Monday 12 February 2007

AS RELAÇÕES ÉTNICAS EM ANGOLA: AS MINORIAS BRANCA E MESTIÇA (1961-1992)

Por Prof. Dr. Silvio de Almeida Carvalho Filho

A sociedade angolana às vésperas da independência era pluriétnica e dividida, a grosso modo, nas seguintes camadas: brancos privilegiados, colonos brancos pobres, mestiços, negros assimilados e a maioria de negros não assimilados, os chamados "indígenas". O projeto nacional angolano teria de se defrontar com a questão do racismo, fator desintegrador da coesão social em torno de objetivos nacionais básicos. A própria política de assimilação, pretendendo negar o racismo, ao afirmar que a cultura portuguesa encontrava-se potencialmente aberta a todo africano, na verdade, reafirma-o, já que colocava, a priori, todo branco como "civilizado", utilizando critérios de raça para isso. O nacionalismo angolano, em geral, definiu o racismo em sua terra como um fruto do colonialismo, que estabelecera relações interétnicas assimétricas de dominação e subordinação. Estas foram reforçadas inicialmente para justificar a importância da escravidão e do "contrato" na economia desta colônia e, depois, para explicar a vitória de grande parte dos colonos brancos sobre os negros e mestiços na competição pelo emprego como trabalhadores especializados, comerciantes e funcionários subalternos. Sendo o racismo, para vários colonos, a única forma de manter uma posição social superior, as questões que envolviam a "raça" tornavam-se delicadas: a própria palavra era "perigosa".
(…)
A doutrina do luso-tropicalismo foi constantemente questionada pelos intelectuais angolanos, já que negava as diferenciações que na prática existiam entre os negros e portugueses. Esta doutrina, cujo principal teórico era o sociólogo brasileiro Gilberto Freire, a partir da década de 1950, afirmara que a missão portuguesa na África seria criar a fusão racial e difundir o cristianismo, produzindo uma nova e homogênea civilização como a do Brasil. Os "civilizados" negros e mestiços nas colônias eram a prova de que o colonialismo português pautava-se de acordo com os princípios postulados pelo luso-tropicalismo. Estava a se criar, portanto, uma comunidade panlusitana unificada pela cultura portuguesa e pela ausência de racismo, estando o colonialismo português justificado, já que não implantara a desigualdade racial. Este tipo de doutrinação já era propagandeada pelas autoridades portuguesas no território angolano, mormente na escola, já na década de 1930, antes mesmo da constituição da doutrina luso-tropicalista por Freire. Os escritores angolanos protestavam contra a falsidade da doutrina luso-tropicalista ao desmistificarem a obra civilizadora de Portugal descrevendo a realidade racista, desumana e espoliadora de seu colonialismo neste continente. Afinal, não se poderia esquecer que, apesar das autoridades coloniais afirmarem a igualdade dos povos sob a soberania portuguesa, havia na prática limites racistas impostos aos negros pelos colonos e oficiais portugueses. Esta contestação não se deu apenas indiretamente através do texto literário, mas também através de artigos que, do exterior, condenavam esta doutrina. Entre estes, podemos citar os que Mário Coelho Pinto de Andrade escreveu em França sob o pseudônimo de Buanga Fele.
(…)
