Friday, 22 December 2006

MAKAS NA SANZALA (I)

Voltando a "Receita para um jet-set nacional" (Angolano ou Mocambicano):
Uma Segunda Leitura, Um Olhar Diferente
3. O facto de o artigo original do Mia Couto ter sido publicado ha dois anos atras, levou-me a ir repescar alguns artigos publicados por aquela altura, em 2004, e decidi postar aqui dois deles, um em Portugues e outro em Ingles. Aqui vai o primeiro:

Angola: Quando o Silêncio do Povo Fala
Rafael Marques, 17 Janeiro 2004

"Rap é falar em rima ao ritmo de uma batida", Kurtis Blow

(Parte I)
Pelos labirínticos becos, que retalham a encosta do Margoso, serpenteiam imparáveis cursos de águas fétidas. Por aí passam e habitam, de olfacto habituado, gerações de cidadãos, entregues ao esquecimento. É por esses caminhos, por esses musseques politicamente abandonados, que uma geração de jovens, excluídos e ressentidos, engendra uma nova revolução política, através do rap e acumuladas frustrações de uma cidadania roubada.
MCK, 22 anos, ganhou notoriedade. (...) A 26 de Novembro de 2003, Arsénio Sebastião "Cherokee", 27 anos, foi morto por cantar "A téknica, as kausas e as konsekuências" de MCK, também conhecida como o "Sei lá o quê, uáué". Por sua vez, Cherokee tornou-se num símbolo da injustiça em Angola(...). Esse facto trouxe à tona a insustentável leveza do poder. Uma ditadura de mais de um quarto de século estremece ao som improvisado da verdade. A estrofe "quem fala a verdade vai p'ro caixão", acabou por ser o único elo de entendimento entre o cantor, a vítima e os carrascos (o poder).
Ao descer por aqueles becos, a caminho da sua casa, MCK goza com o seu estatuto social sobretudo quando, às manhãs, dedica-se a acarretar água para casa, com o bidão às costas, ao ombro ou à mão conforme der mais jeito e o número de viagens. "Sou o caçula de casa e tenho de acarretar água todos os dias," conta. O seu quarto é demasiado apertado, mesmo para uma pessoa. Em tempo de chuvas as rezas ajudam a manter a casa e a fé. Nesse espaço de sobrevivência, encontram-se outros activistas do rap. Furacão e o Keyta Mayanda. Faltou o Brigadeiro 10 Pacotes, encarregue de organizar a missa do 30º dia em memória de Cherokee.
O cenário de indignação exibido nos rostos e nos cartazes que perfilam o beco do Marçal, onde o malogrado habitava, é uma demonstração de maturidade e de tomada de consciência sobre a realidade no relacionamento entre o poder e o povo.


Num país onde a solidariedade e o espírito de açambarcamento uniram-se em comunhão de bens, os rappers conseguiram, por sua iniciativa, angariar perto de mil dólares para entregar à família da vítima. Um valor incomparável à fuba e ao feijão depositados pela guarda presidencial em casa do malogrado. Mais, MCK assumiu o compromisso pela escolarização dos dois órfãos de Cherokee. Faz a venda directa dos seus discos e os magros proventos junta-os para a causa a que se propôs. Essa é a revolução. "Temos de promover uma revolução mental para corrigir o que se passou em 1975. Mudou-se o colono, mas manteve-se o sistema. Nós não somos ninguém no nosso próprio país," afirma Keyta Mayanda. "Apertaste no play e caíste numa trincheira de ideias", avisa a música introdutória do CD de MCK, com 13 faixas, com o sugestivo título de "Trincheira de Ideias". Esse álbum e outros de teor mais radical como "Conheça a verdade e a verdade te libertará", do Brigadeiro 10 Pacotes, são gravados e reproduzidos em estúdios improvisados como munições para alimentar frentes específicas.
Voluntariosos taxistas, os indispensáveis candongueiros, transportadores das massas, encontram-se entre os propagadores desse despertar de consciências, essa politização das massas. Põem a tocar, nos seus veículos cheios de passageiros, esse tipo de música contestária e censurada, cuja qualidade vale pelo conteúdo e até mesmo pela batida. "Governo toca mais uma guitarra", do Brigadeiro 10 Pacotes, é o som mais controverso e escutado nesse circuito de distribuição . É uma afronta em discurso directo contra o Soba Grande.
Voltando a "Receita para um jet-set nacional" (Angolano ou Mocambicano):
Uma Segunda Leitura, Um Olhar Diferente
3. O facto de o artigo original do Mia Couto ter sido publicado ha dois anos atras, levou-me a ir repescar alguns artigos publicados por aquela altura, em 2004, e decidi postar aqui dois deles, um em Portugues e outro em Ingles. Aqui vai o primeiro:

Angola: Quando o Silêncio do Povo Fala
Rafael Marques, 17 Janeiro 2004

"Rap é falar em rima ao ritmo de uma batida", Kurtis Blow

(Parte I)
Pelos labirínticos becos, que retalham a encosta do Margoso, serpenteiam imparáveis cursos de águas fétidas. Por aí passam e habitam, de olfacto habituado, gerações de cidadãos, entregues ao esquecimento. É por esses caminhos, por esses musseques politicamente abandonados, que uma geração de jovens, excluídos e ressentidos, engendra uma nova revolução política, através do rap e acumuladas frustrações de uma cidadania roubada.
MCK, 22 anos, ganhou notoriedade. (...) A 26 de Novembro de 2003, Arsénio Sebastião "Cherokee", 27 anos, foi morto por cantar "A téknica, as kausas e as konsekuências" de MCK, também conhecida como o "Sei lá o quê, uáué". Por sua vez, Cherokee tornou-se num símbolo da injustiça em Angola(...). Esse facto trouxe à tona a insustentável leveza do poder. Uma ditadura de mais de um quarto de século estremece ao som improvisado da verdade. A estrofe "quem fala a verdade vai p'ro caixão", acabou por ser o único elo de entendimento entre o cantor, a vítima e os carrascos (o poder).
Ao descer por aqueles becos, a caminho da sua casa, MCK goza com o seu estatuto social sobretudo quando, às manhãs, dedica-se a acarretar água para casa, com o bidão às costas, ao ombro ou à mão conforme der mais jeito e o número de viagens. "Sou o caçula de casa e tenho de acarretar água todos os dias," conta. O seu quarto é demasiado apertado, mesmo para uma pessoa. Em tempo de chuvas as rezas ajudam a manter a casa e a fé. Nesse espaço de sobrevivência, encontram-se outros activistas do rap. Furacão e o Keyta Mayanda. Faltou o Brigadeiro 10 Pacotes, encarregue de organizar a missa do 30º dia em memória de Cherokee.
O cenário de indignação exibido nos rostos e nos cartazes que perfilam o beco do Marçal, onde o malogrado habitava, é uma demonstração de maturidade e de tomada de consciência sobre a realidade no relacionamento entre o poder e o povo.


Num país onde a solidariedade e o espírito de açambarcamento uniram-se em comunhão de bens, os rappers conseguiram, por sua iniciativa, angariar perto de mil dólares para entregar à família da vítima. Um valor incomparável à fuba e ao feijão depositados pela guarda presidencial em casa do malogrado. Mais, MCK assumiu o compromisso pela escolarização dos dois órfãos de Cherokee. Faz a venda directa dos seus discos e os magros proventos junta-os para a causa a que se propôs. Essa é a revolução. "Temos de promover uma revolução mental para corrigir o que se passou em 1975. Mudou-se o colono, mas manteve-se o sistema. Nós não somos ninguém no nosso próprio país," afirma Keyta Mayanda. "Apertaste no play e caíste numa trincheira de ideias", avisa a música introdutória do CD de MCK, com 13 faixas, com o sugestivo título de "Trincheira de Ideias". Esse álbum e outros de teor mais radical como "Conheça a verdade e a verdade te libertará", do Brigadeiro 10 Pacotes, são gravados e reproduzidos em estúdios improvisados como munições para alimentar frentes específicas.
Voluntariosos taxistas, os indispensáveis candongueiros, transportadores das massas, encontram-se entre os propagadores desse despertar de consciências, essa politização das massas. Põem a tocar, nos seus veículos cheios de passageiros, esse tipo de música contestária e censurada, cuja qualidade vale pelo conteúdo e até mesmo pela batida. "Governo toca mais uma guitarra", do Brigadeiro 10 Pacotes, é o som mais controverso e escutado nesse circuito de distribuição . É uma afronta em discurso directo contra o Soba Grande.

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