Wednesday 11 April 2012

Gostei de Ler [6]*




O filósofo Friedrich Hegel diz que ‘a Justiça não é um dom gratuito da Natureza Humana, ela precisa ser conquistada sempre porque é uma eterna procura’. Concorda com este pensamento? Qual é para si a evolução mais importante para que se atinjam patamares, cada vez mais, elevados de Justiça nos diferentes domínios da sociedade?

A justiça é de facto uma eterna procura. A busca da perfeição, do equilíbrio, a demanda da felicidade. O reconhecimento da dignidade da pessoa humana, independentemente da sua condição, de sexo, de origem social, racial, económica ou outra, constituiu o mais importante marco histórico e é ainda a pedra de toque entre as sociedades justas e injustas.

À soberania do Homem sobre si mesmo chama-se liberdade. Ela é o cume e a igualdade é a base. Em que alicerces devem assentar as noções do novo ‘contrato social’ moderno face à relação entre a Sociedade e o Estado de Direito?

O contrato social moderno parte ainda necessariamente do pressuposto da liberdade e implica o reconhecimento da igualdade de todos perante o Estado e os seus sistemas de proteção (nos quais se integra o sistema de justiça) e no acesso a condições de vida dignas e de progresso social.

Afirmou a seguinte frase: ‘Cumpra-se, a vitória é certa!’ O que simboliza esta expressão e que sentimentos lhe desperta? Fazendo uma espécie de viagem ao passado recente, como analisa a evolução do país, sobretudo na última década pós Acordo de Paz?

A frase não é minha. É de um instrutor militar que tive, em 1975, quando a guerra às portas de Luanda nos mobilizou a todos para defender a cidade. Correspondia a uma lógica de obediência cega, obediência castrense, que é explicável num contexto militar e que obviamente rejeitava.
Entretanto, o país cresceu muito e cresce todos os dias. Sentem-se obviamente muitas diferenças, mas será preciso atualmente um olhar sobre o vetor desenvolvimento, já que os dois conceitos (crescimento e desenvolvimento) não são sinónimos.
Justifica-se um esforço no sentido da recuperação dos indicadores de 1974 em domínios como o saneamento básico, a educação ou a saúde.

Em 2007, é nomeada Procuradora-Geral Distrital de Lisboa. Considera esta ascensão professional natural ou resultado de muito esforço e trabalho? Desde então como tem evoluído o seu trabalho?

Penso que a minha nomeação para o cargo de Procuradora-Geral Distrital de Lisboa correspondeu ao reconhecimento de um trabalho coerente e consistente que vinha desenvolvendo como magistrada. Sem falsa modéstia, penso que continuo, na Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa, a fazer umtrabalho de grande diferenciação, com resultados visíveis. Mas é preciso trabalhar, trabalhar sempre. Com disciplina, com constância, com rigor.

Há, cada vez mais, um domínio das mulheres na Justiça. Acredita que este fenómeno tem influência a nível sociológico e no desenvolvimento das decisões judiciárias, ou seja, uma justiça no feminino é diferente?

O facto de haver cada vez mais mulheres no mundo judiciário, mais mulheres na justiça, permite, pelo menos, incorporar melhor a visão de mais de metade da humanidade. Afinal, as mulheres são a metade do céu!

Descrevem-na como uma mulher resiliente e reservada, que participou na luta pela independência do seu país, mas que nunca se exalta e é contra a exposição. É dessa forma que se vê?

Não. Não é assim que me vejo. Considero- me uma pessoa bem-educada, formada com elevados padrões éticos e de exigência pessoal - e a aparência de reserva tem apenas a ver com isso – que, por essa razão, convive mal com a sobre-exposição instrumental da promoção pessoal. Julgo ter uma relação equilibrada com os media.


Qual é a influência que esta memória coletiva e pessoal teve no seu percurso e como a mudou enquanto mulher e profissional?