Apesar de sentir menores restrições que o negro, o mulato também sofria, por parte do branco, discriminações que aumentavam a sua gradação quanto mais escura fosse a sua pele. O racismo para com o mulato transparecia até no cuidado meticuloso com o qual a sociedade colonial classificava os mestiços, diferenciando, por exemplo, o filho de um mulato e de um branco classificando-o como "cabrito". … As famílias brancas, ainda no início da década de 1960, podiam não ver com muito agrado a presença de um mulato entre os seus, sentindo-se incomodadas por seus filhos casarem com mulatos, mesmo que esses fossem seus afilhados. Portanto, o branco poderia ter atitudes paternalistas em relação aos mulatos, mas não via com bons olhos misturar-se. O nacionalismo angolano vingava-se dos portugueses que afirmavam a sua superioridade pela clareza de sua pele, lembrando a origem mulata do Marquês de Pombal, figura histórica de maior relevo em Portugal. Descendente da negra Marta Fernandes da Guiné Portuguesa, o Marquês, um grande herói lusitano, não era de "raça pura", como muitos portugueses, pois tinha um "pé na África"... A mãe negra tornava-se pai e mãe, porque o branco freqüentemente não apenas a abandonava, como não lhe reconhecia, às vezes, o filho. Este desprezo gerava um ressentimento e uma marginalização destes "mulatos descalços", pobres por abandono paterno.
(…)
Os portugueses alimentaram divergências entre mestiços e negros. A existência de grande número de mulatos na militância e cúpula do MPLA - os "crioulos marxistas" - sempre lhe trouxe problemas junto a determinados grupos de negros. A liderança mulata, no processo da luta de libertação, muitas vezes pareceu sentir dificuldades em chefiar uma maioria negra que a rejeitava, tal como, em meados da década de 1960, quando os quimbundos do norte protestaram contra esta forte presença mestiça no movimento. Também a UNITA opunha-se publicamente ao MPLA, não por sua grande base étnica ambundo, mas pela forte influência sócio-cultural mestiça em sua cúpula. Observe-se aí que a discriminação apresentada, mais que meramente de caráter epitelial, configura-se como cultural. A questão não é ter cor mulata, mas "cultura de mulato"…. O nacionalismo dos literatos não caberia bem dentro da exaltação da raça negra, já que negavam o critério racial excludente como definidor da nova nação. É oportuno lembrar que a maioria dos escritores de renome, no momento, eram brancos ou mulatos... Não lhes interessava, como minoria da população e por sua formação político-social, envergar a bandeira de uma nação organizada a partir de critérios raciais.
(…)
Todavia, com a independência, as questões do racismo persistiram. Seria imputado aos nitistas, em sua revolta de 1977, o combate ao número desproporcional de brancos e mestiços na direção do MPLA e na da administração estatal, contrariando a política de igualdade racial do MPLA. Os nitistas representariam, segundo alguns, o ressentimento dos negros pobres dos musseques luandenses contra o papel dos brancos e mestiços na cúpula governamental. Entretanto, para nós não está claro de que houvesse propriamente uma discriminação racial por parte dos nitistas contra os brancos e mestiços da cúpula governamental. Parece-nos que, por detrás do conteúdo epitelial, haveria uma crítica sobre o aburguesamento desta cúpula, em grande parte branca e mestiça, relacionando-se, assim, elitismo ou aburguesamento com a maior clareza da pele. Enquanto uma certa historiografia sobre o movimento nitista assume a denúncia de seus opositores de que ele era um movimento também de cunho racista, os versos de Alves, seu líder, nunca qualificaram como inatamente racial a exploração.
(…)
Como vemos, por esse nosso breve relato, o racismo, por parte de parcela dos negros angolanos, contra brancos e mulatos, nasce em resposta à opressão colonialista e racista que durante séculos aqueles sofreram, persistindo na história angolana até os dias atuais.

