabemos se é uma tensão racial ou uma tensão racial por razões sociais. Os mulatos são sempre mais ricos que os negros. Por outro lado, brancos e mulatos não são aceites em determinadas áreas e por vezes chega a haver agressão. O negro que barra a entrada no bairro ao mulato será também excluído de muitas zonas no centro de Luanda. Existe esse movimento oposto entre centro e periferia em Luanda. Sente-se essa tensão.
E um abandono? As pessoas estão muito entregues a si próprias?
A pessoa está entregue a si mesma e ao seu próximo, ao seu familiar ou amigo, e é isso que a segura. É daí que saem os esquemas, os artifícios para sobreviver, é daí que começa a nascer alguma esperança. Porque, se se ficar à espera de uma coisa que aqui chamamos Estado, o melhor é esquecer. O dinheiro é a base de quase tudo. É a única forma através da qual uma pessoa consegue ter um determinado “status”. Não existe a ideia do “status” cultural. Simplesmente dinheiro. Os carros em Luanda são fundamentais. Exteriorizar sinais de riquezas é fundamental. Uma pessoa tem um problema de rejeição social, caso não tenha esse dinheiro, caso não consiga exteriorizar esses sinais de riqueza.
Para evitar entrar num ciclo de exclusão?
É a exteriorização que dá oportunidades. Se eu não parar com um Mercedes à porta de um hotel em Luanda, nem sequer me deixam entrar. Mas deixam entrar um branco ou um mulato. Entram em qualquer sítio. Eu próprio tenho a entrada barrada em alguns sítios. Amigos meus têm a entrada barrada em alguns sítios. Simplesmente porque somos negros. Acontece em hotéis ou em lojas nos novos condomínios que estão a surgir em Luanda. Um negro tem que exteriorizar riqueza e poder.
Os negros também estão excluídos dos cargos de poder?
O poder obedece a esquemas ainda muito mais sofisticados de racismo. Sente-se isso, e há tensão racial, o facto de se ser do Norte ou do Sul.
Por isso se fala de um risco de desintegração do país com eventual saída de cena de José Eduardo dos Santos? O argumento de que o Presidente é um garante da unidade de Angola tem fundamento?
Há um grande receio, para não dizer medo, que José Eduardo dos Santos desapareça sem haver uma transição.
Eduardo dos Santos devia recandidatar-se às presidenciais ou não?
Não, José Eduardo dos Santos tem que fazer a transmissão de poderes. Já teve o poder durante muito tempo. Só com uma transição de poder se pode começar a acreditar numa mudança. Porque, independentemente do que possa acontecer no início, se José Eduardo dos Santos sair, haverá mais esperança. Uma mudança em Angola é urgente. O que não pode acontecer é as coisas continuarem neste estado. Provavelmente as coisas não estão pior, porque ele lá está. Mas uma mudança é necessária. Se o povo não sentir mudança já, neste momento, se Angola continuar assim por mais cinco anos, quem é que vai acreditar?
As eleições não criam esperança?
É evidente que sim. Porque permite entrar num processo em que de cinco em cinco anos haverá eleições e com isso se sente que algo está a mudar. Mas não basta haver eleições. E o que não pode acontecer é no próximo ano o acto eleitoral continuar incerto.
Mas as eleições também suscitam receio? Uma das personagens no filme diz que as pessoas em Luanda só regressarão às províncias depois das eleições. Ainda há medo que as coisas corram mal, por causa do trauma de 1992?
Ainda há esse receio. É o medo misturado com o não saberem o que as espera nas províncias.
É o medo da guerra ou o medo de não sobreviver?
É um pouco um medo dessas duas coisas. Mas já não há condições para haver uma guerra em Angola. E mesmo que houvesse ninguém ia lutar nela.
KILUANJE LIBERDADE – CINEASTA
· Nasceu em Benguela em 1976. Até aos oito anos viveu em Luanda, onde se desloca várias vezes por ano por razões profissionais. Vive em Portugal.
· É assistente de fotografia, cineasta e videasta, depois de uma licenciatura em Gestão Cultural na Universidade Lusófona e dos cursos de Cinevídeo na Academia de Arte e Tecnologias e Vídeo no Instituto de Artes Visuais e Marketing, IADE, em Lisboa.
· Realizador do documentário “O Rap É Uma Arma” em 1996. Prémio para a Melhor Primeira Obra no Festival Internacional de Cinema Documental da Malaposta. Co-realizador do filme “Outros Bairros” com Inês Gonçalves e Vasco Pimentel em 1998. Assistente de realização e de imagem do documentário A Favor da Claridade , de Teresa Villaverde em 2003.
