Sunday, 17 July 2011

Morro do Semba (VI)







"Born in Porto Kipiri, in the province of Bengo in 1942 during the Portuguese colonial period. Barcelo De Carvalho transferred with his family to Marcal a suburb (musseque) in Luanda, where he grows up to the sound of his father’s accordion who takes part in shows through the rhythm of rebita and of kabetula during parties (kizombadas) and at the carnivals where legendary dancers whose names were epical like Joao Cometa, Jack Rumba and Joana Perna Mbunco who were drawing the dancing steps that later one day became fashion in the whole region."
[here]

"He's now in his mid-60s, but his soulful, husky voice is as distinctive as ever on this new set, on which he's composer, arranger and producer. The songs are backed by rippling acoustic guitar, accordion and his own work on harmonica and dikanza, an African percussion instrument made from bamboo. They range from the soulful lament of the title track to the lilting West African soukous dance work-out Mana Minga. Bonga deserves a far larger following outside the Portuguese-speaking world."
[here]

"So just to be clear, this is an exceptional album by an Angolan singer-songwriter who has been recording regularly since his path-breaking debut, Angola 72, 37 years ago. Bairro may well be Bonga's best since that album, and is a big surprise to this faithful but often disappointed listener. It feels so familiar, varied and authoritative, it's hard to believe the songs are all new and were written and recorded in a short period, produced by Bonga himself, as if this might be his final statement. In any case it is certainly the pinnacle of a long and remarkable career."
[here]


[Ghinawa]




Ao longo da vida deste blog, o Bonga e a sua musica teem sido uma referencia quase permanente, mas esta e' a primeira vez que leio algo em que ele fala tao extensivamente sobre a sua vida e obra e sobre tantas outras coisas dessa nossa Angola que nao cessa de nos trazer uma lagrima ao canto do olho...

E', portanto, quase obrigatorio deixar aqui registados alguns extractos de uma sua recente grande entrevista:



"Bonga Par Lui-Meme"


SE NÃO TIVERMOS IDENTIDADE ESTAMOS FEITOS


"Essa lágrima no canto do olho tem a ver com a minha motivação das coisas, que passa pelo reconhecimento humano de toda esta multidão pela qual a gente lutou, se enlutou e trabucou. É o povo anónimo, os mussequeiros. Sabe que nasci no Quipiri e mesmo na família chamavam-me por matuense, por ter nascido no mato. Mas impus-me pela força no seio da família a essas barrigas inchadas dos miúdos, os charcos de águas putrificadas, os cubicos que caiam com as chuvas e esse povo iletrado que não sabia sequer exprimir um sentimento de reivindicação. A lágrima no canto do olho mantém-se derivada de uma situação que ainda existe em maioria, claro que tenho de saber que há melhoramentos. Mas o melhoramento prioritário não é forçosamente um banco, um hotel ou uma piscina ou apartamento luxuoso. E a lágrima no canto do olho está também de muita emoção sobretudo do não reconhecimento do valor porque não alinhei, mas espera aí.

Nas jogadas e nos partidos, naquelas opiniões de sentido único. Continuei eu e isso dá-me imensa satisfação porque cria-me muito mais estofo, sou muito mais sólido para, inclusive, ter a coragem de ir a casa de qualquer indivíduo e falar com ele. Comer a comida dele e falar com ele na boa, sem qualquer problema. Não faço jeito a ninguém. Estou assim normal, a minha opinião é a minha opinião e não é aquilo que me disseram para dizer.

[…]

Falem da pessoa mas tentem conhecer quem é no meio de tudo isto. E nós não temos tido a preocupação de conhecer os indivíduos tal como eles são. De onde vêem? Por onde passaram? Ficamos naquela da facilidade, analisar uma pessoa só pela aparência. Nós os angolanos conhecemo-nos muito mal, é triste que assim aconteça, porque perdemos muito tempo com os futebol, garinagens, supérfluos e superficial.

Nos outros tempos tínhamos essa desculpa, mas também o inimigo era comum. Só tínhamos um inimigo, mas depois passamos a ter vários inimigos, hoje em dia há vários indivíduos que só nos apontam o dedo e a gente não sabe o que ele está a dizer. Pode até ser um potencial inimigo com que a gente está a lidar e pode nos prejudicar a vida, porque não há abertura e a gente não se conhece de facto. E quando acontecem coisas lá fora é mais fácil programarem elementos que sejam puxados porque convém, do que as outras coisas que a gente já faz há tanto tempo."





Aquilo (o disco Bairro) foi um chamamento a quem já lá viveu, mas não tem a ver especificamente com o bairro Marçal. Tem a ver com todos os bairros onde que nós frequentamos, crescemos e fomos educados. Cimentamos algo que tem a ver com este país, com as tradições e todos os velhos, sobretudo que nos transmitiram coisas maravilhosas.


[Bairro]

Porque quando a gente já vai para as faculdades, universidades e escolas técnicas, sobretudo quando tomamos conhecimento da cultura dos outros, regra geral brancos, europeus e americanos, esquecemos aqueles lugares onde como garotos respeitamos aos nossos pais e avós e aprendemos a comer o funge, kitaba, ngonguenha e farinha com açúcar. Fica complicado quando a gente apaga da memória a vivência do antigamente, que fez de nós africanos específicos daquele lugar. E o bairro teve a ver com isso, foi tremendamente bom que até hoje ainda estou a digerir este bairro música do recordar destas tradições. O bairro para mim teve uma importância capital e continua a ter até hoje. Cada música tem o seu peso específico, porque mesmo estando fora há mais de 40 e tal anos, o importante é retratar coisas daqui que tenham cabimento.
[…]
Esses bairros (Marçal, Bairro Operário e Coqueiros), de facto, contribuíram para a nossa formação, de homens e mulheres que se impuseram aí, mesmo do ponto de vista das lutas e das reivindicações, esses musseques foram o ponto de partida para muitas coisas maravilhosas.


[Zukada]

Se não tivermos identidade estamos feitos. Muito embora a gente tenha passado pelas escolas técnicas, o que é certo é que conservando as coisas daqui temos uma maneira de ser nossa, que é preciso de conservar, ainda que isso venha a carga cheia do calão, gíria e para não falar das línguas nacionais. É algo que nos define e é aí que somos verdadeiros, não vale a pena a gente estar a filosofar alguns programas que a gente vê com o linguajar tuga, especificamente, com aquela entonação. Acho que isso vai passar porque a grande maioria tem uma expressão a ver com uma vivência mais em conformidade. Já foi assim e continua a ser assim. Há indivíduos que conheço de um determinado local que deste país que é Angola que não consegue dizer ‘plural’. Vi indivíduos na prova oral da 4ª classe da instrução primária a dizerem ‘prural’ e serem reprovados no tempo da colonização.

