Friday 10 October 2008

'DESEMBRULHANDO A CRISE' (I)

Sub-entitulei este blog “deitando contas a vida” porque, sendo economista de formacao e exercendo a minha actividade profissional geralmente em ambientes, ou com responsabilidades, que nao me conferem facilmente o tempo necessario ou um espaco que me permita dedicar-me a outros interesses que sempre tive ao longo da vida e que durante varios anos tive que deixar completamente negligenciados, sentia necessidade de arranjar esse tempo e espaco.

Por isso a criacao deste blog, como um lugar onde pudesse fazer, dizer e discutir o que me desse ‘na real gana’, sem grandes formalidades ou preocupacoes de rigor profissional, academico ou diplomatico, mantendo embora a seriedade e honestidade que julgo serem devidas a qualquer espaco de publicacao. Portanto, como economista, se viesse a “deitar contas” a alguma coisa neste espaco seria apenas, e muito informalmente, “a vida” tomada na sua forma mais geral, despreocupada e descomprometida possivel.

Por essa razao, tenho evitado, tanto quanto possivel, trazer para aqui questoes que sejam, directa ou indirectamente, do meu ambito profissional. Assim, alguns dos artigos ou outros materiais de minha autoria sobre questoes relativas a economia ou a historia economica que aqui postei, ou ja’ tinham sido publicados noutros espacos, ou, se escritos durante a existencia deste blog, preferi publica-los noutros espacos online, como o Africanpath ou o Atlantic Community.

Vem isto em geito de introducao a esta nova serie, que entitulo ‘desembrulhando a crise’, porque pretendo com ela fazer isso mesmo: tentar desembrulhar os varios aspectos da actual crise economica global, quanto mais nao seja porque, como nenhuma outra na memoria recente, ela tem tido e vai continuar a ter por tempo ainda dificil de predizer os mais diversos impactos na vida de todos nos de forma geral, tornando-a menos despreocupada e descomprometida do que muito provavelmente todos gostariamos. Tentarei faze-lo malembe malembe, como convem a natureza das questoes envolvidas e ao tempo de que disponho, evitando, no entanto, o mais possivel, torna-la demasiado academica ou profissional, ate’ porque isso apenas “embrulharia” ainda mais as questoes em causa.

I. De ‘gigantes com pes de barro’, ‘tigres de papel’ e ‘baloes de ar rarefeito’

Como todos ja’ sabemos, os sinais mais preocupantes desta crise comecaram a anunciar-se ha’ pouco mais de um ano nos EUA, com o que ficou conhecido como a crise do “sub-prime”. O credito "sub-prime" (ou sub-prime lending) no mercado imobiliario e’ geralmente entendido como emprestimos habitacionais concedidos a individuos com um baixo credit rating (ou seja, que por varias razoes, desde relativamente baixos salarios e/ou inseguras fontes de rendimento a falta de pagamento de creditos anteriores, normalmente nao teriam acesso ao credito bancario para tais, ou mesmo outros, efeitos). O termo tambem se aplica a transaccoes financeiras sobre propriedades com um valor real, ou potencial, inferior aquele pelo qual tenham sido incialmente quotadas. A circunstancia de tao grande numero de propriedades ter caido nessa categoria nos EUA deveu-se fundamentalmente a duas ordens de factores:

1. Os bancos, de forma alarmantemente generalizada, vinham concedendo credito para a compra de habitacoes a segmentos populacionais que nao tinham condicoes reais de as pagar, isto e’, que caiam na categoria do sub-prime lending. Essa pratica tornou-se ainda mais danosa quando, como se verificou em muitos casos, se estendeu a habitacoes de baixo valor patrimonial, quer intrinseco, quer em termos da sua localizacao, as quais, caso os bancos credores tivessem – como foram tendo num relativamente curto espaco de tempo, a medida que os niveis de desemprego se iam tornando cada vez mais elevados –, necessidade de as retomar (atraves das chamadas foreclosures, ou execucao contenciosa de hipotecas) para as revenderem no mercado, nao lhes renderiam o suficiente, isto se lhes rendessem alguma coisa, para cobrirem as perdas devidas ao mau credito inicial que sobre elas tinham feito.
A piorar a situacao, a recessao que se vinha instalando noutros sectores da economia, fez com que grande numero de propriedades, mesmo com relativamente maior valor patrimonial, tambem se tornassem ‘pesos mortos’ nos seus inventarios e balancos, porque se colocadas ou recolocadas no mercado, quer primario (as casas propriamente ditas a novos compradores), quer secundario (as hipotecas, ou mortgages, das casas a outros agentes do sistema financeiro) dificilmente viriam a encontrar oportunidades de transaccao viaveis ou suficientemente lucrativas.

