À frescura da mulemba
às nossas tradições
aos ritmos e às fogueiras
havemos de voltar
À marimba e ao quissange
ao nosso carnaval
havemos de voltar
[Agostinho Neto - Havemos de Voltar]
“Apos a independencia, o Estado passou a financiar os grupos e fixou a data do Carnaval a 27 de Marco, dia do aniversario da Vitoria (em 76) das FAPLA sobre as tropas sul-africanas.” Assim reza uma historia a qual voltarei mais tarde neste post.
Mas, por agora, falemos de datas: 4 de Fevereiro, ou 15 de Marco? 2 de Marco, ou… outra data qualquer? 27 de Marco, “dia do aniversario da Vitoria (em 76) das FAPLA sobre as tropas sul-africanas”, ou 25 de Maio (em 91), dia da assinatura do acordo de retirada das forcas cubanas na sequencia da batalha do Kuito Kwanavale?
Certo, certo, e porque o 4 de Abril parece que tambem ja’ mudou para o 5 de Marco, parece que as unicas datas certas do pos-Dipanda que temos, para alem do proprio 11 de Novembro, sao o 23 de Janeiro e o 27 de Maio… Essas datas, infelizmente, por muito que se as queira enterrar na 'bruma da memoria', de certeza que nunca poderao ser mudadas (mesmo porque ha' sempre alguem pronto a lembrar-nos delas ainda que "apenas por entre os dentes, em silencio"...), para o bem ou para o mal… E isso ao contrario do Carnaval, cuja data, de ha’ uns anos a esta parte, voltou a ser mudada para o dia que tradicionalmente lhe e' reservado.
E e’ essa palavra, “tradicionalmente”, que me faz voltar ao Carnaval depois de este ano o ter ja’ assinalado aqui. E tudo porque o Carnaval deste ano me deixou muito kafusa entre as nocoes de 'tradicao' e 'modernidade'...
Entao nao e’ que o vencedor do ano passado, o Unidos de Caxinde (UC), da Associacao Cha' de Caxinde dirigida por Jacques dos Santos, este ano ficou em oitavo lugar , ou seja, a um passo de ser relegado para o segundo escalao, e decidiu, na semana que ontem terminou, nao mais voltar a competir no Carnaval de Luanda?! Mas nao, desenganem-se os que comecaram ja’ a pensar em “mau perder”: aparentemente e’ tudo so’ mesmo em nome da 'modernidade' e… do 'respeito pelas instituicoes'! Mas o 'respeito pelas instituicoes' nao implica de algum modo o respeito pela 'tradicao' e suas instituicoes? Estou mesmo kafusa!
E pode la’ haver mais modernidade do que uma Segunda Marginal novinha em folha para inaugurar com o desfile de Carnaval, na data certa, no pos-Dipanda?
E mais kafusa ainda fico quando me dizem que e’ tudo por culpa da Delegacao Provincial da Cultura de Luanda de que aqui se fala… Mas, na altura nao os aplaudiram todos e todas (embora tenham feito vista grossa e assobiado pro lado perante certos corpos semi-nus e respectivas bundonas klassiko-kulturais sendo paradeados em publico exactamente naquela mesma altura...)? Ou estariam, em ambos os casos, so' a fingir? E o que e’ que eles fizeram ali senao proibir a "exibicao de bundas em publico"? E isso estara’ muito longe da "exibicao de mini-saias e ‘pernoes’" (... como cantava o Mestre Geraldo: oh mini-saia brinca na areia, mulher e' bessangana, mulher e' de respeito, brinca rebita...) que supostamente (tambem?) representariam a 'modernidade' do UC, em vez das damas com aquelas “saias compridas tipo varina” dos tempos do kaprandanda que “nao deixam ver nada” e os cavalheiros vestidos segundo a "estetica do pinguim" sob o sol escaldante?! Nao... estou mesmo kafusa!