(Ler texto integral aqui.)
Por Prof. Dr. Silvio de Almeida Carvalho Filho

A sociedade angolana às vésperas da independência era pluriétnica e dividida, a grosso modo, nas seguintes camadas: brancos privilegiados, colonos brancos pobres, mestiços, negros assimilados e a maioria de negros não assimilados, os chamados "indígenas". O projeto nacional angolano teria de se defrontar com a questão do racismo, fator desintegrador da coesão social em torno de objetivos nacionais básicos. A própria política de assimilação, pretendendo negar o racismo, ao afirmar que a cultura portuguesa encontrava-se potencialmente aberta a todo africano, na verdade, reafirma-o, já que colocava, a priori, todo branco como "civilizado", utilizando critérios de raça para isso. O nacionalismo angolano, em geral, definiu o racismo em sua terra como um fruto do colonialismo, que estabelecera relações interétnicas assimétricas de dominação e subordinação. Estas foram reforçadas inicialmente para justificar a importância da escravidão e do "contrato" na economia desta colônia e, depois, para explicar a vitória de grande parte dos colonos brancos sobre os negros e mestiços na competição pelo emprego como trabalhadores especializados, comerciantes e funcionários subalternos. Sendo o racismo, para vários colonos, a única forma de manter uma posição social superior, as questões que envolviam a "raça" tornavam-se delicadas: a própria palavra era "perigosa".
(…)
A doutrina do luso-tropicalismo foi constantemente questionada pelos intelectuais angolanos, já que negava as diferenciações que na prática existiam entre os negros e portugueses. Esta doutrina, cujo principal teórico era o sociólogo brasileiro Gilberto Freire, a partir da década de 1950, afirmara que a missão portuguesa na África seria criar a fusão racial e difundir o cristianismo, produzindo uma nova e homogênea civilização como a do Brasil. Os "civilizados" negros e mestiços nas colônias eram a prova de que o colonialismo português pautava-se de acordo com os princípios postulados pelo luso-tropicalismo. Estava a se criar, portanto, uma comunidade panlusitana unificada pela cultura portuguesa e pela ausência de racismo, estando o colonialismo português justificado, já que não implantara a desigualdade racial. Este tipo de doutrinação já era propagandeada pelas autoridades portuguesas no território angolano, mormente na escola, já na década de 1930, antes mesmo da constituição da doutrina luso-tropicalista por Freire. Os escritores angolanos protestavam contra a falsidade da doutrina luso-tropicalista ao desmistificarem a obra civilizadora de Portugal descrevendo a realidade racista, desumana e espoliadora de seu colonialismo neste continente. Afinal, não se poderia esquecer que, apesar das autoridades coloniais afirmarem a igualdade dos povos sob a soberania portuguesa, havia na prática limites racistas impostos aos negros pelos colonos e oficiais portugueses. Esta contestação não se deu apenas indiretamente através do texto literário, mas também através de artigos que, do exterior, condenavam esta doutrina. Entre estes, podemos citar os que Mário Coelho Pinto de Andrade escreveu em França sob o pseudônimo de Buanga Fele.
(…)
Apesar de sentir menores restrições que o negro, o mulato também sofria, por parte do branco, discriminações que aumentavam a sua gradação quanto mais escura fosse a sua pele. O racismo para com o mulato transparecia até no cuidado meticuloso com o qual a sociedade colonial classificava os mestiços, diferenciando, por exemplo, o filho de um mulato e de um branco classificando-o como "cabrito". … As famílias brancas, ainda no início da década de 1960, podiam não ver com muito agrado a presença de um mulato entre os seus, sentindo-se incomodadas por seus filhos casarem com mulatos, mesmo que esses fossem seus afilhados. Portanto, o branco poderia ter atitudes paternalistas em relação aos mulatos, mas não via com bons olhos misturar-se. O nacionalismo angolano vingava-se dos portugueses que afirmavam a sua superioridade pela clareza de sua pele, lembrando a origem mulata do Marquês de Pombal, figura histórica de maior relevo em Portugal. Descendente da negra Marta Fernandes da Guiné Portuguesa, o Marquês, um grande herói lusitano, não era de "raça pura", como muitos portugueses, pois tinha um "pé na África"... A mãe negra tornava-se pai e mãe, porque o branco freqüentemente não apenas a abandonava, como não lhe reconhecia, às vezes, o filho. Este desprezo gerava um ressentimento e uma marginalização destes "mulatos descalços", pobres por abandono paterno.
(…)
Os portugueses alimentaram divergências entre mestiços e negros. A existência de grande número de mulatos na militância e cúpula do MPLA - os "crioulos marxistas" - sempre lhe trouxe problemas junto a determinados grupos de negros. A liderança mulata, no processo da luta de libertação, muitas vezes pareceu sentir dificuldades em chefiar uma maioria negra que a rejeitava, tal como, em meados da década de 1960, quando os quimbundos do norte protestaram contra esta forte presença mestiça no movimento. Também a UNITA opunha-se publicamente ao MPLA, não por sua grande base étnica ambundo, mas pela forte influência sócio-cultural mestiça em sua cúpula. Observe-se aí que a discriminação apresentada, mais que meramente de caráter epitelial, configura-se como cultural. A questão não é ter cor mulata, mas "cultura de mulato"…. O nacionalismo dos literatos não caberia bem dentro da exaltação da raça negra, já que negavam o critério racial excludente como definidor da nova nação. É oportuno lembrar que a maioria dos escritores de renome, no momento, eram brancos ou mulatos... Não lhes interessava, como minoria da população e por sua formação político-social, envergar a bandeira de uma nação organizada a partir de critérios raciais.
(…)
Todavia, com a independência, as questões do racismo persistiram. Seria imputado aos nitistas, em sua revolta de 1977, o combate ao número desproporcional de brancos e mestiços na direção do MPLA e na da administração estatal, contrariando a política de igualdade racial do MPLA. Os nitistas representariam, segundo alguns, o ressentimento dos negros pobres dos musseques luandenses contra o papel dos brancos e mestiços na cúpula governamental. Entretanto, para nós não está claro de que houvesse propriamente uma discriminação racial por parte dos nitistas contra os brancos e mestiços da cúpula governamental. Parece-nos que, por detrás do conteúdo epitelial, haveria uma crítica sobre o aburguesamento desta cúpula, em grande parte branca e mestiça, relacionando-se, assim, elitismo ou aburguesamento com a maior clareza da pele. Enquanto uma certa historiografia sobre o movimento nitista assume a denúncia de seus opositores de que ele era um movimento também de cunho racista, os versos de Alves, seu líder, nunca qualificaram como inatamente racial a exploração.
(…)
Como vemos, por esse nosso breve relato, o racismo, por parte de parcela dos negros angolanos, contra brancos e mulatos, nasce em resposta à opressão colonialista e racista que durante séculos aqueles sofreram, persistindo na história angolana até os dias atuais.

(Ler texto integral aqui.)

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