2. Paralelamente a divida contraida para a compra de habitacoes, os consumidores, no mercado sub-prime e nao so, foram tambem adquirindo do sistema financeiro outros creditos para consumo, ou para investimento pessoal (e.g. seguros de vida, ou para cuidados de saude e tratamento hospitalar – de notar que os EUA nao teem um servico publico de saude), em certos casos com base nas hipotecas de tais habitacoes, mesmo quando ainda nao as tivessem pago completamente, o que veio “embrulhar” ainda mais a crise. A este ponto voltarei mais tarde.

Esta crise remete-nos para a pedra basilar do funcionamento do sistema bancario ou, dito de outro modo, para a regra de ouro da concessao de credito: o emprestimo de qualquer valor monetario por qualquer credor, banco ou outro agente financeiro, tem que ter por base um valor real, que sirva de garantia para o reembolso de tal emprestimo, por parte do devedor. Isto e’, nao deve haver credito sem ‘colateral’ (ou seja, um bem tangivel que, no caso da actual crise, sao ou seriam as habitacoes sobre as quais os emprestimos privados, quer em termos de quantias monetarias, quer sob a forma de cartoes de credito, foram concedidos).

Ora, essa regra de ouro foi violada seria e serialmente pelo sistema bancario Americano que, ao faze-lo e perante uma recessao generalizada da economia, ficou exposto como um ‘gigante com pes de barro’, ‘tigre de papel’ ou ‘balao de ar rarefeito’: isto e’, perante a contraccao da economia real (devido ao que se poderia classificar como a ‘rarefaccao do oxigenio’ criado pelo emprego, a produtividade, o investimento e, em consequencia destes, pelo crescimento economico), o sistema financeiro – incluindo todos os seus sectores: o primario, constituido essencialmente pelos bancos comerciais e de credito (os que sustentam a chamada main street, ou seja, qualquer 'rua principal' onde se fazem os negocios particulares do dia a dia); o secundario, constituido essencialmente pelas companhias de seguros e resseguros (como a American International Group, AIG, operando sobretudo no seguro de bancos) e instituicoes operando na concessao de garantias a emprestimos (como a Federal Home Loan Mortgage Corporation, mais conhecida como Freddie Mac, e a Federal National Mortgage Association, mais conhecida como Fannie Mae); o terciario, constituido pelas bolsas de valores (proeminentemente a de Wall Street, ‘reinado’ de investidores como Lehman Brothers e Merril Lynch) e, ultimamente, com a aprovacao da ‘boia de salvacao’ de 700 bilioes de dolares pelo governo, ate’ o ‘emprestador de ultimo recurso’ do sistema, isto e’, o Banco Central (Federal Reserve, Fed) –, deixou de ter terra firme (os bens tangiveis, as casas) em que assentar os pes, transaccionando apenas com base em ‘papeis’ (notas de credito) sem qualquer valor real. Dai as falencias em catadupa de todos os operadores financeiros acima citados, uns completamente, outros temporariamente salvos pelo FED.

Essa, do meu ponto de vista, a essencia da crise que se vem desenrolando aos nossos olhos.
Se ha’ uma licao basica a retirar dela, e’ que nenhuma economia se pode dar ao luxo de perder o equilibrio essencial entre o sector de bens (e servicos) e o sector das financas, ou seja, entre a economia real e a economia monetaria. Este ‘lembrete’ torna-se particularmente relevante para algumas das questoes que levantei, bastante antes desta crise, no meu artigo “Politica Futebol e Algumas Consideracoes sobre a Actual Conjuntura Economica Angolana”.
A elas voltarei.
Sub-entitulei este blog “deitando contas a vida” porque, sendo economista de formacao e exercendo a minha actividade profissional geralmente em ambientes, ou com responsabilidades, que nao me conferem facilmente o tempo necessario ou um espaco que me permita dedicar-me a outros interesses que sempre tive ao longo da vida e que durante varios anos tive que deixar completamente negligenciados, sentia necessidade de arranjar esse tempo e espaco.