· “Oxalá Cresçam Pitangas – Histórias de Luanda” foi apresentado no DocLisboa em Outubro de 2006 e no Festival de Cinemas Africanos em Lisboa um mês depois.
O amigo que no outro dia me fez saber do documentario “Oxala Crescam Pitangas”, agora mandou-me a edicao deste Domingo, 7 de Janeiro, do jornal ‘Publico’, ou melhor, do seu suplemento ‘Publica’, que inclui esta entrevista com o Kiluanje Liberdade, um dos seus realizadores (podera saber mais sobre ele e sobre o documentario aqui no ‘Muito Barulho por Nada’). Por se tratar de uma edicao protegida online, peco desde ja a indulgencia do ‘Publico’ e dos seus autores para esta pequena ‘pirataria’… E’ que a entrevista e’ interessante, oportuna e importante e dela so posto aqui uns extractos…
Ideias fortes // Texto Ana Dias Cordeiro Fotografia Miguel Madeira
"Há um grande medo que Eduardo dos Santos desapareça sem haver transição"
Porque haveria o Presidente angolano de desaparecer? Independentemente dos rumores que circulam em Luanda sobre o seu estado de saúde, José Eduardo dos Santos devia começar já a transmitir poderes, não se recandidatar às presidenciais — cuja data provável será 2009 — e impor a mudança inadiável para dar esperança à população. É o que defende o cineasta de 30 anos Kiluanje Liberdade, que, juntamente com o escritor Ondjaki, realizou em 2006 “Oxalá Cresçam Pitangas — Histórias de Luanda” sobre uma cidade que é espelho de todo o país, no ténue fio que separa esperança e desespero. E que vive numa grande tensão social. E racial.
No filme “Oxalá Cresçam Pitangas”, uma personagem diz que Luanda é um “laboratório de sobrevivência”. Outra vê a cidade como “o maior parque de diversões do mundo”. Luanda é triste e alegre ao mesmo tempo?
A nossa ideia era dar uma imagem de esperança e lançar uma interrogação relativamente ao futuro. Queríamos, por outro lado, tentar inverter a imagem que o exterior e que o próprio interior têm de Angola. Mas Luanda é um sítio difícil. A tensão social é muito forte. Ter esperança é complicado, sobretudo para pessoas novas, mas ao mesmo tempo há algo que prende em Angola. É aquele caos e ao mesmo tempo um sítio onde muito facilmente se encontra criatividade para fazer as coisas. E isso prende muito em Luanda. Isso é o que mais me atrai.
O que será da cidade daqui a dez, 15 anos, quando crescerem esses miúdos que são centrais nela?
Essa é a expectativa que o filme deixa em aberto e a que não pode ter a pretensão de responder. É uma interrogação. E, ainda por cima, não são crianças que daqui a cinco anos vão estar no activo. São crianças que já estão no activo. Essa é a grande diferença.
Constrói-se um futuro assim?
A resposta mais fácil a essa pergunta seria provavelmente atacar uma classe política que deixa que isso aconteça. Desse ponto de vista, é difícil viver em Luanda, porque por mais optimista que se seja acaba-se sempre por se desconfiar e por não se ter esperança. Porque pouco está a ser feito. Mas, ao mesmo tempo, sente-se que aquelas pessoas não querem cair nesse abismo. Tem que se fazer um esforço, porque senão o melhor é esquecer Angola, esquecer Luanda, esquecer África.
Para essa imagem próxima do abismo não há quem tenha que ser responsabilizado?
No filme tentámos afastar-nos dessa ideia de responsabilizar sempre os dirigentes. Mas como é óbvio os dirigentes têm culpa, têm pouca atitude.
Nada nos governantes está a mudar?
Não se sente vontade nenhuma em mudar o rumo das coisas em Angola. Infelizmente isso tem que ser dito. Mas, por outro lado, sente-se na população uma grande vontade de avançar. A população sente que tem que ser ela a fazer as coisas. Isso é um sinal de esperança e, ao mesmo tempo, é muito preocupante. Luanda é uma cidade de contradições, em todos os seus aspectos. Sempre no fio entre a esperança e a não esperança, entre acreditar-se e não se acreditar. Sempre no fio e com muita tensão.
De onde vem essa tensão?
Existe tensão social entre negros, mulatos e brancos. Entre ricos, menos ricos e pobres. É uma tensão racial que não faz sentido existir num país como Angola e não se percebe de onde vem. Acabamos por confundir as coisas. Não sabemos se é uma tensão racial ou uma tensão racial por razões sociais. Os mulatos são sempre mais ricos que os negros. Por outro lado, brancos e mulatos não são aceites em determinadas áreas e por vezes chega a haver agressão. O negro que barra a entrada no bairro ao mulato será também excluído de muitas zonas no centro de Luanda. Existe esse movimento oposto entre centro e periferia em Luanda. Sente-se essa tensão.
