Thursday, 14 August 2008

KINAXIXE (R.I.P.)


Desde a minha ultima morada em Luanda, no Largo do Kinaxixi, tenho vivido, entre outros lugares, naquela que pode, seguramente, ser considerada a cidade mais conservadora do mundo: Londres. Uma das manifestacoes desse conservadorismo e’ a forma como o planeamento, a edificacao, a arquitectura e o ambiente construido ('the built environment’ e’ uma disciplina que aqui tem uma faculdade inteira de pelo menos uma universidade a ela dedicada) sao levados muito a serio. Esta e’ uma cidade tradicionalmente construida extensiva e horizontalmente (por oposicao a intensiva e verticalmente) e onde as normas de construcao, manutencao e reconstrucao dos edificios sao para ser respeitadas a risca, desde os materiais usados (por norma o tijolo de tons entre o ocre, o castanho e o vermelho), a altura (basicamente, pode dizer-se que qualquer proposta de construcao de um edificio mais alto que o Big Ben e’ severamente escrutinizada e muitissimo raramente aprovada), sob pena de os edificios infractores poderem vir a ser demolidos, por mais dispendiosos, vistosos ou funcionais que se apresentem e por mais famosos e conceituados que sejam os arquitectos ou engenheiros neles envolvidos. As excepcoes mais notorias a essas regras sao as torres de habitacao social construidas nas decadas de 60 e 70 do seculo XX, em varias areas da cidade, para suprir as necessidades habitacionais criadas pelo crescimento populacional provocado pelo baby boom do post-Segunda Guerra Mundial, muitas das quais, entretanto, ja’ foram demolidas ou estao em vias disso.

No entanto, e precisamente por ser levada tao a serio, a implementacao das politicas de manutencao da arquitectura tradicional da cidade nao e’ deixada simplesmente ao sabor dos ventos, mares e calemas, ou aos caprichos, interesses, fantasias e preconceitos politico-ideologicos dos que podem gritar mais alto. Pelo contrario, existem organismos centrais e locais especificamente encarregues de velar pelo respeito dessas politicas, as quais sao definidas por leis e regulamentos, entre os quais se destaca um sistema de listagem e graduacao de acordo com estritos criterios de localizacao, significacao historica e valencia cultural, que impede que determinados edificios sejam construidos em determinados locais ou que outros possam ser estruturalmente alterados ou demolidos. Mas, em ultima instancia, o sucesso da implementacao dessas politicas depende, como em qualquer outro caso, da presenca, ou ausencia, de determinados factores, quer de ordem endogena (e.g. a nao degradacao dos edificios para la’ de qualquer possibilidade de reabilitacao), quer de ordem exogena (e.g. a ausencia de catastrofes, sejam elas naturais, ou provocadas, como guerras).

A existencia e a defesa de tais politicas de conservacao nao impede, todavia, que a arquitectura da cidade se adapte a novas necessidades economicas, tendencias arquitectonicas e/ou realidades socio-culturais, pelo que projectos ineditos e inovadores sao ocasionalmente aprovados. Assim, embora dificilmente se venha a ver algo tao dramatico como a piramide de vidro adjacente ao Louvre, em Paris, ser construido nas imediacoes, digamos, do Buckingham Palace, ha’ alguns edificios, embora se possam contar praticamente pelos dedos de uma mao, que ao longo das ultimas decadas teem conseguido, com sucesso, quebrar os moldes do landscape londrino e impor-se como landmarks na skyline da cidade, e.g. o Centre Point (este embora, nos ultimos tempos, marcado para demolicao por ter deixado de se coadunar com os principios e valencias socio-culturais que inicialmente garantiram a sua edificacao), o Gherkhin, a BT Tower, ou o conjunto do Canary Wharf.

Mas, voltando ao Kinaxixe (refiro-me aqui ao edificio demolido nos ultimos dias e nao ao espaco geografico do Kinaxixi que historica e culturalmente lhe antecede), em texto que escrevi por altura do anuncio, ha’ cerca de quatro anos, dos planos da sua transformacao (texto esse de que ainda ando a procura e que o facto de ate’ agora nao o ter encontrado me sugere que talvez o tenha publicado como comentario num sitio como o Angonoticias, ou numa das networks ou foruns de discussao em que na altura ocasionalmente participava), manifestei duas preocupacoes fundamentais: uma com o futuro da/os vendedora/es que nele ganhavam a sua vida e outra com o destino que se lhe pretendia dar, ou seja, a sua transformacao num shopping centre. Em relacao a primeira, sugeria que, caso a/os vendedora/es tivessem mesmo que ser evacuados do mercado, que os compensassem devidamente, quer com locais alternativos para a continuacao dos seus negocios, quer financeiramente, para que pudessem, caso assim o decidissem, recorrer a outras formas de ganhar a sua vida. Em relacao a segunda, sugeria que o Kinaxixe fosse transformado num mercado como o Covent Garden de Londres.