Eu sentiria muito mal e chocado ao ver um angolano daqui a ser reprovado numa prova oral da 4ª classe com os nacionais a dirigirem o país. Está a ver as diferenças?



É por isso que temos de saber falar com as avós em casa, vizinhos e os indivíduos do interior do país, ligando as pessoas umas às outras por sermos todos nacionais e patriotas, porque no outro tempo até se gozava quando se dizia que se falava o ‘pretuguês’. Isso é um chamamento muito importante para consciência de todos nós. Havia uns indivíduos que tinham um cerimonial com aquelas faquinhas na cara, que é um ritual que existe aqui na terra há muto tempo, nem o colono estava cá ainda, e falava-se mal deste povo, porque falavam mal o português, tinham o ritual e comportamentos não sei quanto. Isso tudo é atraso porque o homem assimilado ao imitar o branco tinham um comportamento de atrasado porque desconhecia a cultura do seu povo. É uma coisa muito triste que fomos constatando ao longo do tempo e hoje é preciso dizer que a nossa juventude e a nossa população que o que se vê na televisão nem sempre serve para consumo.


[Mana Kudila]

Podemos nos servir das coisas técnicas para melhor apetrecharmos o que é nosso, mas reconhecermos que cada ser humano tem o seu valor e este seu valor é que tem a ver com a personalidade desta força enorme que se chama Angola, em que pertencemos todos. E esta coisa do preconceito de se discriminar alguém que não sabe comer com a faca e o garfo faz parte do passado, mas esqueceram-se que o mais atrasado era aquele que criticava e não aquele que comia com a mão, que é a sua forma normal. Se é um chinês ou um japonês até torna-se exótico e gostam dele, temos esta coisa do complexo que nos foi incutido pela colonização, mantiveram isso por muito tempo. Ainda há quem goze com isso, que se fale disso, a mim chegaram a dizer ‘kota Bonga, então você já com essa tua postura intelectual, fala várias línguas e escreve, viaja pelo mundo, ainda canta calão e gíria?’. São estas pessoas que são atrasadas com esse tipo de observações. È preciso dizer a elas que quando, de facto, forem contactar outras pessoas para estarem a vontade, para representarmos este povo em toda a sua plenitude.


[Bandada]

E, sobretudo, temos os nossos ‘intelectuais’ que complicam as andanças, porque eles imitam os europeus e acham que todos os africanos têm que se submeter. Isto é que é triste porque são os próprios africanos que ficam a discriminar os seus compatriotas e complica porque ainda estamos perante o racismo e os preconceitos.

Tive que me bater para me impor como músico de uma música que era discriminada, era chamada a música do preto e do gentio. E é esta música que impus lá fora. O instrumento mais importante para mim é a dikanza, que alguns ainda chamam reco-reco como o português, por causa do barulho que fazia. Temos nomes próprios das coisas e dos instrumentos. O kitande, há indivíduos que chamam feijão pisado com aquela entonação de Portugal.



Isso é triste, quando temos uma camada social que prima pela imitação quer dizer que nos vão pôr novamente a mercê das tais colonizações ou neocolonizações, como quisermos. Não se dão conta do ridículo, é que temos uma maioria de pessoas que se exprime de outra forma, ou melhor, da forma que acham melhor. Mas quando é o brasileiro que fala, aí está-se bem porque foi o brasileiro. Não diz fato completo, diz terno e a gente já imita. Como os brasileiros são brancos, então tá-se bem e imita-se facilmente. Deixa-me dizer-lhe que tive muitos problemas para impor a música que hoje ganha ouros e platina nas europas, mas foi preciso um trabalho tremendo. Mas a nossa gente e os nossos músicos continuam a fazer concepções, quererem fazer uma certa mistura de salsa latina com música brasileira, porque hoje há a mundialização e temos que misturar com os outros. Acho que nesta mundialização devemos primeiro definir as coisas, dando as nossas coisas específicas, porque temos ritmos específicos porque a gente resistiu. Por esta razão hoje existe o semba, kilapanga, kabetula e kazukuta, porque os outros antes de nós impuseram tudo isso e temos que respeitar.


[Rebitanga]

A música angolana está cheia de iniciativas, criatividade, principalmente desta juventude, que não pode esquecer que nós já tivemos aqui o R&B, rock n´roll, até há quem cantou tango, valsa e merengue. Mas isso é uma grande abertura que temos na tal porta da mundialização. Esta música angolana está boa de saúde, primeiro porque conserva determinados ritmos que são originais e depois vai fazendo outras coisas para se provar ao mundo que também não estamos fechados num gueto. Podemos abrir o espaço e termos outras coisas. Imaginemos estas crianças que agora fazem aquilo que se diz o kuduro. O kuduro é uma brincadeira e esta brincadeira faz com que os miúdos aguerridos estejam aí com uma força extensiante, que nos caracteriza porque a gente está cheia de criatividade em cima. E o semba está aí muito bem de saúde e muito bem representado por esta juventude. Mesmo quando fazem o kuduro, há sempre um sembazinho aí como identidade própria.

O kuduro é um estilo de música?

O kuduro está-se a fazer um estilo de música dos repentistas. Está um fenómeno muito sério porque eles estão a tentar manifestar as coisas do dia-adia, a transportá-la para esta música, que é uma expressão viva da miudagem. Foi assim que aliás que começaram outros ritmos e não é nada muito negativo como outros dizem, porque é muito pornográfico.
Tudo começa por ser uma animação, uma expressão viva onde se integra uma série de coisas, não é verdade, que tem a ver com as manifestações normais que esta miudagem tem. Isto depois entra na tal disputa entre os bairros que já começou a ver. Agora que isto está aí a ter uma força tremenda, sim senhor. Eu já fui solicitado a dar uma força nos putos, o próprio Dog Murras já me telefonou e já tive a fazer uma coisa com ele que veio nos vídeos clipes dos miúdos e a gente está para dar força. Põem um instrumento ou outros, mas depois a gente fica sem saber se é semba ou zouk, como eles dizem, ou se é kizomba. Mas o certo é que é uma fusão de coisas que certamente vai surgir algo benéfico e muito importante.
É uma coisa daqui, nasceu aqui, tem força e expressão própria, servindo-se da imaginação criativa destes putos que são terríveis, dançam e têm uns passos incríveis e específicos. O kuduro é já uma inovação e temos que tirar o chapéu e reconhecer. Sou um dos kotas que dá força para que estas coisas apareçam, sem desprimor para as outras que têm definição para o país, já estão aí há muitíssimo mais tempo, como o semba e kilapanga.


[Kamusekele w/ Dog Murras]

Isso tudo (mais de 30 discos no mercado e trezentas canções desde que lançou Angola 72) é a motivação, porque estou motivado. Mas também tive uma escola tremenda. Sou um privilegiado porque tive a tal escola da resistência, dos velhos que faziam isso por obrigação. Era obrigação da gente transmitir coisas importantes e os velhos transmitiram para nós porque era a vivência que eles tinham.