Por isso a criacao deste blog, como um lugar onde pudesse fazer, dizer e discutir o que me desse ‘na real gana’, sem grandes formalidades ou preocupacoes de rigor profissional, academico ou diplomatico, mantendo embora a seriedade e honestidade que julgo serem devidas a qualquer espaco de publicacao. Portanto, como economista, se viesse a “deitar contas” a alguma coisa neste espaco seria apenas, e muito informalmente, “a vida” tomada na sua forma mais geral, despreocupada e descomprometida possivel.

Por essa razao, tenho evitado, tanto quanto possivel, trazer para aqui questoes que sejam, directa ou indirectamente, do meu ambito profissional. Assim, alguns dos artigos ou outros materiais de minha autoria sobre questoes relativas a economia ou a historia economica que aqui postei, ou ja’ tinham sido publicados noutros espacos, ou, se escritos durante a existencia deste blog, preferi publica-los noutros espacos online, como o Africanpath ou o Atlantic Community.

Vem isto em geito de introducao a esta nova serie, que entitulo ‘desembrulhando a crise’, porque pretendo com ela fazer isso mesmo: tentar desembrulhar os varios aspectos da actual crise economica global, quanto mais nao seja porque, como nenhuma outra na memoria recente, ela tem tido e vai continuar a ter por tempo ainda dificil de predizer os mais diversos impactos na vida de todos nos de forma geral, tornando-a menos despreocupada e descomprometida do que muito provavelmente todos gostariamos. Tentarei faze-lo malembe malembe, como convem a natureza das questoes envolvidas e ao tempo de que disponho, evitando, no entanto, o mais possivel, torna-la demasiado academica ou profissional, ate’ porque isso apenas “embrulharia” ainda mais as questoes em causa.

I. De ‘gigantes com pes de barro’, ‘tigres de papel’ e ‘baloes de ar rarefeito’

Como todos ja’ sabemos, os sinais mais preocupantes desta crise comecaram a anunciar-se ha’ pouco mais de um ano nos EUA, com o que ficou conhecido como a crise do “sub-prime”. O credito "sub-prime" (ou sub-prime lending) no mercado imobiliario e’ geralmente entendido como emprestimos habitacionais concedidos a individuos com um baixo credit rating (ou seja, que por varias razoes, desde relativamente baixos salarios e/ou inseguras fontes de rendimento a falta de pagamento de creditos anteriores, normalmente nao teriam acesso ao credito bancario para tais, ou mesmo outros, efeitos). O termo tambem se aplica a transaccoes financeiras sobre propriedades com um valor real, ou potencial, inferior aquele pelo qual tenham sido incialmente quotadas. A circunstancia de tao grande numero de propriedades ter caido nessa categoria nos EUA deveu-se fundamentalmente a duas ordens de factores:

1. Os bancos, de forma alarmantemente generalizada, vinham concedendo credito para a compra de habitacoes a segmentos populacionais que nao tinham condicoes reais de as pagar, isto e’, que caiam na categoria do sub-prime lending. Essa pratica tornou-se ainda mais danosa quando, como se verificou em muitos casos, se estendeu a habitacoes de baixo valor patrimonial, quer intrinseco, quer em termos da sua localizacao, as quais, caso os bancos credores tivessem – como foram tendo num relativamente curto espaco de tempo, a medida que os niveis de desemprego se iam tornando cada vez mais elevados –, necessidade de as retomar (atraves das chamadas foreclosures, ou execucao contenciosa de hipotecas) para as revenderem no mercado, nao lhes renderiam o suficiente, isto se lhes rendessem alguma coisa, para cobrirem as perdas devidas ao mau credito inicial que sobre elas tinham feito.
A piorar a situacao, a recessao que se vinha instalando noutros sectores da economia, fez com que grande numero de propriedades, mesmo com relativamente maior valor patrimonial, tambem se tornassem ‘pesos mortos’ nos seus inventarios e balancos, porque se colocadas ou recolocadas no mercado, quer primario (as casas propriamente ditas a novos compradores), quer secundario (as hipotecas, ou mortgages, das casas a outros agentes do sistema financeiro) dificilmente viriam a encontrar oportunidades de transaccao viaveis ou suficientemente lucrativas.

2. Paralelamente a divida contraida para a compra de habitacoes, os consumidores, no mercado sub-prime e nao so, foram tambem adquirindo do sistema financeiro outros creditos para consumo, ou para investimento pessoal (e.g. seguros de vida, ou para cuidados de saude e tratamento hospitalar – de notar que os EUA nao teem um servico publico de saude), em certos casos com base nas hipotecas de tais habitacoes, mesmo quando ainda nao as tivessem pago completamente, o que veio “embrulhar” ainda mais a crise. A este ponto voltarei mais tarde.

Esta crise remete-nos para a pedra basilar do funcionamento do sistema bancario ou, dito de outro modo, para a regra de ouro da concessao de credito: o emprestimo de qualquer valor monetario por qualquer credor, banco ou outro agente financeiro, tem que ter por base um valor real, que sirva de garantia para o reembolso de tal emprestimo, por parte do devedor. Isto e’, nao deve haver credito sem ‘colateral’ (ou seja, um bem tangivel que, no caso da actual crise, sao ou seriam as habitacoes sobre as quais os emprestimos privados, quer em termos de quantias monetarias, quer sob a forma de cartoes de credito, foram concedidos).

Ora, essa regra de ouro foi violada seria e serialmente pelo sistema bancario Americano que, ao faze-lo e perante uma recessao generalizada da economia, ficou exposto como um ‘gigante com pes de barro’, ‘tigre de papel’ ou ‘balao de ar rarefeito’: isto e’, perante a contraccao da economia real (devido ao que se poderia classificar como a ‘rarefaccao do oxigenio’ criado pelo emprego, a produtividade, o investimento e, em consequencia destes, pelo crescimento economico), o sistema financeiro – incluindo todos os seus sectores: o primario, constituido essencialmente pelos bancos comerciais e de credito (os que sustentam a chamada main street, ou seja, qualquer 'rua principal' onde se fazem os negocios particulares do dia a dia); o secundario, constituido essencialmente pelas companhias de seguros e resseguros (como a American International Group, AIG, operando sobretudo no seguro de bancos) e instituicoes operando na concessao de garantias a emprestimos (como a Federal Home Loan Mortgage Corporation, mais conhecida como Freddie Mac, e a Federal National Mortgage Association, mais conhecida como Fannie Mae); o terciario, constituido pelas bolsas de valores (proeminentemente a de Wall Street, ‘reinado’ de investidores como Lehman Brothers e Merril Lynch) e, ultimamente, com a aprovacao da ‘boia de salvacao’ de 700 bilioes de dolares pelo governo, ate’ o ‘emprestador de ultimo recurso’ do sistema, isto e’, o Banco Central (Federal Reserve, Fed) –, deixou de ter terra firme (os bens tangiveis, as casas) em que assentar os pes, transaccionando apenas com base em ‘papeis’ (notas de credito) sem qualquer valor real. Dai as falencias em catadupa de todos os operadores financeiros acima citados, uns completamente, outros temporariamente salvos pelo FED.

Essa, do meu ponto de vista, a essencia da crise que se vem desenrolando aos nossos olhos.
Se ha’ uma licao basica a retirar dela, e’ que nenhuma economia se pode dar ao luxo de perder o equilibrio essencial entre o sector de bens (e servicos) e o sector das financas, ou seja, entre a economia real e a economia monetaria. Este ‘lembrete’ torna-se particularmente relevante para algumas das questoes que levantei, bastante antes desta crise, no meu artigo “Politica Futebol e Algumas Consideracoes sobre a Actual Conjuntura Economica Angolana”.
A elas voltarei.

2 comments:

umBhalane said...

Parabéns pelo artigo, escrito de forma acessível, e bem sob o ponto de vista técnico.

Bem estruturado, e numa linguagem simples, simplificada, quando mesmo recorrendo a "tecnicismos", obrigatórios, estes são descodificados, "traduzidos".

Como convém, para quem tem sempre em mente onde quer chegar, e não falar (escrever) sozinha.

Para chegar às raízes, mesmo "brancas", que nem eu.

O muenhu uala moxi a mutu.

Kandandu

umBhalane

Koluki said...

Tutondele!