O Covent Garden e’ um mercado tradicional londrino que, durante grande parte da sua historia de pelo menos 3 seculos, era exclusivamente um mercado de flores, frutas e vegetais mas, com a crescente tercializacao da economia, a transformacao do local em que se encontra numa zona menos residencial e mais de servicos e de lazer e a gradual satisfacao das necessidades alimentares dos residentes locais por super-mercados, restaurantes e lojas de conveniencia (onde, by the way, o bife de atum e’ consideravelmente mais caro e melhor apreciado do que o ‘outro bife’), foi-se diversificando para o comercio de outros produtos e a integracao de algumas das lojas de marca tipicas das principais high streets da cidade, isto e’, foi-se transformando organicamente num shopping center, sem contudo perder a sua traca arquitectonica original, nem a sua atmosfera de mercado tradicional. Para alem do mais, tal como o Covent Garden, que esta’ rodeado de museus e outros edificios historicos no centro de Londres, o Kinaxixe tambem esta’(va) rodeado de outros edificios historicos e museus no centro de Luanda… E essa, propunha eu, seria uma das alternativas de transformacao do Kinaxixe, sem a criacao de desnecessarios custos humanos, ambientais ou patrimoniais.

A outra alternativa, que parece ser a defendida por alguns, seria o status quo, ou seja, mante-lo como era e como estava. Ora, e deixando de lado a 'brilhante ideia' segundo a qual "Africa nao deve ter shopping centers" (...), ha’ aqui varias questoes a considerar. Em primeiro lugar, que politicas, leis e regulamentos existem para a garantia da manutencao de tal status quo? Nao tenho conhecimento de nenhuns, mas caso existam, que mecanismos institucionais e sociais existem para a garantia da sua implementacao? A julgar pelas vozes que, como a minha, desde o inicio se manifestaram contra as intencoes do grupo privado que se decidiu pela transformacao daquele mercado e, finalmente, pela sua demolicao, nenhuns. Evidentemente, ha’ que salvaguardar aqui o que parece ser um facto, do qual apenas tive conhecimento muito recentemente: a impossibilidade de recuperacao das estruturas do edificio, de acordo com os responsaveis pela obra.

Mas, independentemente desse facto aparentemente incontestavel e para alem das vozes e do tom ou intensidade com que porventura se tenham ou nao manifestado ao longo desse tempo, urge colocar algumas questoes mais criticas sobre esse evento: e.g. nos quatro anos (lembremo-nos que, em condicoes normais, esse e’ o tempo de duracao de uma legislatura), que mediaram o anuncio da decisao e o acto final a que se assistiu nos ultimos dias, tera’ algum partido da oposicao com assento parlamentar interpelado o governo sobre os planos em questao? Tera’ algum deputado, de qualquer partido, agindo independentemente ou em associacao com outros, tomado tal iniciativa? Tera’ alguma organizacao da sociedade civil activa e sistematicamente advogado essa causa e/ou agido no sentido de impedir o que acabou por acontecer? Tera’ algum cidadao, agindo individualmente ou em grupo, tomado qualquer iniciativa seria naquele sentido? Terao quaisquer representantes de grupos de interesses economicos, culturais (em especial os 'premios nacionais de cultura' e dentre estes muito particularmente alguem que nao perde uma oportunidade para se auto-proclamar "mais angolana que a Angolanidade!"...), politicos, ideologicos ou outros, considerados afectados, directa ou indirectamente, por aquela medida, submetido alguma peticao, ou pressionado de outro modo, as autoridades competentes para evitar a consumacao daquele acto?

Nao tenho noticia de que qualquer dessas perguntas possa ser respondida positiva e satisfatoriamente. Ou seja, ao contrario do que se passa no pais do Covent Garden, ha’ um vacuo institucional no nosso sistema de tomada, implementacao e contestacao de decisoes que, nao dando lugar a accoes concretas e construtivas no sentido de se impedir que tais decisoes produzam resultados socialmente adversos e insatisfatorios aos mais diversos niveis, acaba por ser preenchido por toda a sorte de irracionalidades, improperios, histerias, racismos, oportunismos, sensacionalismos e ataques pessoais depois dos factos consumados…

Dito tudo isso, devo dizer tambem que a minha oposicao inicial ao projecto de transformacao (na altura nem sequer se falava ainda em demolicao) do Kinaxixe, para alem de uma preocupacao objectiva de ordem etica e humanitaria em relacao aos futuros modos de sobrevivencia da/os vendedora/es e suas familias, se devia menos a factores objectivos do que afectivos, em resultado do meu sentimento de ‘pertenca’ ao local e ao habito de, desde a infancia, quando estudava na Escola 8, que fica ali muito perto, ver ali o mercado, ou de ocasionalmente ir la’ as compras com as mais velhas, ou, na altura do boicote aos exames no Sao Jose’ de Cluny, em 74/75, para la’ fugir dos tiros (para o ar...) da tropa portuguesa e, alguns anos mais tarde, de o ter mesmo ao lado do meu local de trabalho, na Angop… De outro modo, durante os varios anos que ali morei no Largo do Kinaxixi, depois da independencia, em termos objectivos, aquele mercado, ao contrario dos outros mercados existentes na cidade, ja’ nao satisfazia qualquer necessidade economica, cultural, ou social dos residentes locais ou do resto da cidade: praticamente nao se vendiam la’ ja’ quaisquer produtos alimentares e as lojas e outros espacos ainda com alguma serventia nao se dedicavam exactamente ao comercio de bens ou servicos indispensaveis a sobrevivencia dos seus utentes.

Diga-se tambem que, ao contrario do que tem sido veiculado por alguns sectores de opiniao, o Kinaxixe nunca foi um mercado verdadeiramente popular ou tradicional – populares e tradicionais eram e sao mercados como o Sao Paulo, os Kongolenses, ou o (antigo) Xamavu e, mais recentemente, o Roque Santeiro e tenho poucas duvidas de que, a excepcao deste ultimo, a demolicao de qualquer deles teria um impacto economico e socio-cultural na cidade bastante mais dramatico do que a do Kinaxixe. E’ do Sao Paulo, por exemplo, que trago referencias mais marcantes e consistentes ao longo da minha vida, desde ir la' apanhar ingredientes para cozinhar nas ‘brincadeiras de casa’ da minha infancia na Rua de Benguela, ao fascinio pelas colas, gengibres, missangas, pembas, takulas, xas de kaxinde e outros produtos da cultura tradicional Africana que la’ sempre se venderam e que eu saiba, 'por qualquer razao', nunca o foram no Kinaxixe, a cruzar-me com a Joana Maluka a caminho do mercado ou da igreja… E’ com o dos Kongolenses, por outro exemplo, que tenho as maiores afinidades culturais e afectivas: desde as cores dos panos do Kongo e dos cachos de dendem, ao cheiro dos micates a serem fritos, da banana a ser assada, do bagre fumado e da fuba de bombo branquinha, ao sabor da kikwanga, da kizaka ou da mwamba de ginguba acabadas de fazer... E tenho a certeza que esse tipo de relacao afectiva, cultural, historica e funcional com os mercados verdadeiramente populares, tradicionais e culturais de Luanda marca o imaginario e a vida quotidiana de bastantes mais cidadaos Angolanos do que aqueles agora objectiva ou subjectivamente afectados pela demolicao do Kinaxixe.

Em suma, o Kinaxixe – que sempre foi destinado a classe media-alta do centro da cidade, que nas ultimas decadas tambem passou a satisfazer as suas necessidades alimentares basicas naqueles mercados populares ou, mais recentemente, nas lojas de elite da baixa de Luanda, classe essa a qual tambem se destina o projectado novo shopping centre, pelo que nao ha’ conflitos socio-culturais fundamentais entre o status quo e a proposta alternativa (excepto, talvez, que a composicao dessa classe se tera’ alterado significativamente em tempos mais recentes…) – tornou-se ao longo das decadas desde a independencia, em grande medida, um edificio morto para todos os efeitos praticos, utilitarios e socio-culturais, preenchendo apenas um lugar no imaginario de uma parte dos Kaluandas (e, provavelmente, de outros que, por nunca terem realmente vivido a maior parte, ou sequer alguma parte significativa, das suas vidas em Luanda e, em qualquer caso, certamente nao no Kinaxixi, dele apenas teem imagens livrescas e confabuladas, memorias emprestadas e deturpadas e ate' mesmo completamente inventadas, para ja’ nao falar nos que nunca foram dados a frequentar quaisquer mercados porque sempre tiveram empregada/os que o fizessem por eles). Ora, acontece que o imaginario, e por isso mesmo ele tem esse nome, quando nao impedido disso por empecilhos como o racismo, a ideologia, a hipocrisia ou a esquizofrenia, tem as suas formas de criar, re-criar, adaptar-se e afeicoar-se a novas imagens: como essa do novo proposto edificio, contra o qual nao tenho objeccoes inconciliaveis, assumindo que os tecnicos que o projectaram saibam bem o que estao a fazer com tanta vidraca e que de facto o facam tao ‘verde’ quanto as imagens do prototipo sugerem.

Claro que me ocorrem possibilidades arquitectonicas mais consentaneas com a historia, arte e cultura locais, mas para isso, a falta de exemplos nacionais, teria que fazer uma outra digressao, nao ja' por Londres, mas por algumas das principais cidades Sul-Africanas e de outros paises da Africa Austral. E tais possibilidades ainda se podem vir a concretizar no vasto espaco geografico e populacional circundante ao centro da cidade, caso em que depois sera’ uma questao de competicao por gostos e preferencias esteticas, funcionalidades socio-economicas e valencias culturais entre tais possiveis novos espacos e propostas arquitectonicas e o que agora nos e’ apresentado em substituicao do Kinaxixe, competicao em resultado da qual este podera’ vir a ter a mesma sorte agora destinada ao Centre Point de Londres…

Terminada esta longa digressao pelos escombros do Kinaxixe, onde e’ que entram aqui argumentos de ‘nacionalismos racicos’ nao e’ exactamente uma questao que me escape… Mas essa e’ uma ‘peixeirada’ de um ‘mercado’ em que nao pretendo ir apanhar, nem comprar nada e nem sequer entrar, ate’ porque os seus participantes, vociferando histrionicamente contra o desaparecimento de um certo Quinachiche encimado por uma certa Maria da Fonte e de tudo quanto seja reminiscente do ‘tempo da outra senhora’, sao muito dados a ‘ameacas de morte’ e sao gente para se levar muito a serio nessas coisas: afinal eles estiveram envolvidos, directa ou indirectamente, na maior matanca a que a Historia contemporanea Angolana ja’ assistiu… E, mesmo sabendo e tendo experimentado os efeitos do seu “braco comprido”, continuo na minha: “estou no mundo, a esquizofrenia fica longe, na cultura”!

O Kinaxixe morreu! Longa Vida ao Kinaxixi!!!

Desde a minha ultima morada em Luanda, no Largo do Kinaxixi, tenho vivido, entre outros lugares, naquela que pode, seguramente, ser considerada a cidade mais conservadora do mundo: Londres. Uma das manifestacoes desse conservadorismo e’ a forma como o planeamento, a edificacao, a arquitectura e o ambiente construido ('the built environment’ e’ uma disciplina que aqui tem uma faculdade inteira de pelo menos uma universidade a ela dedicada) sao levados muito a serio. Esta e’ uma cidade tradicionalmente construida extensiva e horizontalmente (por oposicao a intensiva e verticalmente) e onde as normas de construcao, manutencao e reconstrucao dos edificios sao para ser respeitadas a risca, desde os materiais usados (por norma o tijolo de tons entre o ocre, o castanho e o vermelho), a altura (basicamente, pode dizer-se que qualquer proposta de construcao de um edificio mais alto que o Big Ben e’ severamente escrutinizada e muitissimo raramente aprovada), sob pena de os edificios infractores poderem vir a ser demolidos, por mais dispendiosos, vistosos ou funcionais que se apresentem e por mais famosos e conceituados que sejam os arquitectos ou engenheiros neles envolvidos. As excepcoes mais notorias a essas regras sao as torres de habitacao social construidas nas decadas de 60 e 70 do seculo XX, em varias areas da cidade, para suprir as necessidades habitacionais criadas pelo crescimento populacional provocado pelo baby boom do post-Segunda Guerra Mundial, muitas das quais, entretanto, ja’ foram demolidas ou estao em vias disso.

No entanto, e precisamente por ser levada tao a serio, a implementacao das politicas de manutencao da arquitectura tradicional da cidade nao e’ deixada simplesmente ao sabor dos ventos, mares e calemas, ou aos caprichos, interesses, fantasias e preconceitos politico-ideologicos dos que podem gritar mais alto. Pelo contrario, existem organismos centrais e locais especificamente encarregues de velar pelo respeito dessas politicas, as quais sao definidas por leis e regulamentos, entre os quais se destaca um sistema de listagem e graduacao de acordo com estritos criterios de localizacao, significacao historica e valencia cultural, que impede que determinados edificios sejam construidos em determinados locais ou que outros possam ser estruturalmente alterados ou demolidos. Mas, em ultima instancia, o sucesso da implementacao dessas politicas depende, como em qualquer outro caso, da presenca, ou ausencia, de determinados factores, quer de ordem endogena (e.g. a nao degradacao dos edificios para la’ de qualquer possibilidade de reabilitacao), quer de ordem exogena (e.g. a ausencia de catastrofes, sejam elas naturais, ou provocadas, como guerras).

A existencia e a defesa de tais politicas de conservacao nao impede, todavia, que a arquitectura da cidade se adapte a novas necessidades economicas, tendencias arquitectonicas e/ou realidades socio-culturais, pelo que projectos ineditos e inovadores sao ocasionalmente aprovados. Assim, embora dificilmente se venha a ver algo tao dramatico como a piramide de vidro adjacente ao Louvre, em Paris, ser construido nas imediacoes, digamos, do Buckingham Palace, ha’ alguns edificios, embora se possam contar praticamente pelos dedos de uma mao, que ao longo das ultimas decadas teem conseguido, com sucesso, quebrar os moldes do landscape londrino e impor-se como landmarks na skyline da cidade, e.g. o Centre Point (este embora, nos ultimos tempos, marcado para demolicao por ter deixado de se coadunar com os principios e valencias socio-culturais que inicialmente garantiram a sua edificacao), o Gherkhin, a BT Tower, ou o conjunto do Canary Wharf.

Mas, voltando ao Kinaxixe (refiro-me aqui ao edificio demolido nos ultimos dias e nao ao espaco geografico do Kinaxixi que historica e culturalmente lhe antecede), em texto que escrevi por altura do anuncio, ha’ cerca de quatro anos, dos planos da sua transformacao (texto esse de que ainda ando a procura e que o facto de ate’ agora nao o ter encontrado me sugere que talvez o tenha publicado como comentario num sitio como o Angonoticias, ou numa das networks ou foruns de discussao em que na altura ocasionalmente participava), manifestei duas preocupacoes fundamentais: uma com o futuro da/os vendedora/es que nele ganhavam a sua vida e outra com o destino que se lhe pretendia dar, ou seja, a sua transformacao num shopping centre. Em relacao a primeira, sugeria que, caso a/os vendedora/es tivessem mesmo que ser evacuados do mercado, que os compensassem devidamente, quer com locais alternativos para a continuacao dos seus negocios, quer financeiramente, para que pudessem, caso assim o decidissem, recorrer a outras formas de ganhar a sua vida. Em relacao a segunda, sugeria que o Kinaxixe fosse transformado num mercado como o Covent Garden de Londres.

O Covent Garden e’ um mercado tradicional londrino que, durante grande parte da sua historia de pelo menos 3 seculos, era exclusivamente um mercado de flores, frutas e vegetais mas, com a crescente tercializacao da economia, a transformacao do local em que se encontra numa zona menos residencial e mais de servicos e de lazer e a gradual satisfacao das necessidades alimentares dos residentes locais por super-mercados, restaurantes e lojas de conveniencia (onde, by the way, o bife de atum e’ consideravelmente mais caro e melhor apreciado do que o ‘outro bife’), foi-se diversificando para o comercio de outros produtos e a integracao de algumas das lojas de marca tipicas das principais high streets da cidade, isto e’, foi-se transformando organicamente num shopping center, sem contudo perder a sua traca arquitectonica original, nem a sua atmosfera de mercado tradicional. Para alem do mais, tal como o Covent Garden, que esta’ rodeado de museus e outros edificios historicos no centro de Londres, o Kinaxixe tambem esta’(va) rodeado de outros edificios historicos e museus no centro de Luanda… E essa, propunha eu, seria uma das alternativas de transformacao do Kinaxixe, sem a criacao de desnecessarios custos humanos, ambientais ou patrimoniais.

A outra alternativa, que parece ser a defendida por alguns, seria o status quo, ou seja, mante-lo como era e como estava. Ora, e deixando de lado a 'brilhante ideia' segundo a qual "Africa nao deve ter shopping centers" (...), ha’ aqui varias questoes a considerar. Em primeiro lugar, que politicas, leis e regulamentos existem para a garantia da manutencao de tal status quo? Nao tenho conhecimento de nenhuns, mas caso existam, que mecanismos institucionais e sociais existem para a garantia da sua implementacao? A julgar pelas vozes que, como a minha, desde o inicio se manifestaram contra as intencoes do grupo privado que se decidiu pela transformacao daquele mercado e, finalmente, pela sua demolicao, nenhuns. Evidentemente, ha’ que salvaguardar aqui o que parece ser um facto, do qual apenas tive conhecimento muito recentemente: a impossibilidade de recuperacao das estruturas do edificio, de acordo com os responsaveis pela obra.

Mas, independentemente desse facto aparentemente incontestavel e para alem das vozes e do tom ou intensidade com que porventura se tenham ou nao manifestado ao longo desse tempo, urge colocar algumas questoes mais criticas sobre esse evento: e.g. nos quatro anos (lembremo-nos que, em condicoes normais, esse e’ o tempo de duracao de uma legislatura), que mediaram o anuncio da decisao e o acto final a que se assistiu nos ultimos dias, tera’ algum partido da oposicao com assento parlamentar interpelado o governo sobre os planos em questao? Tera’ algum deputado, de qualquer partido, agindo independentemente ou em associacao com outros, tomado tal iniciativa? Tera’ alguma organizacao da sociedade civil activa e sistematicamente advogado essa causa e/ou agido no sentido de impedir o que acabou por acontecer? Tera’ algum cidadao, agindo individualmente ou em grupo, tomado qualquer iniciativa seria naquele sentido? Terao quaisquer representantes de grupos de interesses economicos, culturais (em especial os 'premios nacionais de cultura' e dentre estes muito particularmente alguem que nao perde uma oportunidade para se auto-proclamar "mais angolana que a Angolanidade!"...), politicos, ideologicos ou outros, considerados afectados, directa ou indirectamente, por aquela medida, submetido alguma peticao, ou pressionado de outro modo, as autoridades competentes para evitar a consumacao daquele acto?

Nao tenho noticia de que qualquer dessas perguntas possa ser respondida positiva e satisfatoriamente. Ou seja, ao contrario do que se passa no pais do Covent Garden, ha’ um vacuo institucional no nosso sistema de tomada, implementacao e contestacao de decisoes que, nao dando lugar a accoes concretas e construtivas no sentido de se impedir que tais decisoes produzam resultados socialmente adversos e insatisfatorios aos mais diversos niveis, acaba por ser preenchido por toda a sorte de irracionalidades, improperios, histerias, racismos, oportunismos, sensacionalismos e ataques pessoais depois dos factos consumados…

Dito tudo isso, devo dizer tambem que a minha oposicao inicial ao projecto de transformacao (na altura nem sequer se falava ainda em demolicao) do Kinaxixe, para alem de uma preocupacao objectiva de ordem etica e humanitaria em relacao aos futuros modos de sobrevivencia da/os vendedora/es e suas familias, se devia menos a factores objectivos do que afectivos, em resultado do meu sentimento de ‘pertenca’ ao local e ao habito de, desde a infancia, quando estudava na Escola 8, que fica ali muito perto, ver ali o mercado, ou de ocasionalmente ir la’ as compras com as mais velhas, ou, na altura do boicote aos exames no Sao Jose’ de Cluny, em 74/75, para la’ fugir dos tiros (para o ar...) da tropa portuguesa e, alguns anos mais tarde, de o ter mesmo ao lado do meu local de trabalho, na Angop… De outro modo, durante os varios anos que ali morei no Largo do Kinaxixi, depois da independencia, em termos objectivos, aquele mercado, ao contrario dos outros mercados existentes na cidade, ja’ nao satisfazia qualquer necessidade economica, cultural, ou social dos residentes locais ou do resto da cidade: praticamente nao se vendiam la’ ja’ quaisquer produtos alimentares e as lojas e outros espacos ainda com alguma serventia nao se dedicavam exactamente ao comercio de bens ou servicos indispensaveis a sobrevivencia dos seus utentes.

Diga-se tambem que, ao contrario do que tem sido veiculado por alguns sectores de opiniao, o Kinaxixe nunca foi um mercado verdadeiramente popular ou tradicional – populares e tradicionais eram e sao mercados como o Sao Paulo, os Kongolenses, ou o (antigo) Xamavu e, mais recentemente, o Roque Santeiro e tenho poucas duvidas de que, a excepcao deste ultimo, a demolicao de qualquer deles teria um impacto economico e socio-cultural na cidade bastante mais dramatico do que a do Kinaxixe. E’ do Sao Paulo, por exemplo, que trago referencias mais marcantes e consistentes ao longo da minha vida, desde ir la' apanhar ingredientes para cozinhar nas ‘brincadeiras de casa’ da minha infancia na Rua de Benguela, ao fascinio pelas colas, gengibres, missangas, pembas, takulas, xas de kaxinde e outros produtos da cultura tradicional Africana que la’ sempre se venderam e que eu saiba, 'por qualquer razao', nunca o foram no Kinaxixe, a cruzar-me com a Joana Maluka a caminho do mercado ou da igreja… E’ com o dos Kongolenses, por outro exemplo, que tenho as maiores afinidades culturais e afectivas: desde as cores dos panos do Kongo e dos cachos de dendem, ao cheiro dos micates a serem fritos, da banana a ser assada, do bagre fumado e da fuba de bombo branquinha, ao sabor da kikwanga, da kizaka ou da mwamba de ginguba acabadas de fazer... E tenho a certeza que esse tipo de relacao afectiva, cultural, historica e funcional com os mercados verdadeiramente populares, tradicionais e culturais de Luanda marca o imaginario e a vida quotidiana de bastantes mais cidadaos Angolanos do que aqueles agora objectiva ou subjectivamente afectados pela demolicao do Kinaxixe.