Por outro lado, era contra as forças coloniais que impediam que a gente se manifestasse culturalmente. Lembro-me do carnaval, quando eles diziam que era dos pretos, dos pés descalços, eles não se preocupavam muito. Mas quando se fez a fusão, por iniciativa do Fontes Pereira, dos estudantes, funcionários públicos e outra gente, para um carnaval mais livre e compacto a polícia entrou em cena com cacetadas, houve mortos e feridos. Naquela altura era bom e sou desta geração que acumulou uma data de coisa que depois serviram e têm estado a servir para as minhas composições artísticas. Agora lembrar-me de tudo isso é a minha vivência a mais importante.


[Xica Kambuta]

A gente que deve estar a pensar mas o gajo tão depressa pode estar em Londres, Berlim ou Paris, mas tenham paciência, porque não é demagogia, o que os musseques nos transmitiram naquelas alturas dos primeiros 23 anos de vida foi muito mais importantes em matéria de enriquecimento do que os anos depois, porque agora é só desfrutar. Tão depressa estou num carro luxuoso como estou num avião a fazer uma ida para representar o meu país, tenho consciência disso.
Há melhoramento materiais, mas tenho que recordar das coisas do antigamente para produzir as músicas da actualidade porque não canto as rosas, a lua, o sol, o mar e as gajas, no sentido de mulher, bunda, sexual e quê, quê…Não canto nada disso. Canto principalmente o sentimento de um povo que tem força para lutar contra o racismo que ainda, porque discrimina e nós continuamos a nos impor como estamos a fazer actualmente.



O (novo) disco vai-se chamar ‘Hora Kota’, porque não sou dos kotas frustrados. Sou dos que continua a dar coisas no seguimento de uma certa ética e de maneira de ser com exemplos. Então ‘Hora Kota’ é aquela hora do reconhecimento dos valores, tradições, personalidades, aconchego familiar, exemplo, da mão amiga. Daquelas coisas que a gente viveu no outro tempo. Por isso considero-me um privilegiado por ter recebido esta educação e a força anímica, magnética dos kotas do antigamente. Depois tenho outra música que fala desta juventude de hoje que parece que para terem virilidade têm que beber 50 garrafas de cerveja. O álcool não dá virilidade a ninguém, nem dá pulungunza como se diz.
[…]
É tudo uma ilusão, por isso há os acidentes que se vêem nas estradas. É preciso um chamamento a esta juventude para que tenha calma. Eu como já vivi mais anos do que eles, se reforço a ideia de que o álcool não é nada daquilo que eles pensam, então é uma opinião e um contributo. Tenho uma música também que fiz para o Fontes Pereira, que para mim é um dos grandes maestros, compositores e realizador da coisa nossa. É o homem que criou a escola do semba, o grupo Ngongo e o teatral. É o homem que esteve na origem do tal carnaval que a Polícia colonial reprimiu, porque era complicado ter um povo reencontrado e a manifestar.


[Maiorais]

Depois são todas essas coisas que a gente põe na música, porque se me perguntarem o que penso sobre os letristas de hoje é muito vago. Não têm conteúdo, porque sistematicamente estão a falar do assunto do cubico, da mulher que se zangou com o marido que tem Luanda 1, 2 e 3, é sempre aquele assunto porque não trouxe dinheiro em casa.
Isto está gasto. Mas o brasileiro é um dos povos que mais fala do amor, tudo é amor, mas depois a gente que depois há declínio. Onde é que se vai com este amor todo, quando afinal nem há. Há determinados indivíduos que falam de amor, mas afinal são os primeiros a espancar a mulher. É motivo para a gente perguntar, afinal o que se passa? Mas isso tem a ver com o conteúdo político. Há um outro tempo que houve as baladas revolucionárias no sentido único, ninguém tocava no Governo, ninguém criticava. Era só falar no sentido da revolução, o 1º de Maio, o meu partido. Isso depois passou e empobreceu-se um bocadinho a tónica musical pelas palavras, que era todo chavões e palavras de ordem. De repente, estou à procura do artista ou músico mais emancipado, que pode falar de tudo sem preconceitos e medos. Não há coisa melhor do que sermos livres efectivamente. Cantar uma crítica dentro de uma música é muito bem-vindo, continuo a fazer isso. Aliás, há uns miúdos aqui muito ousados que falam um bocadinho de tudo. Não vou aqui citar nomes de nenhum deles ou de nenhuma delas, mas o que é certo é que já há miúdos a fazer umas músicazinhas onde a gente já escuta que há uma história tão bonita.


[Kutando]

Tipo essa história do cambúa, que é essa nossa dança que ponho umas certas interrogações, porque é mais uma dança de excitação sexual. A mulher está a dançar parece está a fazer o afro-gim num ginásio. Se a gente não toma cuidado ainda leva um soco, porque está a dançar tipo que está a lutar. Sou do tempo em que há aquela subtileza da mulher, o tal semba dançado, mas não a forma do Zaíre. Não podemos estar aqui a dançar tipo ‘Congo, Congo Na ngai’.[*] Já tivemos coreógrafos do nosso semba e do carnaval, só que não estão assim muito visíveis porque se perdeu um bocadinho e ficasse naquelas danças de imitação, daquelas danças estridentes onde a mulher parece que está no boxe. Vai ser preciso combater isso um bocadinho, mas isso é pertinência jovem. O que é certo é que há sempre uma coisa para se dizer dentro de uma música.


[Sao Salvador]

[...]

A matriz (da musica angolana) se tomarmos em conta que esta música, tónica e rítmica cultural saiu daqui e alimentou outros povos a nível do mundo, nomeadamente Cuba, Salvador da Baía, Estados Unidos da América, República Dominicana, Santo Domingos e outros, então nós somos a originalidade. Então temos que primar pela originalidade e tem muito que se lhe diga. Derivado desta assimilação e da presença nociva colonial, que nos tentou separar um bocadinho da nossa raiz e história, ficou complicado, estávamos a perder um bocadinho desta matriz. Agora temos toda a possibilidade de nos reencontrarmos porque está tudo aí, os músicos, os livros que foram publicados e alguns velhos. Por conseguinte, é muito bom a gente voltar um bocadinho para nos informarmos convenientemente para nos reencontrarmos imbuídos de saberes que nos definem.

E essa matriz é exactamente a tónica de cada um dentro do seu específico sem sair de África. Sabemos que a Europa está metida aqui dentro, quer queiramos ou não, para nos induzir a fazer outras coisas que têm mais a ver com a Europa do que propriamente com África. A simples forma de comer, andar, dançar, admitimos coisas que não são muito nossas, mas já se enquadram porque é a mundialização. Mas eu digo espera aí, nós que estamos lá fora e que ainda não cedemos, porque senão vamos começar a cantar em francês.



