Wednesday 10 October 2007

O CIDADAO EM ANGOLA*

“14 anos”… Esse e’ um ‘periodo temporal’ que, qualquer que seja o contexto em que se insira, me sugere, invariavelmente, os 14 anos… “de luta armada” de que qualquer Angolano que tenha vivido suficientemente Angola e em Angola nas ultimas 3 decadas tera’ certamente ouvido falar a saciedade.
Pois bem, nos ultimos dias deu-me para ir reler um texto que escrevi, apresentei e publiquei em 1993, em Lisboa, e que aqui hoje ‘posto’ (infelizmente sem os acentos…).


O CIDADAO EM ANGOLA

Uma reflexao sobre a questao da cidadania em Angola obriga-nos, em primeiro lugar, a uma abordagem do proprio conceito de cidadao, o que nos remete a definicao classica, originaria da tradicao socio-politica europeia, segundo a qual “um cidadao e’ o habitante de uma cidade ou individuo que goze plenamente dos direitos civis e politicos de um Estado livre, nomeadamente do direito ao voto”.
(…) Chegamos entao a conclusao de que a “tradicao africana” como “factor impeditivo” do exercicio pleno de uma Democracia no nosso pais, nao e’ mais do que um debil subterfugio para a legitimacao do nepotismo e de todas as tentacoes totalitarias. Por outro lado, apesar de seculos de abusos contra a pessoa humana sob o regime colonial-fascista, os angolanos, enquanto cidadaos, souberam forjar uma tradicao de afirmacao e reivindicacao que confere o maximo fundamento a estruturacao da sociedade civil na Angola dos dias de hoje.
(…) Para tal contribuiram significativamente, desde o inicio deste seculo, varias associacoes de caracter civico, umas nascidas na entao metropole (como a Liga Ultramarina, a Liga Colonial, a Junta de Defesa dos Direitos de Africa e o Partido Africano, criados em Lisboa entre 1910 e 1912) e outras em Angola (como a Liga Angolana e o Gremio Africano de 1912 ou a Associacao dos Naturais de Angola – ANANGOLA – e a Liga Nacional Africana, nascidas em Luanda em 1930.



(…) O fenomeno do associativismo civico multiplica-se um pouco por todo o pais e, entre 1953 e 1957, assiste-se ao surgimento da Organizacao Cultural dos Angolanos (OCA) no Lobito, da Associacao Africana do Sul de Angola (AASA) no Huambo, do Grupo Avante no Bie’, do Grupo Ohio no Bailundo, ou da Uniao dos Naturais de Angola (UNATA) no Lubango e em Mocamedes. De sublinhar tambem o papel relevante na defesa dos direitos dos cidadaos que assumiram varias das publicacoes editadas por essas associacoes, como “A Defesa de Angola” de 1904, “A Voz de Angola” de 1908 e o “Angolense” de 1907 em Luanda, a “Folha do Sul” de 1905 em Novo Redondo, o “Boletim Anunciador de Benguela” de 1910, o “Correio de Mossamedes” de 1906, ou ainda “O Negro” de 1911 e a “Voz d’Africa” de 1912, editados em Lisboa.
(…) A imposicao da chamada “ditadura do proletariado” fez com que os cidadaos se vissem privados, durante quase duas decadas, quer do direito fundamental ao voto, quer do direito de emitirem livremente as suas opinioes, num pais onde a imprensa era, ate’ ha’ bem pouco tempo, inteiramente controlada pelo partido-estado; de professarem, sem constrangimentos, as suas confissoes religiosas; ou ainda de educarem os seus filhos de acordo com os valores eticos e morais, herdados quer da cultura tradicional angolana, quer do contacto com os europeus, que noutros tempos fizeram com que Angola pudesse ser considerada um "pais civilizado".


(…) Essa reelaboracao possibilitaria, no interior do pais, o exercicio de uma pratica politica quotidianamente democratica, que concederia aos cidadaos o controlo de todo o sistema de actividades que constituem a nossa base civilizacional e facilitaria o tao ansiado regresso a Patria de tantos de nos que pugnamos por uma organizacao social eficiente e por um relacionamento entre os individuos onde o comportamento social digno e honesto ou o respeito pela liberdade, individualidade e direito a diferenca do outro, sao valores a cumprir escrupulosamente, e temos dificuldade em adaptarmo-nos a uma ordem social onde, ao interesse do cidadao nacional se sobrepoe amiude o poder economico ou o prestigio social que, quantas vezes injustificada e injustamente, sao concedidos ao cidadao estrangeiro; onde aos direitos do individuo se sobrepoe o poder discricionario de um estado cujas instituicoes raramente funcionam sem que tambem funcionem os esquemas da corrupcao mais ou menos generalizada; onde ‘a dignidade dos grandes valores, se sobrepoe, voluntaria ou involuntariamente, a “nomenclatura” das “grandes familias”.
(…) Porque ja’ vai longa esta nossa intervencao, gostariamos, Caros concidadaos, de rogar a vossa atencao para alguns extractos de um discurso produzido, em 1754, por um dos protagonistas do nascimento do Estado moderno e um dos fundadores do conceito de cidadania, Jean-Jacques Rousseau: “Magnificos, Muito Honrados e Soberanos Senhores: (…) Se eu tivesse de escolher o lugar do meu nascimento, teria escolhido uma sociedade de uma grandeza limitada pelo alcance das faculdades humanas, ou seja, pela possibilidade de ser bem governada. (…)Teria querido viver e morrer livre, ou seja, de tal modo submetido as leis, que nem eu nem ninguem pudesse subverter o seu honroso jugo, esse jugo salutar e benigno que as cabecas mais nobres suportam com tanta mais docilidade quanto elas nao sao feitas para suportar qualquer outro.