Dizer que participei na luta pela independência seria uma injúria a quantos nela efetivamente participaram, sacrificando projetos pessoais e, em muitos casos, dando a sua vida pelo ideal de restauração da dignidade da Nação Angolana. Tenho um enorme respeito por essas pessoas. Ainda hoje olho com estupefação para muitas outras que no período colonial assumiram a comodidade de uma vida sem sobressaltos ou até mesmo de compromisso expresso com o poder colonial e que, após a independência, ou no período que imediatamente a precedeu, apareceram como arautos da liberdade. É preciso sermos rigorosos. Não podemos ceder à tentação de reescrever a história.

2012 é um ano complicado para a Europa, mas muito importante para Angola. Quais são os seus votos pessoais no que concerne às eleições que vão decorrer no país? Em que ponto este ato vai ser determinante para uma projeção internacional mais forte e de que forma influencia uma atividade tão importante como a Justiça?

Relativamente às eleições previstas para 2012, espero que decorram pacificamente – que não se gerem fatores de retrocesso no processo de paz - e que haja condições para o pleno exercício dos direitos políticos consagrados na Constituição: eleger e ser eleito, com tudo o que isso pressupõe em matéria de garantias do processo eleitoral. O modo como as eleições decorrerem será mais um teste à consolidação dos valores e das instituições democráticas em Angola e seguramente influenciará a imagem do país no contexto internacional. A justiça eleitoral é um segmento crítico, muito posto à prova nestes contextos e pode constituir o ponto nevrálgico das democracias em contextos de mudança.

Tenciona um dia regressar definitivamente à sua terra natal? Que mensagem gostaria de deixar aos seus compatriotas?

Todos os filhos tencionam regressar à imagem de amor das mães. A principal riqueza dos países é humana. São as suas mulheres e os seus homens. Os países podem ter toda a riqueza do mundo. Se não tiverem homens e mulheres à altura de a administrar com justiça e equidade ficarão diminuídos para sempre. Angola é um grande país.
Precisamos todos de estar à altura do país que somos. Do legado dos nossos antepassados. A capacitação técnica é indispensável, assim como é indispensável a participação cívica. É preciso educar para a cidadania, educar para a paz, educar para a justiça. A educação é, para mim, a chave de tudo. Ela gerará a competência, a autosuficiência e a harmonia.

Qual é para si o principal papel a desempenhar pelo cidadão comum na edificação da Nova Angola e quais os domínios mais importantes para que esse plano de desenvolvimento tenha sucesso?

Infelizmente, parece estar a gerar-se em alguns setores da sociedade angolana uma espécie de novo riquismo ostensivo e disparatado que exacerba tensões e engendra mau estar. Em muitos casos é fruto de níveis educacionais e culturais muito baixos e de referências modelares associadas ao individualismo, à ganância e à indiferença social. É preciso fazer atenção a este fenómeno pelo que ele tem de potencial desestruturação da coesão social e de fomentador da divisão e do ódio. Se a isto for associada a dificuldade de resolução de problemas sociais, pode estar a criar-se aqui uma mistura explosiva. Precisamos de dar mais de nós próprios. Do que somos e não do que temos. O ter pode ser episódico. Só o ser perdura. Não adianta termos muito e não termos condições para realizar a felicidade no nosso lugar.
Termos de morar fora, de buscar a saúde fora, de ter os filhos a estudar fora, de ter a família dividida, de nos refugiarmos do olhar cobiçoso dos que não entendem porquê que a fortuna lhes não chegou... E precisamos de dar mais atenção ao lado. Ao vizinho. Ao que não é amigo, mas existe. Como eu, como ser portador de tanta esperança e de tanto desejo de felicidade como eu. Os grandes países fazem-se de gente generosa. Gente capaz de dádiva e ávida de realização de promessas. E a nossa promessa coletiva é tornarmonos um grande país. Um grande país para todos. Não foi esse o grande projeto da independência?


(Extractos de uma entrevista de Francisca Van Dunem 'a Revista Angola'In - Marco 2012)


Post Relacionado:

Jurista Angolana Eleita Procuradora Distrital de Lisboa


*[Nao me passaram despercebidos alguns aparentes double entendres, mas... recorrendo a giria popular, "o que nao me atinge passa por baixo"... gostei de ler quand meme.]




O filósofo Friedrich Hegel diz que ‘a Justiça não é um dom gratuito da Natureza Humana, ela precisa ser conquistada sempre porque é uma eterna procura’. Concorda com este pensamento? Qual é para si a evolução mais importante para que se atinjam patamares, cada vez mais, elevados de Justiça nos diferentes domínios da sociedade?

A justiça é de facto uma eterna procura. A busca da perfeição, do equilíbrio, a demanda da felicidade. O reconhecimento da dignidade da pessoa humana, independentemente da sua condição, de sexo, de origem social, racial, económica ou outra, constituiu o mais importante marco histórico e é ainda a pedra de toque entre as sociedades justas e injustas.

À soberania do Homem sobre si mesmo chama-se liberdade. Ela é o cume e a igualdade é a base. Em que alicerces devem assentar as noções do novo ‘contrato social’ moderno face à relação entre a Sociedade e o Estado de Direito?

O contrato social moderno parte ainda necessariamente do pressuposto da liberdade e implica o reconhecimento da igualdade de todos perante o Estado e os seus sistemas de proteção (nos quais se integra o sistema de justiça) e no acesso a condições de vida dignas e de progresso social.

Afirmou a seguinte frase: ‘Cumpra-se, a vitória é certa!’ O que simboliza esta expressão e que sentimentos lhe desperta? Fazendo uma espécie de viagem ao passado recente, como analisa a evolução do país, sobretudo na última década pós Acordo de Paz?

A frase não é minha. É de um instrutor militar que tive, em 1975, quando a guerra às portas de Luanda nos mobilizou a todos para defender a cidade. Correspondia a uma lógica de obediência cega, obediência castrense, que é explicável num contexto militar e que obviamente rejeitava.
Entretanto, o país cresceu muito e cresce todos os dias. Sentem-se obviamente muitas diferenças, mas será preciso atualmente um olhar sobre o vetor desenvolvimento, já que os dois conceitos (crescimento e desenvolvimento) não são sinónimos.
Justifica-se um esforço no sentido da recuperação dos indicadores de 1974 em domínios como o saneamento básico, a educação ou a saúde.

Em 2007, é nomeada Procuradora-Geral Distrital de Lisboa. Considera esta ascensão professional natural ou resultado de muito esforço e trabalho? Desde então como tem evoluído o seu trabalho?

Penso que a minha nomeação para o cargo de Procuradora-Geral Distrital de Lisboa correspondeu ao reconhecimento de um trabalho coerente e consistente que vinha desenvolvendo como magistrada. Sem falsa modéstia, penso que continuo, na Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa, a fazer umtrabalho de grande diferenciação, com resultados visíveis. Mas é preciso trabalhar, trabalhar sempre. Com disciplina, com constância, com rigor.

Há, cada vez mais, um domínio das mulheres na Justiça. Acredita que este fenómeno tem influência a nível sociológico e no desenvolvimento das decisões judiciárias, ou seja, uma justiça no feminino é diferente?

O facto de haver cada vez mais mulheres no mundo judiciário, mais mulheres na justiça, permite, pelo menos, incorporar melhor a visão de mais de metade da humanidade. Afinal, as mulheres são a metade do céu!

Descrevem-na como uma mulher resiliente e reservada, que participou na luta pela independência do seu país, mas que nunca se exalta e é contra a exposição. É dessa forma que se vê?

Não. Não é assim que me vejo. Considero- me uma pessoa bem-educada, formada com elevados padrões éticos e de exigência pessoal - e a aparência de reserva tem apenas a ver com isso – que, por essa razão, convive mal com a sobre-exposição instrumental da promoção pessoal. Julgo ter uma relação equilibrada com os media.


Qual é a influência que esta memória coletiva e pessoal teve no seu percurso e como a mudou enquanto mulher e profissional?