Somos nós que temos força e estamos a impor coisas. Muito recentemente no Olímpia de Paris, que é a sala do music hall internacional, estive com um cantor que é o terceiro mais bem pago depois de Johnny Hallyday, que é o Bernard Lavillier. O Bonga foi o seu convidado de honra. Ele cantou as músicas do Bonga. É o Martinho da Vila, Alcione, Manu Dibango que cantam a música do Bonga e outros mais.


[Diarabi w/ Manu Dibango - feat. Toure' Kunda]

Isto é muito bom, sinto finalmente que o meu trabalho está muitíssimo bom e que as pessoas estrangeiras, inclusive, ficam impressionadas e vêm cantar a música do Bonga que é de Angola, isso dá-me imensa satisfação. Mas não acredito que os angolanos estejam conscientes do valor que isso aí tem. Nós não centralizamos ou não convém, por enquanto, falar-se desta carta de visita.

Considera Elias Dia Kimuezu o rei da música angolana?

Não sei quem deu esse título, porque muitas das vezes o Elias disse-me a mim mesmo que ele é um rei sem coroa. Isso é derivado dos seus problemas, das suas carências. Outro dia ele teve problema com uma casa, que lhe foi entregue, e de repente sem kumbú para pagar. Aquelas lutas que se tem para adquirir coisas. Então, um rei não tem estes problemas.

Mas considera-o como o rei da música angolana ou não?

Eu considero o Elias um grande interprete da música de Angola. Se entrarmos na tónica do kimbundu, então porquê não? Da mesma forma que me consideram o embaixador porque estou lá fora a representar a nossa terra, mesmo sem ter o passaporte diplomático. Mesmo sem ser considerado por algumas esferas oportunistas do sistema político. Mas isso não tem nada a ver uma coisa com outra.


[Venda Poro]

Acho que já nasci nacionalista e rebelde ainda por cima. E táctico também porque não aceitei qualquer coisa, sobretudo a submissão. Bazei e hoje não estou nada arrependido, muitos que me condenaram ontem hoje telefonam para saber essa tónica.
São várias (as pessoas que o condenaram), alguns nacionais e estrangeiros, mas regra geral relacionado com indivíduos do oportunismo.

Não foi nada mais do que isso, foi o oportunismo que jogou e a história está aí a dizer tudo. Muitas destas pessoas já desapareceram, não estão na cena política e uns estão a me olhar de esguelha: ‘o gajo está aí, se não lhe tivesse feito tanto mal’. Imagine se eu vivesse no país das confrontações, não é verdade. É uma reflexão normal e não estou nada arrependido de fazer o que fiz.

Essa lágrima no canto do olho tem a ver com a minha motivação das coisas, que passa pelo reconhecimento humano de toda esta multidão pela qual a gente lutou, se enlutou e trabucou. É o povo anónimo, os mussequeiros. Sabe que nasci no Quipiri e mesmo na família chamavam-me por matuense, por ter nascido no mato. Mas impusme pela força no seio da família a essas barrigas inchadas dos miúdos, os charcos de águas putrificadas, os cubicos que caiam com as chuvas e esse povo iletrado que não sabia sequer exprimir um sentimento de reivindicação. A lágrima no canto do olho mantém-se derivada de uma situação que ainda existe em maioria, claro que tenho de saber que há melhoramentos. Mas o melhoramento prioritário não é forçosamente um banco, um hotel ou uma piscina ou apartamento luxuoso. E a lágrima no canto do olho está também de muita emoção sobretudo do não reconhecimento do valor porque não alinhei, mas espera aí.


[Kipiri]

Nas jogadas e nos partidos, naquelas opiniões de sentido único. Continuei eu e isso dá-me imensa satisfação porque cria-me muito mais estofo, sou muito mais sólido para, inclusive, ter a coragem de ir a casa de qualquer indivíduo e falar com ele. Comer a comida dele e falar com ele na boa, sem qualquer problema. Não faço jeito a ninguém. Estou assim normal, a minha opinião é a minha opinião e não é aquilo que me disseram para dizer. Portanto, já há uns putos que me reconhecessem e se têm que me reconhecer não é por causa da minha banga fukula, kota cheio de estilo, que antigamente dizia manda bué de garina, mas não é por aí. Isso é pejorativo. Falem da pessoa mas tentem conhecer quem é no meio de tudo isto. E nós não temos tido a preocupação de conhecer os indivíduos tal como eles são. De onde vêem? Por onde passaram? Ficamos naquela da facilidade, analisar uma pessoa só pela aparência. Nós os angolanos conhecemonos muito mal, é triste que assim aconteça, porque perdemos muito tempo com os futebol, garinagens, supérfluos e superficial.


[Makongo]

Nos outros tempos tínhamos essa culpa, mas também o inimigo era comum? Só tínhamos um inimigo, mas depois passamos a ter vários inimigos, hoje em dia há vários indivíduos que só nos apontam o dedo e gente não sabe o que ele está a dizer. Pode até ser um potencial inimigo com que a gente está a lidar e pode nos prejudicar a vida, porque não há abertura e a gente não se conhece de facto. E quando acontecem coisas lá fora é mais fácil programarem elementos que seja puxado, porque convém do que as outras coisa que a gente já faz a tanto tempo.



O Angola 72 foi a carta de visita que até hoje ainda anda aí a ser procurado porque querem ter na prateleira em casa ou porque o disco desapareceu. Este foi o disco, porque se tenho um disco de ouro, platina ou de diamante é esse Angola 72 que contribuiu tremendamente. Era tudo quanto eu tinha cá dentro que saiu e explodiu. Isso é a minha verdade, minha vivência, é a África e Angola, portanto vamos por aí. E sobretudo mobilizar a juventude, mas não para ser carne de canhão. Para desenvolver-se, reivindicar, estar no seu país e desfrutar de tudo isso. Este foi o ponto de partida e no ano seguinte pediram-me outro disco. Mesmo com as pessoas que no tal ano consideram o tal Bonga como ‘persona non grata’, não pode entrar. Depois veio outro, outro e mais outros. Veja onde já chegou, quase 40 discos.


[Mu Nhango]


[Entrevista na integra aqui]


[*] Estranha 'boca' essa, especialmente quando provinda de um artista que incorpora em alguma da sua musica sons e ritmos do Zaire/Kongo como o soukouss... e no contexto de uma musica angolana cujas influencias daquele pais sao por demais evidentes como aki e aki no Kongo Na'ngai se pode constatar... e, afinale, kada musika kom a sua danca, n'est-ce pas? E... Kongo Na'ngai, Motema Na'ngai, Mobali Na'ngai... sao frases tao bonitas de se ouvir e de se dancar! N'est-ce pas?...
Mas... como ao kota por vezes sao permitidas algumas 'bocas' passaveis... passemos!