Em suma, o Kinaxixe – que sempre foi destinado a classe media-alta do centro da cidade, que nas ultimas decadas tambem passou a satisfazer as suas necessidades alimentares basicas naqueles mercados populares ou, mais recentemente, nas lojas de elite da baixa de Luanda, classe essa a qual tambem se destina o projectado novo shopping centre, pelo que nao ha’ conflitos socio-culturais fundamentais entre o status quo e a proposta alternativa (excepto, talvez, que a composicao dessa classe se tera’ alterado significativamente em tempos mais recentes…) – tornou-se ao longo das decadas desde a independencia, em grande medida, um edificio morto para todos os efeitos praticos, utilitarios e socio-culturais, preenchendo apenas um lugar no imaginario de uma parte dos Kaluandas (e, provavelmente, de outros que, por nunca terem realmente vivido a maior parte, ou sequer alguma parte significativa, das suas vidas em Luanda e, em qualquer caso, certamente nao no Kinaxixi, dele apenas teem imagens livrescas e confabuladas, memorias emprestadas e deturpadas e ate' mesmo completamente inventadas, para ja’ nao falar nos que nunca foram dados a frequentar quaisquer mercados porque sempre tiveram empregada/os que o fizessem por eles). Ora, acontece que o imaginario, e por isso mesmo ele tem esse nome, quando nao impedido disso por empecilhos como o racismo, a ideologia, a hipocrisia ou a esquizofrenia, tem as suas formas de criar, re-criar, adaptar-se e afeicoar-se a novas imagens: como essa do novo proposto edificio, contra o qual nao tenho objeccoes inconciliaveis, assumindo que os tecnicos que o projectaram saibam bem o que estao a fazer com tanta vidraca e que de facto o facam tao ‘verde’ quanto as imagens do prototipo sugerem.

Claro que me ocorrem possibilidades arquitectonicas mais consentaneas com a historia, arte e cultura locais, mas para isso, a falta de exemplos nacionais, teria que fazer uma outra digressao, nao ja' por Londres, mas por algumas das principais cidades Sul-Africanas e de outros paises da Africa Austral. E tais possibilidades ainda se podem vir a concretizar no vasto espaco geografico e populacional circundante ao centro da cidade, caso em que depois sera’ uma questao de competicao por gostos e preferencias esteticas, funcionalidades socio-economicas e valencias culturais entre tais possiveis novos espacos e propostas arquitectonicas e o que agora nos e’ apresentado em substituicao do Kinaxixe, competicao em resultado da qual este podera’ vir a ter a mesma sorte agora destinada ao Centre Point de Londres…

Terminada esta longa digressao pelos escombros do Kinaxixe, onde e’ que entram aqui argumentos de ‘nacionalismos racicos’ nao e’ exactamente uma questao que me escape… Mas essa e’ uma ‘peixeirada’ de um ‘mercado’ em que nao pretendo ir apanhar, nem comprar nada e nem sequer entrar, ate’ porque os seus participantes, vociferando histrionicamente contra o desaparecimento de um certo Quinachiche encimado por uma certa Maria da Fonte e de tudo quanto seja reminiscente do ‘tempo da outra senhora’, sao muito dados a ‘ameacas de morte’ e sao gente para se levar muito a serio nessas coisas: afinal eles estiveram envolvidos, directa ou indirectamente, na maior matanca a que a Historia contemporanea Angolana ja’ assistiu… E, mesmo sabendo e tendo experimentado os efeitos do seu “braco comprido”, continuo na minha: “estou no mundo, a esquizofrenia fica longe, na cultura”!

O Kinaxixe morreu! Longa Vida ao Kinaxixi!!!

9 comments:

Salucombo_Jr. said...

penso que o consolo seria outro se na verdade ele tivesse morrido.

o que aconteceu, foi que ELES tiraram-nos sem que lhes déssemos legitimidade para tal.

Anonymous said...

Koluki,

So mesmo tu para nos presenteares com tanta clarividencia, sensibilidade, conhecimento e visao minha irma.
Obrigado!

PS - nao sabia que o Centre Point esta para ser demolido, ainda ha dias passei por la...

Koluki said...