E um abandono? As pessoas estão muito entregues a si próprias?
A pessoa está entregue a si mesma e ao seu próximo, ao seu familiar ou amigo, e é isso que a segura. É daí que saem os esquemas, os artifícios para sobreviver, é daí que começa a nascer alguma esperança. Porque, se se ficar à espera de uma coisa que aqui chamamos Estado, o melhor é esquecer. O dinheiro é a base de quase tudo. É a única forma através da qual uma pessoa consegue ter um determinado “status”. Não existe a ideia do “status” cultural. Simplesmente dinheiro. Os carros em Luanda são fundamentais. Exteriorizar sinais de riquezas é fundamental. Uma pessoa tem um problema de rejeição social, caso não tenha esse dinheiro, caso não consiga exteriorizar esses sinais de riqueza.
Para evitar entrar num ciclo de exclusão?
É a exteriorização que dá oportunidades. Se eu não parar com um Mercedes à porta de um hotel em Luanda, nem sequer me deixam entrar. Mas deixam entrar um branco ou um mulato. Entram em qualquer sítio. Eu próprio tenho a entrada barrada em alguns sítios. Amigos meus têm a entrada barrada em alguns sítios. Simplesmente porque somos negros. Acontece em hotéis ou em lojas nos novos condomínios que estão a surgir em Luanda. Um negro tem que exteriorizar riqueza e poder.
Os negros também estão excluídos dos cargos de poder?
O poder obedece a esquemas ainda muito mais sofisticados de racismo. Sente-se isso, e há tensão racial, o facto de se ser do Norte ou do Sul.
Por isso se fala de um risco de desintegração do país com eventual saída de cena de José Eduardo dos Santos? O argumento de que o Presidente é um garante da unidade de Angola tem fundamento?
Há um grande receio, para não dizer medo, que José Eduardo dos Santos desapareça sem haver uma transição.
Eduardo dos Santos devia recandidatar-se às presidenciais ou não?
Não, José Eduardo dos Santos tem que fazer a transmissão de poderes. Já teve o poder durante muito tempo. Só com uma transição de poder se pode começar a acreditar numa mudança. Porque, independentemente do que possa acontecer no início, se José Eduardo dos Santos sair, haverá mais esperança. Uma mudança em Angola é urgente. O que não pode acontecer é as coisas continuarem neste estado. Provavelmente as coisas não estão pior, porque ele lá está. Mas uma mudança é necessária. Se o povo não sentir mudança já, neste momento, se Angola continuar assim por mais cinco anos, quem é que vai acreditar?
As eleições não criam esperança?
É evidente que sim. Porque permite entrar num processo em que de cinco em cinco anos haverá eleições e com isso se sente que algo está a mudar. Mas não basta haver eleições. E o que não pode acontecer é no próximo ano o acto eleitoral continuar incerto.
Mas as eleições também suscitam receio? Uma das personagens no filme diz que as pessoas em Luanda só regressarão às províncias depois das eleições. Ainda há medo que as coisas corram mal, por causa do trauma de 1992?
Ainda há esse receio. É o medo misturado com o não saberem o que as espera nas províncias.
É o medo da guerra ou o medo de não sobreviver?
É um pouco um medo dessas duas coisas. Mas já não há condições para haver uma guerra em Angola. E mesmo que houvesse ninguém ia lutar nela.
KILUANJE LIBERDADE – CINEASTA
· Nasceu em Benguela em 1976. Até aos oito anos viveu em Luanda, onde se desloca várias vezes por ano por razões profissionais. Vive em Portugal.
· É assistente de fotografia, cineasta e videasta, depois de uma licenciatura em Gestão Cultural na Universidade Lusófona e dos cursos de Cinevídeo na Academia de Arte e Tecnologias e Vídeo no Instituto de Artes Visuais e Marketing, IADE, em Lisboa.
· Realizador do documentário “O Rap É Uma Arma” em 1996. Prémio para a Melhor Primeira Obra no Festival Internacional de Cinema Documental da Malaposta. Co-realizador do filme “Outros Bairros” com Inês Gonçalves e Vasco Pimentel em 1998. Assistente de realização e de imagem do documentário A Favor da Claridade , de Teresa Villaverde em 2003.
· “Oxalá Cresçam Pitangas – Histórias de Luanda” foi apresentado no DocLisboa em Outubro de 2006 e no Festival de Cinemas Africanos em Lisboa um mês depois.
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