"Born in Porto Kipiri, in the province of Bengo in 1942 during the Portuguese colonial period. Barcelo De Carvalho transferred with his family to Marcal a suburb (musseque) in Luanda, where he grows up to the sound of his father’s accordion who takes part in shows through the rhythm of rebita and of kabetula during parties (kizombadas) and at the carnivals where legendary dancers whose names were epical like Joao Cometa, Jack Rumba and Joana Perna Mbunco who were drawing the dancing steps that later one day became fashion in the whole region."
[here]

"He's now in his mid-60s, but his soulful, husky voice is as distinctive as ever on this new set, on which he's composer, arranger and producer. The songs are backed by rippling acoustic guitar, accordion and his own work on harmonica and dikanza, an African percussion instrument made from bamboo. They range from the soulful lament of the title track to the lilting West African soukous dance work-out Mana Minga. Bonga deserves a far larger following outside the Portuguese-speaking world."
[here]

"So just to be clear, this is an exceptional album by an Angolan singer-songwriter who has been recording regularly since his path-breaking debut, Angola 72, 37 years ago. Bairro may well be Bonga's best since that album, and is a big surprise to this faithful but often disappointed listener. It feels so familiar, varied and authoritative, it's hard to believe the songs are all new and were written and recorded in a short period, produced by Bonga himself, as if this might be his final statement. In any case it is certainly the pinnacle of a long and remarkable career."
[here]


[Ghinawa]




Ao longo da vida deste blog, o Bonga e a sua musica teem sido uma referencia quase permanente, mas esta e' a primeira vez que leio algo em que ele fala tao extensivamente sobre a sua vida e obra e sobre tantas outras coisas dessa nossa Angola que nao cessa de nos trazer uma lagrima ao canto do olho...

E', portanto, quase obrigatorio deixar aqui registados alguns extractos de uma sua recente grande entrevista:



"Bonga Par Lui-Meme"


SE NÃO TIVERMOS IDENTIDADE ESTAMOS FEITOS


"Essa lágrima no canto do olho tem a ver com a minha motivação das coisas, que passa pelo reconhecimento humano de toda esta multidão pela qual a gente lutou, se enlutou e trabucou. É o povo anónimo, os mussequeiros. Sabe que nasci no Quipiri e mesmo na família chamavam-me por matuense, por ter nascido no mato. Mas impus-me pela força no seio da família a essas barrigas inchadas dos miúdos, os charcos de águas putrificadas, os cubicos que caiam com as chuvas e esse povo iletrado que não sabia sequer exprimir um sentimento de reivindicação. A lágrima no canto do olho mantém-se derivada de uma situação que ainda existe em maioria, claro que tenho de saber que há melhoramentos. Mas o melhoramento prioritário não é forçosamente um banco, um hotel ou uma piscina ou apartamento luxuoso. E a lágrima no canto do olho está também de muita emoção sobretudo do não reconhecimento do valor porque não alinhei, mas espera aí.

Nas jogadas e nos partidos, naquelas opiniões de sentido único. Continuei eu e isso dá-me imensa satisfação porque cria-me muito mais estofo, sou muito mais sólido para, inclusive, ter a coragem de ir a casa de qualquer indivíduo e falar com ele. Comer a comida dele e falar com ele na boa, sem qualquer problema. Não faço jeito a ninguém. Estou assim normal, a minha opinião é a minha opinião e não é aquilo que me disseram para dizer.

[…]

Falem da pessoa mas tentem conhecer quem é no meio de tudo isto. E nós não temos tido a preocupação de conhecer os indivíduos tal como eles são. De onde vêem? Por onde passaram? Ficamos naquela da facilidade, analisar uma pessoa só pela aparência. Nós os angolanos conhecemo-nos muito mal, é triste que assim aconteça, porque perdemos muito tempo com os futebol, garinagens, supérfluos e superficial.

Nos outros tempos tínhamos essa desculpa, mas também o inimigo era comum. Só tínhamos um inimigo, mas depois passamos a ter vários inimigos, hoje em dia há vários indivíduos que só nos apontam o dedo e a gente não sabe o que ele está a dizer. Pode até ser um potencial inimigo com que a gente está a lidar e pode nos prejudicar a vida, porque não há abertura e a gente não se conhece de facto. E quando acontecem coisas lá fora é mais fácil programarem elementos que sejam puxados porque convém, do que as outras coisas que a gente já faz há tanto tempo."





Aquilo (o disco Bairro) foi um chamamento a quem já lá viveu, mas não tem a ver especificamente com o bairro Marçal. Tem a ver com todos os bairros onde que nós frequentamos, crescemos e fomos educados. Cimentamos algo que tem a ver com este país, com as tradições e todos os velhos, sobretudo que nos transmitiram coisas maravilhosas.


[Bairro]

Porque quando a gente já vai para as faculdades, universidades e escolas técnicas, sobretudo quando tomamos conhecimento da cultura dos outros, regra geral brancos, europeus e americanos, esquecemos aqueles lugares onde como garotos respeitamos aos nossos pais e avós e aprendemos a comer o funge, kitaba, ngonguenha e farinha com açúcar. Fica complicado quando a gente apaga da memória a vivência do antigamente, que fez de nós africanos específicos daquele lugar. E o bairro teve a ver com isso, foi tremendamente bom que até hoje ainda estou a digerir este bairro música do recordar destas tradições. O bairro para mim teve uma importância capital e continua a ter até hoje. Cada música tem o seu peso específico, porque mesmo estando fora há mais de 40 e tal anos, o importante é retratar coisas daqui que tenham cabimento.
[…]
Esses bairros (Marçal, Bairro Operário e Coqueiros), de facto, contribuíram para a nossa formação, de homens e mulheres que se impuseram aí, mesmo do ponto de vista das lutas e das reivindicações, esses musseques foram o ponto de partida para muitas coisas maravilhosas.


[Zukada]

Se não tivermos identidade estamos feitos. Muito embora a gente tenha passado pelas escolas técnicas, o que é certo é que conservando as coisas daqui temos uma maneira de ser nossa, que é preciso de conservar, ainda que isso venha a carga cheia do calão, gíria e para não falar das línguas nacionais. É algo que nos define e é aí que somos verdadeiros, não vale a pena a gente estar a filosofar alguns programas que a gente vê com o linguajar tuga, especificamente, com aquela entonação. Acho que isso vai passar porque a grande maioria tem uma expressão a ver com uma vivência mais em conformidade. Já foi assim e continua a ser assim. Há indivíduos que conheço de um determinado local que deste país que é Angola que não consegue dizer ‘plural’. Vi indivíduos na prova oral da 4ª classe da instrução primária a dizerem ‘prural’ e serem reprovados no tempo da colonização.