Salucombo, se puderes responde-me so' a esta pergunta:
O que e' que TU fizeste nos ultimos 4 anos para evitar a demolicao do Kinaxixe?

Koluki said...

Diasporo: eu e' que te agradeco por tantos cumprimentos... mas nao so' por isso, tambem por saberes LER e compreender o que les!
Obrigado meu irmao!
Quanto ao Centre Point, e' verdade, esta' marcado para demolicao, mas como isto e' uma cidade e um pais de gente racional e responsavel, o processo ainda esta' sujeito a varios escrutinios e audicoes de vozes dos cidadaos em geral e ate' pode acontecer que os seus maiores defensores acabem por conseguir evitar que a ameaca se concretize...
Eu, por mim, ate' tenho muito 'fond' memories daquele edificio, que talvez um dia contarei aqui.
Tem um bom fim de semana.

Muadiê Maria said...

Koluki, por aqui também lutamos contra demandos que agridem a nossa história.
A prefeitura de Salvador chegou ao descalabro de querer destruir um Terreiro de Candomblé, que supostamente estaria construído em um lugar "errado", sendo que, esta casa já estava neste local há muito tempo.
Agora, o mesmo prefeito está retirando as centenárias pedras portuguesas de nossa orla para colocar placas de cimento.

Um abraço,
Martha

Salucombo_Jr. said...

talvez muito pouco!

uma carta assinada por ex-estudantes da Faculdade de Arquitectura enviada ao Governador de Luanda (na altura o Sr. Job Capapinha) com o titulo “A Morte da Nossa Cidade”, o tema não era apenas o Kinaxixi, mas todas as “mortes” que têm acontecido.

abaixo assinado organizado pelos alunos da Universidade Lusíada – Departamento de Arquitectura contra a demolição do Mercado do Kinaxixi.

Koluki said...

Martha, so’ espero que por ai nao hajam tambem argumentos de “nacionalismos racicos”…
Um abraco e boa sorte nas vossas lutas!


Salucombo, muitas vezes ‘muito pouco’ e’ melhor que nada. Mas neste caso, pelo resultado final, foi manifestamente insuficiente!

asperezas said...

"... Em suma, o Kinaxixe – que sempre foi destinado a classe
media-alta do centro da cidade ..."

Em busca de mais reacções à demolição do Kinaxixi, dei com este post.
Saltou-me a frase que destaquei aqui.

A frase q destaco, não corresponde à verdade, uma vez que apenas 2
(dois) corredores eram destinados a essas classes: o das verduras e o
do peixe.
Todo o restante edifício, era destinado aos grossistas para venda a
retalhistas (merceeiros, restaurantes, etc...) à excepção das lojas
voltadas para a rua, como os talhos. Como éramos uma família numerosa,
comprávamos mtas x aos grossistas q vendiam em quantidades superiores
a 10, 20 Kg...

A substituir o insubstituível por o monstro sem personalidade vocacionado para os ricos (aqui, sim) era preferível fazê-lo na incaracterística praça cheia de fontes e fontinhas de cimento (rolleyes) ...

Mas ali, definitivamente, não reina o bom senso...

Cheers,

Koluki said...

Asperezas,

Apenas hoje me e' possivel responder ao seu comentario porque, como deve imaginar, todas as atencoes nos ultimos dias teem sido poucas para as eleicoes...

Agradeco-lhe o seu contributo com base na sua experiencia pessoal. No entanto, o que tentei neste post foi ser o mais objectiva possivel. E, objectivamente, dada a sua localizacao, o tipo de produtos ao comercio dos quais se dedicava e o extracto social da maioria dos seus utentes, o Kinaxixe era, repito, objectivamente, um mercado destinado a classe media-alta do centro da cidade, particularmente se comparado com os outros principais mercados de Luanda.

O facto de uma parte do edificio ser destinado ao comercio grossista, nao faz com que, em termos do comercio retalhista a que era dedicado, ele nao tivesse por principal alvo a classe a que me referi. Para alem de que, quem eram os donos de mercearias, restaurantes, etc.? Nao seriam necessariamente classe media-alta, mas tambem nao eram exactamente "o povo dos musseques"... E quem eram os frequentadores de tais mercearias e restaurantes na sua maioria?

Tudo isto para lhe dizer que o facto de haver excepcoes a pratica geral, como o caso da sua familia que se abastecia nos grossistas do Kinaxixe (e que por isso suponho que fazia parte das excepcoes que confirmavam a regra...), nao invalida que essa pratica geral deixasse de ser o que era, isto e': o comercio que la' se praticava era fundamentalmente destinado a classe media-alta do centro da cidade, quanto mais nao seja pela sua localizacao.

Cheers!