Tuesday 2 September 2008

MUXIMA

As velas mexem-se freneticamente e traçam rabiscos breves de luz na noite escura. As vozes modulam-se em êxtase. De repente, enquanto escrevem a minha morada numa folha encardida, ela chega. Sem aviso prévio, e elevada sobre a multidão, a Mamã Muxima surge a contraluz no lado esquerdo da porta. Em segundos, percorre todo o meu ecrã imaginário e desaparece pelo canto direito. Sem tempo de pedir um desejo, ela continua o seu percurso fora do meu ângulo de visão, do lado de lá da fronteira que divide a prisão da liberdade.

Ao lado, no “banco dos suspeitos”, a polícia passa a pente fino tudo o que o gravador e a máquina fotográfica registaram ao longo do dia. Os “flashes” passam ao lado do agente, que nem repara naquela mais-velha da fotografia. As lágrimas correm-lhe pela cara, seguindo os sulcos das rugas vincadas na pele negra. Chora em silêncio, braços ao alto, joelhos empoeirados pregados no chão. Esgar de prece e de dor, olhos fechados que apontam o altar de onde a Mamã Muxima tudo contempla, tudo acolhe. E as imagens sucedem-se, inocentes: O fumo dos fogareiros e das pequenas fogueiras mistura-se com a névoa de poeira fina. A maior parte dos peregrinos traz os alimentos, prontos a cozinhar. Outros não. Para estes, uma série de barracas pontilha a Muxima com o aval das autoridades terrenas da vila-santuário. Vêm de Luanda à procura de lucro e da bênção. Para que o negócio corra bem, para que os investimentos sejam superados, para que, no regresso a casa, os Hiaces que pagaram a peso de ouro não se despistem. Alguns não têm sorte. As carcaças ao longo da estrada entre Sangano e a Muxima deixam adivinhar finais infelizes. Avança a busca na máquina fotográfica e surge a multidão entre as barracas improvisadas e os panos que cobrem o chão, que servirão de cama quando a noite fresca do fim do cacimbo à beira Kwanza chegar.
Jovens, velhos, menos jovens, homens, mulheres, muitas mulheres caminham, tropeçam, cruzam-se, dançam, vão, regressam, sentamse, deitam-se, levantam-se, curvam-se, ajoelham-se, rezam, existem. “Mamã Muxima Rogai por Nós” estampado nas t-shirts brancas da maior parte dos peregrinos. A rodear a cintura e a cobrir a cabeça, panos tradicionais com a santa estampada de todas as formas e feitios. A massa humana é um caleidoscópio de cores.

Com o gravador encostado ao ouvido, para abafar o som que vem lá de fora, a polícia ouve o apelo do Frei Lukonda, na celebração penitencial: “A Paz foi um grande sacrifício. Paz não é só o calar das armas, é preciso desarmar as mentes”. A gravação digital avança e dá voz aos anseios do povo: “Peço para que a Mamã Muxima me arranje noivo”; “Quero que a Mamã tire o meu irmão e o meu noivo da droga”; “Só peço à Mamã Muxima que traga paz a Angola”. Por fim, a fé dos peregrinos: “A Mamã Muxima para mim é tudo, é uma irmã, uma amiga, uma companheira”; “A Mamã Muxima é a minha luz, é o meu Deus”; “A Mamã Muxima nunca me abandonou, sempre esteve comigo durante a vida”. “Irmão” e “Irmã” são palavras-refrão, no meu gravador. Os sorrisos são constantes, os abraços multiplicam-se, mesmo entre desconhecidos.
Vive-se uma espécie de estado de graça na Muxima que envolve os peregrinos, o casario velho da vila, a igreja, a capela lá no alto do morro e o Kwanza que, por aqueles lados, corre por entre uma vegetação verde-luxuriante, num cenário idílico. Por entre a azáfama, uma voz quase imperceptível improvisa um cântico religioso. Tudo à volta pára. Uma, duas, dez, vinte vozes num kimbundu compassado e harmonioso tornam-se onda de choque sonora. O compasso é marcado por palmas. Tac, tac, tac em ampliação desmesurada, fé em estado efervescente. O gravador faz stop, acabou a gravação.