Nao deixo, no entanto, de lamentar essa dramatica decisao, aparentemente in extremis , do UC. Nao necessariamente pela 'modernidade' em nome da qual se manifestam, uma vez que, como venho repetindo, estou bastante kafusa sobre o que isso possa significar no contexto do Carnaval Angolano, mas pela diversidade que, obviamente, se perde com a saida de um grupo que, pelos ecos que me vao chegando, se tornou tao proeminente no Carnaval de Luanda durante a ultima decada. E sentindo-me tao frequentemente entre os excluidos e rejeitados de toda a ordem e natureza, nao posso, em nome do conceito de cidadania e seus respectivos direitos, deixar de sentir simpatia por quem tambem assim se sinta em quaisquer circunstancias.
Porem, porque e’ (foi) Carnaval, espero que nao me levem a mal por sugerir aos membros do UC que 'sigam o leader' (a.k.a. Banda Desenhada) e vao paradear toda a sua 'modernidade' no Carnaval de Benguela… ou, ja' agora, em Portugal, onde abriram recentemente uma "delegacao"... ali e’ que talvez ninguem mesmo lhes vai levar a mal!
Entretanto...
Numa segunda abordagem, porem, talvez a principal razao de eu estar tao kafusa nao tenha bem a ver com a decisao dos UC, mas mais com o facto de eu ter pensado, como aqui expressei, que "progresso" (ou, se se preferir, "modernidade") em termos de "semba, kizomba e kuduro", especialmente se em comparacao com outras formas de expressao desses generos, poderia (tambem e por exemplo) significar o que ouve nesse Kamusekele do Dog Murras com o Kota Bonga, utilizando sons, ritmos e o espirito do Carnaval tradicional de Luanda... E nao e' que esse mesmo Kamusekele so' me trouxe bwerere' do bwe' do bwe' de makas de sanzala aki pro mo kubiku, com ameacas de morte e tudo?!
[Kamusekele - Dog Murras, feat. Bonga]
Mas afinale parece que, tal como a decisao dos UC, nem tudo o que parece nas reaccoes e atitudes intolerantes dos "absolutamente alergicos" ao kuduro (e... aparentemente, a este blog! - como se eu o tivesse inventado ou fosse a sua maior aficcionada e propagandista e, ultimamente, tambem dos tais de melindros, kambwas e sei eu la' mais o que!...) e': porque a maka deles parece ter tudo a ver, apenas e tao so', com a letra desse Kamusekele... a qual, quanto a mim, constitui, nada mais nada menos, do que um bom exemplo de "critica social" que, paradoxal e ironicamente, alguns dos seus maiores depredadores dizem praticar, apelidando-a de "musica sem conteudo"! Mas, e mais uma vez nao me levem a mal porque de Carnaval se trata, la' diz o ditado: "quem se ofendeu, carapuca lhe serviu"!
So' que, enquanto eu aqui sou bombardeada sem apelo nem agravo com obuses no meu quintal por causa da musica dele, o Dog Murras passou este Carnaval, bem como os dos ultimos anos, na maior la' pras bandas do Brasil, abrilhantando o Carnaval da Bahia com os sons do Carnaval de Luanda, como aqui se pode verificar... Ja' viram?!
Mas, voltando ao Carnaval de Luanda, uma coisa que gostei particularmente de saber foi do desfile dos kanukos, onde, segundo esta noticia , "o prémio correspondente à classe C (infantil) foi atribuído à canção “Defesa da tradição”, do grupo União Cassules dos Jovens da Cacimba, pelo carácter explícito das mensagens apelativas, aproximando o ritmo expressivo do Carnaval à tradição musical angolana, enaltecendo, desta forma, as origens sócio-culturais do Carnaval angolano."
Bom, o que eu e os ndengues do meu bairro (na altura B.O./Sao Paulo - o qual, alias, tanto quanto julgo saber, tambem foi, se e' que ja' nao e', o de Jacques dos Santos do UC acima mencionado...) nao dariamos para podermos ir tambem desfilar "oficialmente" na Marginal! ... Naqueles nossos tempos, nas vesperas do Carnaval, era um corre-corre para arranjarmos nas despensas das nossas maes 'massa estrelinha' e 'massa cotovelo', mais feijoes de varios tipos, cores e tamanhos e aquelas sementes vermelhas e castanhas que iamos coleccionando ao longo do ano quando iamos a praia da floresta da Ilha ou ao Mussulo, mais algumas missangas de varias cores que desenrascavamos no mercado de Sao Paulo para fazermos os nossos colares e pulseiras; mais saias feitas de rafia ou sacos de sarapilheira, desfiados da meia-perna para baixo e uns tops tambem do mesmo material ou de panos de cores garridas, com turbantes na cabeca a condizer e as caras pintadas das cores e geitos da nossa criatividade, com muito vermelho e branco a mistura...