Eu sentiria muito mal e chocado ao ver um angolano daqui a ser reprovado numa prova oral da 4ª classe com os nacionais a dirigirem o país. Está a ver as diferenças?



É por isso que temos de saber falar com as avós em casa, vizinhos e os indivíduos do interior do país, ligando as pessoas umas às outras por sermos todos nacionais e patriotas, porque no outro tempo até se gozava quando se dizia que se falava o ‘pretuguês’. Isso é um chamamento muito importante para consciência de todos nós. Havia uns indivíduos que tinham um cerimonial com aquelas faquinhas na cara, que é um ritual que existe aqui na terra há muto tempo, nem o colono estava cá ainda, e falava-se mal deste povo, porque falavam mal o português, tinham o ritual e comportamentos não sei quanto. Isso tudo é atraso porque o homem assimilado ao imitar o branco tinham um comportamento de atrasado porque desconhecia a cultura do seu povo. É uma coisa muito triste que fomos constatando ao longo do tempo e hoje é preciso dizer que a nossa juventude e a nossa população que o que se vê na televisão nem sempre serve para consumo.


[Mana Kudila]

Podemos nos servir das coisas técnicas para melhor apetrecharmos o que é nosso, mas reconhecermos que cada ser humano tem o seu valor e este seu valor é que tem a ver com a personalidade desta força enorme que se chama Angola, em que pertencemos todos. E esta coisa do preconceito de se discriminar alguém que não sabe comer com a faca e o garfo faz parte do passado, mas esqueceram-se que o mais atrasado era aquele que criticava e não aquele que comia com a mão, que é a sua forma normal. Se é um chinês ou um japonês até torna-se exótico e gostam dele, temos esta coisa do complexo que nos foi incutido pela colonização, mantiveram isso por muito tempo. Ainda há quem goze com isso, que se fale disso, a mim chegaram a dizer ‘kota Bonga, então você já com essa tua postura intelectual, fala várias línguas e escreve, viaja pelo mundo, ainda canta calão e gíria?’. São estas pessoas que são atrasadas com esse tipo de observações. È preciso dizer a elas que quando, de facto, forem contactar outras pessoas para estarem a vontade, para representarmos este povo em toda a sua plenitude.


[Bandada]

E, sobretudo, temos os nossos ‘intelectuais’ que complicam as andanças, porque eles imitam os europeus e acham que todos os africanos têm que se submeter. Isto é que é triste porque são os próprios africanos que ficam a discriminar os seus compatriotas e complica porque ainda estamos perante o racismo e os preconceitos.

Tive que me bater para me impor como músico de uma música que era discriminada, era chamada a música do preto e do gentio. E é esta música que impus lá fora. O instrumento mais importante para mim é a dikanza, que alguns ainda chamam reco-reco como o português, por causa do barulho que fazia. Temos nomes próprios das coisas e dos instrumentos. O kitande, há indivíduos que chamam feijão pisado com aquela entonação de Portugal.



Isso é triste, quando temos uma camada social que prima pela imitação quer dizer que nos vão pôr novamente a mercê das tais colonizações ou neocolonizações, como quisermos. Não se dão conta do ridículo, é que temos uma maioria de pessoas que se exprime de outra forma, ou melhor, da forma que acham melhor. Mas quando é o brasileiro que fala, aí está-se bem porque foi o brasileiro. Não diz fato completo, diz terno e a gente já imita. Como os brasileiros são brancos, então tá-se bem e imita-se facilmente. Deixa-me dizer-lhe que tive muitos problemas para impor a música que hoje ganha ouros e platina nas europas, mas foi preciso um trabalho tremendo. Mas a nossa gente e os nossos músicos continuam a fazer concepções, quererem fazer uma certa mistura de salsa latina com música brasileira, porque hoje há a mundialização e temos que misturar com os outros. Acho que nesta mundialização devemos primeiro definir as coisas, dando as nossas coisas específicas, porque temos ritmos específicos porque a gente resistiu. Por esta razão hoje existe o semba, kilapanga, kabetula e kazukuta, porque os outros antes de nós impuseram tudo isso e temos que respeitar.


[Rebitanga]

A música angolana está cheia de iniciativas, criatividade, principalmente desta juventude, que não pode esquecer que nós já tivemos aqui o R&B, rock n´roll, até há quem cantou tango, valsa e merengue. Mas isso é uma grande abertura que temos na tal porta da mundialização. Esta música angolana está boa de saúde, primeiro porque conserva determinados ritmos que são originais e depois vai fazendo outras coisas para se provar ao mundo que também não estamos fechados num gueto. Podemos abrir o espaço e termos outras coisas. Imaginemos estas crianças que agora fazem aquilo que se diz o kuduro. O kuduro é uma brincadeira e esta brincadeira faz com que os miúdos aguerridos estejam aí com uma força extensiante, que nos caracteriza porque a gente está cheia de criatividade em cima. E o semba está aí muito bem de saúde e muito bem representado por esta juventude. Mesmo quando fazem o kuduro, há sempre um sembazinho aí como identidade própria.

O kuduro é um estilo de música?

O kuduro está-se a fazer um estilo de música dos repentistas. Está um fenómeno muito sério porque eles estão a tentar manifestar as coisas do dia-adia, a transportá-la para esta música, que é uma expressão viva da miudagem. Foi assim que aliás que começaram outros ritmos e não é nada muito negativo como outros dizem, porque é muito pornográfico.
Tudo começa por ser uma animação, uma expressão viva onde se integra uma série de coisas, não é verdade, que tem a ver com as manifestações normais que esta miudagem tem. Isto depois entra na tal disputa entre os bairros que já começou a ver. Agora que isto está aí a ter uma força tremenda, sim senhor. Eu já fui solicitado a dar uma força nos putos, o próprio Dog Murras já me telefonou e já tive a fazer uma coisa com ele que veio nos vídeos clipes dos miúdos e a gente está para dar força. Põem um instrumento ou outros, mas depois a gente fica sem saber se é semba ou zouk, como eles dizem, ou se é kizomba. Mas o certo é que é uma fusão de coisas que certamente vai surgir algo benéfico e muito importante.
É uma coisa daqui, nasceu aqui, tem força e expressão própria, servindo-se da imaginação criativa destes putos que são terríveis, dançam e têm uns passos incríveis e específicos. O kuduro é já uma inovação e temos que tirar o chapéu e reconhecer. Sou um dos kotas que dá força para que estas coisas apareçam, sem desprimor para as outras que têm definição para o país, já estão aí há muitíssimo mais tempo, como o semba e kilapanga.


[Kamusekele w/ Dog Murras]

Isso tudo (mais de 30 discos no mercado e trezentas canções desde que lançou Angola 72) é a motivação, porque estou motivado. Mas também tive uma escola tremenda. Sou um privilegiado porque tive a tal escola da resistência, dos velhos que faziam isso por obrigação. Era obrigação da gente transmitir coisas importantes e os velhos transmitiram para nós porque era a vivência que eles tinham.