Foto daqui

“A primeira grande peregrinação à Muxima de que há registos aconteceu em 1650, quando se repôs a imagem da santa no altar-mor da igreja, vencida a invasão holandesa”, conta Mário Torres, reitor do santuário. No entanto, já antes o culto se fazia sentir naquela área, em torno de “uma antiga capela de pau-a-pique que havia numa zona que o rio entretanto tomou”. As lendas em torno do culto “são muitas”, conta o sacerdote, mas há uma que chama especial atenção: “o povo conta que esta igreja da Muxima apareceu de um dia para o outro, como por milagre.
No meu entender isso é uma forma das pessoas explicarem a forma como o culto se impôs na região que, de facto, aconteceu num espaço de 15 anos”. Mário Torres rejeita também a versão popular de a Mamã Muxima ter aparecido no local onde se ergue a capela, no alto do morro. O sacerdote assume ainda o sincretismo do culto à imagem. “A devoção à Mamã Muxima não é puramente cristã, envolve muita magia e feitiçaria. As pessoas vêem a santa como uma pessoa com muito poder, suficientemente forte para fazer o bem e mesmo o mal”, diz, explicando que o desafio passa por “atribuir um verdadeiro significado cristão ao culto, incorporando o que a tradição tem de bom”.
Este ano a romaria aconteceu mais cedo. “A acontecer no primeiro domingo de Setembro, como é normal, a peregrinação calharia dois dias depois das eleições, o que poderia colocar as pessoas entre duas opções: ou votar ou vir à Muxima. Como temos que assumir a nossa responsabilidade, resolvemos alterar a data”, explica o reitor.

[Aqui]

duo ouro negro - muxima
As velas mexem-se freneticamente e traçam rabiscos breves de luz na noite escura. As vozes modulam-se em êxtase. De repente, enquanto escrevem a minha morada numa folha encardida, ela chega. Sem aviso prévio, e elevada sobre a multidão, a Mamã Muxima surge a contraluz no lado esquerdo da porta. Em segundos, percorre todo o meu ecrã imaginário e desaparece pelo canto direito. Sem tempo de pedir um desejo, ela continua o seu percurso fora do meu ângulo de visão, do lado de lá da fronteira que divide a prisão da liberdade.

Ao lado, no “banco dos suspeitos”, a polícia passa a pente fino tudo o que o gravador e a máquina fotográfica registaram ao longo do dia. Os “flashes” passam ao lado do agente, que nem repara naquela mais-velha da fotografia. As lágrimas correm-lhe pela cara, seguindo os sulcos das rugas vincadas na pele negra. Chora em silêncio, braços ao alto, joelhos empoeirados pregados no chão. Esgar de prece e de dor, olhos fechados que apontam o altar de onde a Mamã Muxima tudo contempla, tudo acolhe. E as imagens sucedem-se, inocentes: O fumo dos fogareiros e das pequenas fogueiras mistura-se com a névoa de poeira fina. A maior parte dos peregrinos traz os alimentos, prontos a cozinhar. Outros não. Para estes, uma série de barracas pontilha a Muxima com o aval das autoridades terrenas da vila-santuário. Vêm de Luanda à procura de lucro e da bênção. Para que o negócio corra bem, para que os investimentos sejam superados, para que, no regresso a casa, os Hiaces que pagaram a peso de ouro não se despistem. Alguns não têm sorte. As carcaças ao longo da estrada entre Sangano e a Muxima deixam adivinhar finais infelizes. Avança a busca na máquina fotográfica e surge a multidão entre as barracas improvisadas e os panos que cobrem o chão, que servirão de cama quando a noite fresca do fim do cacimbo à beira Kwanza chegar.
Jovens, velhos, menos jovens, homens, mulheres, muitas mulheres caminham, tropeçam, cruzam-se, dançam, vão, regressam, sentamse, deitam-se, levantam-se, curvam-se, ajoelham-se, rezam, existem. “Mamã Muxima Rogai por Nós” estampado nas t-shirts brancas da maior parte dos peregrinos. A rodear a cintura e a cobrir a cabeça, panos tradicionais com a santa estampada de todas as formas e feitios. A massa humana é um caleidoscópio de cores.