Mas ali nao havia bem competicao, nem juri: ganhava o grupo que conseguisse amealhar mais kitari dos mais-velhos pelas ruas em que desfilavamos - um pouco como fazem os miudos do ocidente no seu Halloween.
Entao, escolhiamos os nossos principe e princesa e saiamos em grupos pelo bairro afora pra brinkar o nosso karnaval, a bater os nossos batukitos bem aquecidos e as nossas latas e garrafas bem pintadas e decoradas, a soprar os nossos apitos e cornetas e a dikanzar os nossos bordoes bem trabalhados e os nossos chocalhos, todos bem ritmados e animados atras do Mayado, que era o nosso maskarado 'a Tchinganji ou Mukixi:
Tam-taram-tam-tam... mayado! Tam-tam-taram-tam-tam... mayado! Pao com gin-gu-ba... mayado! Tam-tam-taram-tam-tam... mayado! Pao com gin-gu-ba... mayado! Tam-tam-taram-tam-tam... Mayado!!!
A 'Tradicao'
“O semba e’ uma adaptacao do kazukuta. O meu pai transpos os ritmos kimbundus para a viola. Tinha conhecimento das musicas portuguesas e brasileiras. Transpos muita coisa em tom menor.” - Carlitos Vieira Dias
Em Luanda e noutras cidades (Malange, Benguela) o Carnaval e’ desde o seculo XIX a festa popular por excelencia onde os africanos se mascaram de figuras portuguesas e dancam pantomimas alegoricas. Nos anos 40, nos grupos carnavalescos dos musseques, ganham forca as percussoes e a dikanza, ao lado da corneta, dos apitos e dos chocalhos. As dancas sao dizanda, varina, kabetula, cidralia, maringa, kazukuta, njimba. O carnaval foi proibido de 61 a 68.
[Na Rua de Sao Paulo - Kabokomeu]
Apos a independencia, o Estado passou a financiar os grupos e fixou a data do carnaval a 27 de Marco, dia do aniversario da vitoria (em 76) das FAPLA sobre as tropas sul-africanas. Uniao Operaria Kabokomeu foi fundado em Janeiro de 1952, por operarios do Sambizanga. Uniao Mundo da Ilha juntou em 1968 varios grupos da Ilha de Luanda. Na Rua de Sao Paulo e’ um kazukuta, danca baseada em pantomima. Amanha Vamos a Procura da Chave e’ uma varina. Se bem que gravadas em 1978, estas duas musicas sao representativas do carnaval dos anos 50-60. Mas as letras, no contexto politico do pos-independencia, expressam o apoio popular a Agostinho Neto, Presidente da Republica.
[Amanha Vamos a Procura da Chave
- Uniao Mundo da Ilha]
A rebita apareceu no final do seculo XIX nos saloes de uma elite negra e mulata das cidades (Luanda, Benguela). A danca de origem europeia (quadrille ou contre danse) foi africanizada. Toca-se com concerina e dikanza. As damas sao trajadas de panos africanos, com penteados kindumba, os cavalheiros de fato, a rigor, com chapeu de coco. Os apitos e as ordens (com algumas palavras em frances) do “comandante”, dao o sinal das viragens, acompanhadas de palmas e umbigadas. O nome tradicional e’ massemba, a palavra rebita aparece mais tarde. Mestre Geraldo, grande mestre de rebita e chefe de grupos carnavalescos, introduziu percussoes dos pescadores da Ilha de Luanda, tornando-a mais popular. Mini Saia, muito celebre, e’ uma mistura de varina e massemba.
[Mini Saia - