Por ocasião da passagem do dia do Herói Nacional, assistimos à profusão de noticiário evocativo da figura de António de Agostinho Neto, ex-presidente de Angola, o primeiro da era pós-independência. Não fosse a memória reservada e certa de que heróis temos desde a chegada de Diogo Cão ao reino do Congo e estaríamos a induzir defeituosamente as gerações presentes e as vindouras na ideia vil, torpe e falsa de que antes de Neto eram ‹‹tudo maricas››, num deserto de actos de bravura e de heroísmo pelos ideais da resistência.
O que me inquieta afinal? Que os partidários de Agostinho Neto e os membros da sua família lhe promovam até à exaustão os feitos passados, ora com excessiva e divina lucidez ora com descomedida mas genuína intolerância. Que as sobreviventes ‹‹elites›› políticas, partidos incluídos, se remetam ao calar consentido que os torna cúmplices de narrativas que resultam em adulteração da história. Não pode ser por essas omissões que devemos assistir ao instalar da falta de clareza e a instalar-se com a cumplicidade leviana do perdão e da fraude em nome da mediocridade.
Há muito, e não apenas por razões de afecto, acompanho a vida e obra de Agostinho Neto. No seu colo andaria no tempo em que nascia, bem perto da casa que compartilhou com meu pai, seu amigo e companheiro, na velha e famosa 15 de Agosto da distante Malange dos anos quarenta e sete. Ele, então amanuense dos Serviços de Saúde, e meu pai enfermeiro, ambos destacados para servir naquela região. Lá está a lápide evocativa, no conjunto das vivendas coloniais, propriedade dos herdeiros do velho Clara.
Mas nada pode justificar que Neto seja erigido a mito. Neto tem obra e tem feitos suficientes para ser evocado e as circunstâncias da história fizeram dele um figura célebre, fosse quando fundou o seu MIA, fosse quando foi chamado a assumir a presidência do partido que ajudaria a erguer, fosse ainda quando se impôs como primeiro Presidente da nascente Nação Angolana. Coisa diferente é pois que assistamos, impávidos, ao contar da história com omissão dos demais dos seus protagonistas, e já não só hierarquizando-os como ainda lhes desqualificando as intervenções: como se fossem todos imberbes, todos abúlicos seguidores do iluminado que só tinha discípulos e que, por isso, lhes ditava as profecias. Não é admissível a ninguém com um mínimo de lucidez ignorar que a grandeza do partido que Agostinho Neto ajudaria a erguer, não a fundar, só o é na medida em que tenha sido feito e servido por homens e mulheres portadores de um manancial de competências fora do comum, a que não se pode deixar de juntar uma abnegação heróica em nome de causas superiores, que tão bem se propuseram e souberam servir até ao fim dos seus dias. É exactamente esse manancial de competências que terá dado lugar a lutas internas, dissensões e fracções, baseadas em ocorrências reais graves, a última das quais os viria a dividir para desgraça nossa, irremediavelmente. Não é como a kota Maria Eugénia diz, serem todos desonestos, protegendo o seu Camarada Presidente, que nunca quis afastar ninguém, assacando aos outros o ónus de um pretenso distanciamento voluntário, quando o processo começou a enfrentar maiores adversidades. Não é bom ouvir de uma militante abnegada e respeitável, a quem todos tanto devemos, o uso dos adjectivos desqualificativos com que mimoseia os companheiros do seu camarada Presidente Neto, no limite tendo-os como oportunistas, que mais não almejavam que abocanhar o pedaço do Leão (e quem era o leão Kota Maria Eugénia?). Os intelectuais, os políticos e os intervenientes da vida cívica têm de estar sempre à altura e ao serviço das circunstâncias, das urgências e das necessidades. O desejo de conservar o domínio da liderança fez Agostinho Neto negar aos demais a oportunidade da discussão interna dos problemas de que o movimento gravemente padecia, assim confirmando o autoritarismo de que era acusado, sempre frio, inclemente e rude nos propósitos e com total indiferença pelos outros.
Era mesmo esse leão (a expressão é sua, pois Gentil Viana preferiu cognominá-lo Taurus) agora já inebriado pelo poder que optaria por não mudar o rumo, porque não disposto a partilha-lo. E se a história é uma comparação permanente de factos, Neto viria a sofrer-lhes os efeitos num novo levantamento de militantes outra vez descontentes, no qual seria, por uns dado como vítima e por outros por carrasco, no tristemente célebre 27 de Maio de 1977. A sua história continua por contar.
Não se desvalorizam as convicções de Neto face às dos demais dos seus camaradas, mas não se pode, em perfeito juízo, ter por quimeras os factos que estão na origem do aparecimento da Revolta Activa e da Revolta do Leste. É excessivo, inadmissível e inqualificável tomá-los por oportunistas e criminosos como fez a Kota Maria Eugénia, na sua última e desastrada intervenção pública. Não pode e não deve vexar sem a menor dose de afecto os homens e as mulheres, personalidades empenhadas que mais não pretenderam que, por direito e em igualdade de circunstâncias, gritar pela res-ponsabilidade e pela cidadania e dessa forma bolear as arestas dos ódios que ciclicamente renasciam no seio do movimento. Sob pena de se prestar a, cada vez que lhe derem voz, apresentar a história como um conto de fadas e o seu Camarada Presidente como uma personalidade fictícia. Um reflexo povoado dos seus desejos. O seu véu de Maya!
Chipenda um servidor da PIDE? A FNLA um movimento de bárbaros que matava bailundos?! Ó Kota Maria Eugénia como é então você?!...
O que me inquieta afinal? Que os partidários de Agostinho Neto e os membros da sua família lhe promovam até à exaustão os feitos passados, ora com excessiva e divina lucidez ora com descomedida mas genuína intolerância. Que as sobreviventes ‹‹elites›› políticas, partidos incluídos, se remetam ao calar consentido que os torna cúmplices de narrativas que resultam em adulteração da história. Não pode ser por essas omissões que devemos assistir ao instalar da falta de clareza e a instalar-se com a cumplicidade leviana do perdão e da fraude em nome da mediocridade.
Há muito, e não apenas por razões de afecto, acompanho a vida e obra de Agostinho Neto. No seu colo andaria no tempo em que nascia, bem perto da casa que compartilhou com meu pai, seu amigo e companheiro, na velha e famosa 15 de Agosto da distante Malange dos anos quarenta e sete. Ele, então amanuense dos Serviços de Saúde, e meu pai enfermeiro, ambos destacados para servir naquela região. Lá está a lápide evocativa, no conjunto das vivendas coloniais, propriedade dos herdeiros do velho Clara.
Mas nada pode justificar que Neto seja erigido a mito. Neto tem obra e tem feitos suficientes para ser evocado e as circunstâncias da história fizeram dele um figura célebre, fosse quando fundou o seu MIA, fosse quando foi chamado a assumir a presidência do partido que ajudaria a erguer, fosse ainda quando se impôs como primeiro Presidente da nascente Nação Angolana. Coisa diferente é pois que assistamos, impávidos, ao contar da história com omissão dos demais dos seus protagonistas, e já não só hierarquizando-os como ainda lhes desqualificando as intervenções: como se fossem todos imberbes, todos abúlicos seguidores do iluminado que só tinha discípulos e que, por isso, lhes ditava as profecias. Não é admissível a ninguém com um mínimo de lucidez ignorar que a grandeza do partido que Agostinho Neto ajudaria a erguer, não a fundar, só o é na medida em que tenha sido feito e servido por homens e mulheres portadores de um manancial de competências fora do comum, a que não se pode deixar de juntar uma abnegação heróica em nome de causas superiores, que tão bem se propuseram e souberam servir até ao fim dos seus dias. É exactamente esse manancial de competências que terá dado lugar a lutas internas, dissensões e fracções, baseadas em ocorrências reais graves, a última das quais os viria a dividir para desgraça nossa, irremediavelmente. Não é como a kota Maria Eugénia diz, serem todos desonestos, protegendo o seu Camarada Presidente, que nunca quis afastar ninguém, assacando aos outros o ónus de um pretenso distanciamento voluntário, quando o processo começou a enfrentar maiores adversidades. Não é bom ouvir de uma militante abnegada e respeitável, a quem todos tanto devemos, o uso dos adjectivos desqualificativos com que mimoseia os companheiros do seu camarada Presidente Neto, no limite tendo-os como oportunistas, que mais não almejavam que abocanhar o pedaço do Leão (e quem era o leão Kota Maria Eugénia?). Os intelectuais, os políticos e os intervenientes da vida cívica têm de estar sempre à altura e ao serviço das circunstâncias, das urgências e das necessidades. O desejo de conservar o domínio da liderança fez Agostinho Neto negar aos demais a oportunidade da discussão interna dos problemas de que o movimento gravemente padecia, assim confirmando o autoritarismo de que era acusado, sempre frio, inclemente e rude nos propósitos e com total indiferença pelos outros.
Era mesmo esse leão (a expressão é sua, pois Gentil Viana preferiu cognominá-lo Taurus) agora já inebriado pelo poder que optaria por não mudar o rumo, porque não disposto a partilha-lo. E se a história é uma comparação permanente de factos, Neto viria a sofrer-lhes os efeitos num novo levantamento de militantes outra vez descontentes, no qual seria, por uns dado como vítima e por outros por carrasco, no tristemente célebre 27 de Maio de 1977. A sua história continua por contar.
Não se desvalorizam as convicções de Neto face às dos demais dos seus camaradas, mas não se pode, em perfeito juízo, ter por quimeras os factos que estão na origem do aparecimento da Revolta Activa e da Revolta do Leste. É excessivo, inadmissível e inqualificável tomá-los por oportunistas e criminosos como fez a Kota Maria Eugénia, na sua última e desastrada intervenção pública. Não pode e não deve vexar sem a menor dose de afecto os homens e as mulheres, personalidades empenhadas que mais não pretenderam que, por direito e em igualdade de circunstâncias, gritar pela res-ponsabilidade e pela cidadania e dessa forma bolear as arestas dos ódios que ciclicamente renasciam no seio do movimento. Sob pena de se prestar a, cada vez que lhe derem voz, apresentar a história como um conto de fadas e o seu Camarada Presidente como uma personalidade fictícia. Um reflexo povoado dos seus desejos. O seu véu de Maya!
Chipenda um servidor da PIDE? A FNLA um movimento de bárbaros que matava bailundos?! Ó Kota Maria Eugénia como é então você?!...
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[DECLARACOES DE EUGENIA NETO AQUI]
2 comments:
Sem duvida que as recentes declaracoes de Eugenia Neto sobre o seu falecido marido e a sua versao da historia do MPLA deixam muito “pano para mangas” ou “agua pela barba”… Mas, por entre as mais obviamente desconcertantes, nao posso deixar de comentar brevemente pelo menos tres que me deixaram deveras intrigada:
1. «Eles fazem isso por malandrice porque os filhos deles são mestiços. Canalhamente fazem isso. Neto nunca discriminou ninguém. Se ele em relação aos negros de todo o mundo, como descrevia na sua poesia, sacrificou-se aqui em Angola por causa dos negros da África do Sul, da Namíbia e do Zimbabué, como é que ele ia discriminar? São acusações dos bandidos.» (Sobre as acusações a respeito de um alegado favorecimento de Agostinho Neto aos mestiços dentro do MPLA.)
Depois de ler e reler essa tirada, ocorreu-me que talvez tivesse havido ai uma gralha onde se le “porque os filhos deles são mestiços”. Nao teria ela, porventura, dito antes “porque os filhos dele são mestiços”? Apenas quem ouviu, ou produziu, a entrevista original da LAC estara’ em condicoes de asseverar qual das duas possiveis versoes sera’ fidedigna. De qualquer modo, a acreditar nesta transcricao do SA, nao posso deixar de me interrogar sobre que processos psicologicos tornam diferentes as posturas dos tais “bandidos, pais de filhos mestiços” em relacao a questao da raca no MPLA e as dela propria e de Neto sobre a mesma questao face ao facto de eles tambem terem feito filhos mesticos?
[E, ja’ agora, sugiro a leitura, ou releitura, dos comentarios a este (http://koluki.blogspot.com/2008/07/ecos-da-imprensa-angolana-16.html) post, sobre uma materia de algum modo relacionada com esta, publicada pelo mesmo jornal no ano passado.]
(Continua...)
(Cont.)
2. «Eu quando fui a Cabo Verde estava lá o nosso embaixador Kiluanje e eu disse: “Oh, camarada Kiluanje! Como é que vocês arranjam essa brincadeira desse fraccionismo? O que foi que fizeram que não queriam que a direcção soubesse? Porque que vocês mataram o Casimiro? Disse em resposta: ele começou a trocar com o povo galinha por lápis. Então, ele tinha fome e o povo recebia a instrução.»
Confesso que esta deixou-me simplesmente “sem comentarios” porque nao entendi patavina! A nao ser, talvez, que para alguns, “essa brincadeira do fraccionismo nao passou de uma coisa de esfomeados ladroes de galinhas”… em troca de lapis e instrucao para o povo!?
3. (…) Eugénia Neto abordava sem rodeio sobre estas e outras situações que ela considerou desonrosas para aqueles nacionalistas e intelectuais. Mas foi quando falava sobre a geração seguinte que o discurso se tornou mais cáustico. «Depois é que vêm esses nossos. Uma garotada – não tem outro nome – que se meteram armados em líderes e não teve respeito por aquilo que os outros tinham passado na guerrilha. Pode ser que os guerrilheiros não lhes tivessem dado a importância que eles julgaram que mereciam, mas isso não justifica eles venderem-se à União Soviética e a outras forças, os portugueses incluídos.»
Muito provavelmente, a “garotada” aqui referida e’ aquela a que aludo num debate que parcialmente aqui transcrevi recentemente (http://koluki.blogspot.com/2009/08/falando-de-intelectualismos-ii.html): ”(…) Para mim, uma politica de educacao racional naquela altura resumir-se-ia a nao deixar falir o sistema existente, manter as suas estruturas e modus operandi, tentar de todos os modos e tanto quanto possivel cobrir as lacunas que iam sendo deixadas pelos professores que se retiravam e, acima de tudo, nao permitir que a massa de quadros deixada pelo colono, ja consideravel por standards africanos, se perdesse (mas o que aconteceu foi que, a que restou do emprisionamento dos CACs, Hendas, OCAs e Jose Stalines, foi praticamente toda dizimada no 27 de Maio...). Este eh o problema que estamos cum ele ate hoje!” Onde tambem afirmava que ”(…) Aqui devo chamar atencao para uma outra caracteristica bastante perversa do discurso retorico do nosso "movimento independentista" e que deu origem a muitas das distorcoes a que a sociedade angolana foi submetida: escondido por detras desse "os que lutaram" ha a implicacao que foram so os que lutaram nos maquis ou no exilio que "lutaram" e que nacionalismo eh um atributo exclusivo dos guerrilheiros...”.
Mas, voltando as declaracoes da Kota Eugenia, se “não (se) justifica eles venderem-se à União Soviética e a outras forças, os portugueses incluídos”, justificar-se-ha’ [isto ja’ pondo de parte a dificuldade para a maioria dos leitores perceberem como e’ que “de repente” o principal aliado oficial da RPA no quadro do “internacionalismo proletario”, a URSS, passa a ser um “inimigo figadal” do MPLA… ja’ para nao falar dos “portugueses” – quanto mais nao seja porque a Kota e’ portuguesa de nascimento e crescimento, tendo-se tornado angolana apenas depois da independencia, mantendo embora, segundo suas proprias declaracoes ao Expresso (http://koluki.blogspot.com/2008/02/maria-dalila-purga.html), a nacionalidade portuguesa…] que milhares dentre essa “garotada” tenham sido presos e torturados ou simplesmente eliminados fisicamente, assim se obliterando praticamente toda uma geracao de angolanos?!
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