Por outro lado, era contra as forças coloniais que impediam que a gente se manifestasse culturalmente. Lembro-me do carnaval, quando eles diziam que era dos pretos, dos pés descalços, eles não se preocupavam muito. Mas quando se fez a fusão, por iniciativa do Fontes Pereira, dos estudantes, funcionários públicos e outra gente, para um carnaval mais livre e compacto a polícia entrou em cena com cacetadas, houve mortos e feridos. Naquela altura era bom e sou desta geração que acumulou uma data de coisa que depois serviram e têm estado a servir para as minhas composições artísticas. Agora lembrar-me de tudo isso é a minha vivência a mais importante.


[Xica Kambuta]

A gente que deve estar a pensar mas o gajo tão depressa pode estar em Londres, Berlim ou Paris, mas tenham paciência, porque não é demagogia, o que os musseques nos transmitiram naquelas alturas dos primeiros 23 anos de vida foi muito mais importantes em matéria de enriquecimento do que os anos depois, porque agora é só desfrutar. Tão depressa estou num carro luxuoso como estou num avião a fazer uma ida para representar o meu país, tenho consciência disso.
Há melhoramento materiais, mas tenho que recordar das coisas do antigamente para produzir as músicas da actualidade porque não canto as rosas, a lua, o sol, o mar e as gajas, no sentido de mulher, bunda, sexual e quê, quê…Não canto nada disso. Canto principalmente o sentimento de um povo que tem força para lutar contra o racismo que ainda, porque discrimina e nós continuamos a nos impor como estamos a fazer actualmente.



O (novo) disco vai-se chamar ‘Hora Kota’, porque não sou dos kotas frustrados. Sou dos que continua a dar coisas no seguimento de uma certa ética e de maneira de ser com exemplos. Então ‘Hora Kota’ é aquela hora do reconhecimento dos valores, tradições, personalidades, aconchego familiar, exemplo, da mão amiga. Daquelas coisas que a gente viveu no outro tempo. Por isso considero-me um privilegiado por ter recebido esta educação e a força anímica, magnética dos kotas do antigamente. Depois tenho outra música que fala desta juventude de hoje que parece que para terem virilidade têm que beber 50 garrafas de cerveja. O álcool não dá virilidade a ninguém, nem dá pulungunza como se diz.
[…]
É tudo uma ilusão, por isso há os acidentes que se vêem nas estradas. É preciso um chamamento a esta juventude para que tenha calma. Eu como já vivi mais anos do que eles, se reforço a ideia de que o álcool não é nada daquilo que eles pensam, então é uma opinião e um contributo. Tenho uma música também que fiz para o Fontes Pereira, que para mim é um dos grandes maestros, compositores e realizador da coisa nossa. É o homem que criou a escola do semba, o grupo Ngongo e o teatral. É o homem que esteve na origem do tal carnaval que a Polícia colonial reprimiu, porque era complicado ter um povo reencontrado e a manifestar.


[Maiorais]

Depois são todas essas coisas que a gente põe na música, porque se me perguntarem o que penso sobre os letristas de hoje é muito vago. Não têm conteúdo, porque sistematicamente estão a falar do assunto do cubico, da mulher que se zangou com o marido que tem Luanda 1, 2 e 3, é sempre aquele assunto porque não trouxe dinheiro em casa.
Isto está gasto. Mas o brasileiro é um dos povos que mais fala do amor, tudo é amor, mas depois a gente que depois há declínio. Onde é que se vai com este amor todo, quando afinal nem há. Há determinados indivíduos que falam de amor, mas afinal são os primeiros a espancar a mulher. É motivo para a gente perguntar, afinal o que se passa? Mas isso tem a ver com o conteúdo político. Há um outro tempo que houve as baladas revolucionárias no sentido único, ninguém tocava no Governo, ninguém criticava. Era só falar no sentido da revolução, o 1º de Maio, o meu partido. Isso depois passou e empobreceu-se um bocadinho a tónica musical pelas palavras, que era todo chavões e palavras de ordem. De repente, estou à procura do artista ou músico mais emancipado, que pode falar de tudo sem preconceitos e medos. Não há coisa melhor do que sermos livres efectivamente. Cantar uma crítica dentro de uma música é muito bem-vindo, continuo a fazer isso. Aliás, há uns miúdos aqui muito ousados que falam um bocadinho de tudo. Não vou aqui citar nomes de nenhum deles ou de nenhuma delas, mas o que é certo é que já há miúdos a fazer umas músicazinhas onde a gente já escuta que há uma história tão bonita.


[Kutando]

Tipo essa história do cambúa, que é essa nossa dança que ponho umas certas interrogações, porque é mais uma dança de excitação sexual. A mulher está a dançar parece está a fazer o afro-gim num ginásio. Se a gente não toma cuidado ainda leva um soco, porque está a dançar tipo que está a lutar. Sou do tempo em que há aquela subtileza da mulher, o tal semba dançado, mas não a forma do Zaíre. Não podemos estar aqui a dançar tipo ‘Congo, Congo Na ngai’.[*] Já tivemos coreógrafos do nosso semba e do carnaval, só que não estão assim muito visíveis porque se perdeu um bocadinho e ficasse naquelas danças de imitação, daquelas danças estridentes onde a mulher parece que está no boxe. Vai ser preciso combater isso um bocadinho, mas isso é pertinência jovem. O que é certo é que há sempre uma coisa para se dizer dentro de uma música.


[Sao Salvador]

[...]

A matriz (da musica angolana) se tomarmos em conta que esta música, tónica e rítmica cultural saiu daqui e alimentou outros povos a nível do mundo, nomeadamente Cuba, Salvador da Baía, Estados Unidos da América, República Dominicana, Santo Domingos e outros, então nós somos a originalidade. Então temos que primar pela originalidade e tem muito que se lhe diga. Derivado desta assimilação e da presença nociva colonial, que nos tentou separar um bocadinho da nossa raiz e história, ficou complicado, estávamos a perder um bocadinho desta matriz. Agora temos toda a possibilidade de nos reencontrarmos porque está tudo aí, os músicos, os livros que foram publicados e alguns velhos. Por conseguinte, é muito bom a gente voltar um bocadinho para nos informarmos convenientemente para nos reencontrarmos imbuídos de saberes que nos definem.

E essa matriz é exactamente a tónica de cada um dentro do seu específico sem sair de África. Sabemos que a Europa está metida aqui dentro, quer queiramos ou não, para nos induzir a fazer outras coisas que têm mais a ver com a Europa do que propriamente com África. A simples forma de comer, andar, dançar, admitimos coisas que não são muito nossas, mas já se enquadram porque é a mundialização. Mas eu digo espera aí, nós que estamos lá fora e que ainda não cedemos, porque senão vamos começar a cantar em francês.



Somos nós que temos força e estamos a impor coisas. Muito recentemente no Olímpia de Paris, que é a sala do music hall internacional, estive com um cantor que é o terceiro mais bem pago depois de Johnny Hallyday, que é o Bernard Lavillier. O Bonga foi o seu convidado de honra. Ele cantou as músicas do Bonga. É o Martinho da Vila, Alcione, Manu Dibango que cantam a música do Bonga e outros mais.


[Diarabi w/ Manu Dibango - feat. Toure' Kunda]

Isto é muito bom, sinto finalmente que o meu trabalho está muitíssimo bom e que as pessoas estrangeiras, inclusive, ficam impressionadas e vêm cantar a música do Bonga que é de Angola, isso dá-me imensa satisfação. Mas não acredito que os angolanos estejam conscientes do valor que isso aí tem. Nós não centralizamos ou não convém, por enquanto, falar-se desta carta de visita.

Considera Elias Dia Kimuezu o rei da música angolana?

Não sei quem deu esse título, porque muitas das vezes o Elias disse-me a mim mesmo que ele é um rei sem coroa. Isso é derivado dos seus problemas, das suas carências. Outro dia ele teve problema com uma casa, que lhe foi entregue, e de repente sem kumbú para pagar. Aquelas lutas que se tem para adquirir coisas. Então, um rei não tem estes problemas.

Mas considera-o como o rei da música angolana ou não?

Eu considero o Elias um grande interprete da música de Angola. Se entrarmos na tónica do kimbundu, então porquê não? Da mesma forma que me consideram o embaixador porque estou lá fora a representar a nossa terra, mesmo sem ter o passaporte diplomático. Mesmo sem ser considerado por algumas esferas oportunistas do sistema político. Mas isso não tem nada a ver uma coisa com outra.


[Venda Poro]

Acho que já nasci nacionalista e rebelde ainda por cima. E táctico também porque não aceitei qualquer coisa, sobretudo a submissão. Bazei e hoje não estou nada arrependido, muitos que me condenaram ontem hoje telefonam para saber essa tónica.
São várias (as pessoas que o condenaram), alguns nacionais e estrangeiros, mas regra geral relacionado com indivíduos do oportunismo.

Não foi nada mais do que isso, foi o oportunismo que jogou e a história está aí a dizer tudo. Muitas destas pessoas já desapareceram, não estão na cena política e uns estão a me olhar de esguelha: ‘o gajo está aí, se não lhe tivesse feito tanto mal’. Imagine se eu vivesse no país das confrontações, não é verdade. É uma reflexão normal e não estou nada arrependido de fazer o que fiz.

Essa lágrima no canto do olho tem a ver com a minha motivação das coisas, que passa pelo reconhecimento humano de toda esta multidão pela qual a gente lutou, se enlutou e trabucou. É o povo anónimo, os mussequeiros. Sabe que nasci no Quipiri e mesmo na família chamavam-me por matuense, por ter nascido no mato. Mas impusme pela força no seio da família a essas barrigas inchadas dos miúdos, os charcos de águas putrificadas, os cubicos que caiam com as chuvas e esse povo iletrado que não sabia sequer exprimir um sentimento de reivindicação. A lágrima no canto do olho mantém-se derivada de uma situação que ainda existe em maioria, claro que tenho de saber que há melhoramentos. Mas o melhoramento prioritário não é forçosamente um banco, um hotel ou uma piscina ou apartamento luxuoso. E a lágrima no canto do olho está também de muita emoção sobretudo do não reconhecimento do valor porque não alinhei, mas espera aí.


[Kipiri]

Nas jogadas e nos partidos, naquelas opiniões de sentido único. Continuei eu e isso dá-me imensa satisfação porque cria-me muito mais estofo, sou muito mais sólido para, inclusive, ter a coragem de ir a casa de qualquer indivíduo e falar com ele. Comer a comida dele e falar com ele na boa, sem qualquer problema. Não faço jeito a ninguém. Estou assim normal, a minha opinião é a minha opinião e não é aquilo que me disseram para dizer. Portanto, já há uns putos que me reconhecessem e se têm que me reconhecer não é por causa da minha banga fukula, kota cheio de estilo, que antigamente dizia manda bué de garina, mas não é por aí. Isso é pejorativo. Falem da pessoa mas tentem conhecer quem é no meio de tudo isto. E nós não temos tido a preocupação de conhecer os indivíduos tal como eles são. De onde vêem? Por onde passaram? Ficamos naquela da facilidade, analisar uma pessoa só pela aparência. Nós os angolanos conhecemonos muito mal, é triste que assim aconteça, porque perdemos muito tempo com os futebol, garinagens, supérfluos e superficial.


[Makongo]

Nos outros tempos tínhamos essa culpa, mas também o inimigo era comum? Só tínhamos um inimigo, mas depois passamos a ter vários inimigos, hoje em dia há vários indivíduos que só nos apontam o dedo e gente não sabe o que ele está a dizer. Pode até ser um potencial inimigo com que a gente está a lidar e pode nos prejudicar a vida, porque não há abertura e a gente não se conhece de facto. E quando acontecem coisas lá fora é mais fácil programarem elementos que seja puxado, porque convém do que as outras coisa que a gente já faz a tanto tempo.



O Angola 72 foi a carta de visita que até hoje ainda anda aí a ser procurado porque querem ter na prateleira em casa ou porque o disco desapareceu. Este foi o disco, porque se tenho um disco de ouro, platina ou de diamante é esse Angola 72 que contribuiu tremendamente. Era tudo quanto eu tinha cá dentro que saiu e explodiu. Isso é a minha verdade, minha vivência, é a África e Angola, portanto vamos por aí. E sobretudo mobilizar a juventude, mas não para ser carne de canhão. Para desenvolver-se, reivindicar, estar no seu país e desfrutar de tudo isso. Este foi o ponto de partida e no ano seguinte pediram-me outro disco. Mesmo com as pessoas que no tal ano consideram o tal Bonga como ‘persona non grata’, não pode entrar. Depois veio outro, outro e mais outros. Veja onde já chegou, quase 40 discos.


[Mu Nhango]


[Entrevista na integra aqui]


[*] Estranha 'boca' essa, especialmente quando provinda de um artista que incorpora em alguma da sua musica sons e ritmos do Zaire/Kongo como o soukouss... e no contexto de uma musica angolana cujas influencias daquele pais sao por demais evidentes como aki e aki no Kongo Na'ngai se pode constatar... e, afinale, kada musika kom a sua danca, n'est-ce pas? E... Kongo Na'ngai, Motema Na'ngai, Mobali Na'ngai... sao frases tao bonitas de se ouvir e de se dancar! N'est-ce pas?...
Mas... como ao kota por vezes sao permitidas algumas 'bocas' passaveis... passemos!

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