Com o gravador encostado ao ouvido, para abafar o som que vem lá de fora, a polícia ouve o apelo do Frei Lukonda, na celebração penitencial: “A Paz foi um grande sacrifício. Paz não é só o calar das armas, é preciso desarmar as mentes”. A gravação digital avança e dá voz aos anseios do povo: “Peço para que a Mamã Muxima me arranje noivo”; “Quero que a Mamã tire o meu irmão e o meu noivo da droga”; “Só peço à Mamã Muxima que traga paz a Angola”. Por fim, a fé dos peregrinos: “A Mamã Muxima para mim é tudo, é uma irmã, uma amiga, uma companheira”; “A Mamã Muxima é a minha luz, é o meu Deus”; “A Mamã Muxima nunca me abandonou, sempre esteve comigo durante a vida”. “Irmão” e “Irmã” são palavras-refrão, no meu gravador. Os sorrisos são constantes, os abraços multiplicam-se, mesmo entre desconhecidos.
Vive-se uma espécie de estado de graça na Muxima que envolve os peregrinos, o casario velho da vila, a igreja, a capela lá no alto do morro e o Kwanza que, por aqueles lados, corre por entre uma vegetação verde-luxuriante, num cenário idílico. Por entre a azáfama, uma voz quase imperceptível improvisa um cântico religioso. Tudo à volta pára. Uma, duas, dez, vinte vozes num kimbundu compassado e harmonioso tornam-se onda de choque sonora. O compasso é marcado por palmas. Tac, tac, tac em ampliação desmesurada, fé em estado efervescente. O gravador faz stop, acabou a gravação.


Foto daqui

“A primeira grande peregrinação à Muxima de que há registos aconteceu em 1650, quando se repôs a imagem da santa no altar-mor da igreja, vencida a invasão holandesa”, conta Mário Torres, reitor do santuário. No entanto, já antes o culto se fazia sentir naquela área, em torno de “uma antiga capela de pau-a-pique que havia numa zona que o rio entretanto tomou”. As lendas em torno do culto “são muitas”, conta o sacerdote, mas há uma que chama especial atenção: “o povo conta que esta igreja da Muxima apareceu de um dia para o outro, como por milagre.
No meu entender isso é uma forma das pessoas explicarem a forma como o culto se impôs na região que, de facto, aconteceu num espaço de 15 anos”. Mário Torres rejeita também a versão popular de a Mamã Muxima ter aparecido no local onde se ergue a capela, no alto do morro. O sacerdote assume ainda o sincretismo do culto à imagem. “A devoção à Mamã Muxima não é puramente cristã, envolve muita magia e feitiçaria. As pessoas vêem a santa como uma pessoa com muito poder, suficientemente forte para fazer o bem e mesmo o mal”, diz, explicando que o desafio passa por “atribuir um verdadeiro significado cristão ao culto, incorporando o que a tradição tem de bom”.
Este ano a romaria aconteceu mais cedo. “A acontecer no primeiro domingo de Setembro, como é normal, a peregrinação calharia dois dias depois das eleições, o que poderia colocar as pessoas entre duas opções: ou votar ou vir à Muxima. Como temos que assumir a nossa responsabilidade, resolvemos alterar a data”, explica o reitor.

[Aqui]

duo ouro negro - muxima

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