(…) Nao poderia, minhas Senhoras e meus Senhores, deixar de fazer, antes de terminar, uma referencia particular a situacao da Mulher Angolana – essa fonte previligiada da cidadania, porque mae e educadora dos cidadaos. A mulher sera’, porventura, dentre o conjunto de cidadaos angolanos, quem mais frequente e pungentemente tem sido privada dos seus mais elementares direitos enquanto Pessoa.
(…) No discurso acima citado, Rousseau tambem nao se esqueceu das mulheres, tendo-se a elas assim dirigido: “Poderia eu esquecer essa preciosa metade da Republica que faz a felicidade da outra e cuja docura e sabedoria manteem a paz e os bons costumes? Amaveis e virtuosas cidadas, pertence-vos a vos manter sempre atraves do vosso poder amavel, o amor das leis no Estado e a concordia entre os cidadaos…”
(…) Convido-vos, pois, minhas Senhoras e meus Senhores, porque os cidadaos tambem teem deveres, a que contribuamos todos para que Angola possa ser a feliz Patria com que, tal como Rousseau ha’ mais de dois seculos atras, os nossos antepassados sempre sonharam.

*Texto de alocucao apresentada pela autora a um Encontro de Angolanos e Amigos de Angola, realizado em Lisboa em 1993. Publicado em “O Cidadao” – Revista da Associacao Portuguesa dos Direitos dos Cidadaos (Ano 1, No. 2, Segundo trimestre de 1993)

Ler texto integral aqui.


“14 anos”… Esse e’ um ‘periodo temporal’ que, qualquer que seja o contexto em que se insira, me sugere, invariavelmente, os 14 anos… “de luta armada” de que qualquer Angolano que tenha vivido suficientemente Angola e em Angola nas ultimas 3 decadas tera’ certamente ouvido falar a saciedade.
Pois bem, nos ultimos dias deu-me para ir reler um texto que escrevi, apresentei e publiquei em 1993, em Lisboa, e que aqui hoje ‘posto’ (infelizmente sem os acentos…).


O CIDADAO EM ANGOLA

Uma reflexao sobre a questao da cidadania em Angola obriga-nos, em primeiro lugar, a uma abordagem do proprio conceito de cidadao, o que nos remete a definicao classica, originaria da tradicao socio-politica europeia, segundo a qual “um cidadao e’ o habitante de uma cidade ou individuo que goze plenamente dos direitos civis e politicos de um Estado livre, nomeadamente do direito ao voto”.
(…) Chegamos entao a conclusao de que a “tradicao africana” como “factor impeditivo” do exercicio pleno de uma Democracia no nosso pais, nao e’ mais do que um debil subterfugio para a legitimacao do nepotismo e de todas as tentacoes totalitarias. Por outro lado, apesar de seculos de abusos contra a pessoa humana sob o regime colonial-fascista, os angolanos, enquanto cidadaos, souberam forjar uma tradicao de afirmacao e reivindicacao que confere o maximo fundamento a estruturacao da sociedade civil na Angola dos dias de hoje.
(…) Para tal contribuiram significativamente, desde o inicio deste seculo, varias associacoes de caracter civico, umas nascidas na entao metropole (como a Liga Ultramarina, a Liga Colonial, a Junta de Defesa dos Direitos de Africa e o Partido Africano, criados em Lisboa entre 1910 e 1912) e outras em Angola (como a Liga Angolana e o Gremio Africano de 1912 ou a Associacao dos Naturais de Angola – ANANGOLA – e a Liga Nacional Africana, nascidas em Luanda em 1930.


(…) O fenomeno do associativismo civico multiplica-se um pouco por todo o pais e, entre 1953 e 1957, assiste-se ao surgimento da Organizacao Cultural dos Angolanos (OCA) no Lobito, da Associacao Africana do Sul de Angola (AASA) no Huambo, do Grupo Avante no Bie’, do Grupo Ohio no Bailundo, ou da Uniao dos Naturais de Angola (UNATA) no Lubango e em Mocamedes. De sublinhar tambem o papel relevante na defesa dos direitos dos cidadaos que assumiram varias das publicacoes editadas por essas associacoes, como “A Defesa de Angola” de 1904, “A Voz de Angola” de 1908 e o “Angolense” de 1907 em Luanda, a “Folha do Sul” de 1905 em Novo Redondo, o “Boletim Anunciador de Benguela” de 1910, o “Correio de Mossamedes” de 1906, ou ainda “O Negro” de 1911 e a “Voz d’Africa” de 1912, editados em Lisboa.
(…) A imposicao da chamada “ditadura do proletariado” fez com que os cidadaos se vissem privados, durante quase duas decadas, quer do direito fundamental ao voto, quer do direito de emitirem livremente as suas opinioes, num pais onde a imprensa era, ate’ ha’ bem pouco tempo, inteiramente controlada pelo partido-estado; de professarem, sem constrangimentos, as suas confissoes religiosas; ou ainda de educarem os seus filhos de acordo com os valores eticos e morais, herdados quer da cultura tradicional angolana, quer do contacto com os europeus, que noutros tempos fizeram com que Angola pudesse ser considerada um "pais civilizado".