Dizer que participei na luta pela independência seria uma injúria a quantos nela efetivamente participaram, sacrificando projetos pessoais e, em muitos casos, dando a sua vida pelo ideal de restauração da dignidade da Nação Angolana. Tenho um enorme respeito por essas pessoas. Ainda hoje olho com estupefação para muitas outras que no período colonial assumiram a comodidade de uma vida sem sobressaltos ou até mesmo de compromisso expresso com o poder colonial e que, após a independência, ou no período que imediatamente a precedeu, apareceram como arautos da liberdade. É preciso sermos rigorosos. Não podemos ceder à tentação de reescrever a história.

2012 é um ano complicado para a Europa, mas muito importante para Angola. Quais são os seus votos pessoais no que concerne às eleições que vão decorrer no país? Em que ponto este ato vai ser determinante para uma projeção internacional mais forte e de que forma influencia uma atividade tão importante como a Justiça?

Relativamente às eleições previstas para 2012, espero que decorram pacificamente – que não se gerem fatores de retrocesso no processo de paz - e que haja condições para o pleno exercício dos direitos políticos consagrados na Constituição: eleger e ser eleito, com tudo o que isso pressupõe em matéria de garantias do processo eleitoral. O modo como as eleições decorrerem será mais um teste à consolidação dos valores e das instituições democráticas em Angola e seguramente influenciará a imagem do país no contexto internacional. A justiça eleitoral é um segmento crítico, muito posto à prova nestes contextos e pode constituir o ponto nevrálgico das democracias em contextos de mudança.

Tenciona um dia regressar definitivamente à sua terra natal? Que mensagem gostaria de deixar aos seus compatriotas?

Todos os filhos tencionam regressar à imagem de amor das mães. A principal riqueza dos países é humana. São as suas mulheres e os seus homens. Os países podem ter toda a riqueza do mundo. Se não tiverem homens e mulheres à altura de a administrar com justiça e equidade ficarão diminuídos para sempre. Angola é um grande país.
Precisamos todos de estar à altura do país que somos. Do legado dos nossos antepassados. A capacitação técnica é indispensável, assim como é indispensável a participação cívica. É preciso educar para a cidadania, educar para a paz, educar para a justiça. A educação é, para mim, a chave de tudo. Ela gerará a competência, a autosuficiência e a harmonia.

Qual é para si o principal papel a desempenhar pelo cidadão comum na edificação da Nova Angola e quais os domínios mais importantes para que esse plano de desenvolvimento tenha sucesso?

Infelizmente, parece estar a gerar-se em alguns setores da sociedade angolana uma espécie de novo riquismo ostensivo e disparatado que exacerba tensões e engendra mau estar. Em muitos casos é fruto de níveis educacionais e culturais muito baixos e de referências modelares associadas ao individualismo, à ganância e à indiferença social. É preciso fazer atenção a este fenómeno pelo que ele tem de potencial desestruturação da coesão social e de fomentador da divisão e do ódio. Se a isto for associada a dificuldade de resolução de problemas sociais, pode estar a criar-se aqui uma mistura explosiva. Precisamos de dar mais de nós próprios. Do que somos e não do que temos. O ter pode ser episódico. Só o ser perdura. Não adianta termos muito e não termos condições para realizar a felicidade no nosso lugar.
Termos de morar fora, de buscar a saúde fora, de ter os filhos a estudar fora, de ter a família dividida, de nos refugiarmos do olhar cobiçoso dos que não entendem porquê que a fortuna lhes não chegou... E precisamos de dar mais atenção ao lado. Ao vizinho. Ao que não é amigo, mas existe. Como eu, como ser portador de tanta esperança e de tanto desejo de felicidade como eu. Os grandes países fazem-se de gente generosa. Gente capaz de dádiva e ávida de realização de promessas. E a nossa promessa coletiva é tornarmonos um grande país. Um grande país para todos. Não foi esse o grande projeto da independência?


(Extractos de uma entrevista de Francisca Van Dunem 'a Revista Angola'In - Marco 2012)


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