(…) Essa reelaboracao possibilitaria, no interior do pais, o exercicio de uma pratica politica quotidianamente democratica, que concederia aos cidadaos o controlo de todo o sistema de actividades que constituem a nossa base civilizacional e facilitaria o tao ansiado regresso a Patria de tantos de nos que pugnamos por uma organizacao social eficiente e por um relacionamento entre os individuos onde o comportamento social digno e honesto ou o respeito pela liberdade, individualidade e direito a diferenca do outro, sao valores a cumprir escrupulosamente, e temos dificuldade em adaptarmo-nos a uma ordem social onde, ao interesse do cidadao nacional se sobrepoe amiude o poder economico ou o prestigio social que, quantas vezes injustificada e injustamente, sao concedidos ao cidadao estrangeiro; onde aos direitos do individuo se sobrepoe o poder discricionario de um estado cujas instituicoes raramente funcionam sem que tambem funcionem os esquemas da corrupcao mais ou menos generalizada; onde ‘a dignidade dos grandes valores, se sobrepoe, voluntaria ou involuntariamente, a “nomenclatura” das “grandes familias”.
(…) Porque ja’ vai longa esta nossa intervencao, gostariamos, Caros concidadaos, de rogar a vossa atencao para alguns extractos de um discurso produzido, em 1754, por um dos protagonistas do nascimento do Estado moderno e um dos fundadores do conceito de cidadania, Jean-Jacques Rousseau: “Magnificos, Muito Honrados e Soberanos Senhores: (…) Se eu tivesse de escolher o lugar do meu nascimento, teria escolhido uma sociedade de uma grandeza limitada pelo alcance das faculdades humanas, ou seja, pela possibilidade de ser bem governada. (…)Teria querido viver e morrer livre, ou seja, de tal modo submetido as leis, que nem eu nem ninguem pudesse subverter o seu honroso jugo, esse jugo salutar e benigno que as cabecas mais nobres suportam com tanta mais docilidade quanto elas nao sao feitas para suportar qualquer outro.

(…) Nao poderia, minhas Senhoras e meus Senhores, deixar de fazer, antes de terminar, uma referencia particular a situacao da Mulher Angolana – essa fonte previligiada da cidadania, porque mae e educadora dos cidadaos. A mulher sera’, porventura, dentre o conjunto de cidadaos angolanos, quem mais frequente e pungentemente tem sido privada dos seus mais elementares direitos enquanto Pessoa.
(…) No discurso acima citado, Rousseau tambem nao se esqueceu das mulheres, tendo-se a elas assim dirigido: “Poderia eu esquecer essa preciosa metade da Republica que faz a felicidade da outra e cuja docura e sabedoria manteem a paz e os bons costumes? Amaveis e virtuosas cidadas, pertence-vos a vos manter sempre atraves do vosso poder amavel, o amor das leis no Estado e a concordia entre os cidadaos…”
(…) Convido-vos, pois, minhas Senhoras e meus Senhores, porque os cidadaos tambem teem deveres, a que contribuamos todos para que Angola possa ser a feliz Patria com que, tal como Rousseau ha’ mais de dois seculos atras, os nossos antepassados sempre sonharam.

*Texto de alocucao apresentada pela autora a um Encontro de Angolanos e Amigos de Angola, realizado em Lisboa em 1993. Publicado em “O Cidadao” – Revista da Associacao Portuguesa dos Direitos dos Cidadaos (Ano 1, No. 2, Segundo trimestre de 1993)

Ler texto integral aqui.


3 comments:

Anonymous said...

Ora aqui está um bom exemplo de um benévolo “sindicato luso-angolano”. Mais uma vez, com a devida vênia, PARABÉNS!

Koluki said...

Obrigada, amigo Kaluanda.
Efectivamente, aquele era um tempo em que, nao so' o reacender da guerra depois das eleicoes de 1992 facilitava a mobilizacao de espiritos benevolos para o bem de Angola, como tambem ainda estavam longe os tempos de "vertiginosas taxas de crescimento" que, aparentemente, teem acirrado de tal forma a cobica e os sentimentos mesquinhos de muitos, que o "portugal dos pequeninos" parece estar a eclipsar o "Portugal dos Grandes" que, entre outras causas nobres, fazia essa Revista e que tive a honra e o previlegio de conhecer naquela altura. Pena.

Koluki said...
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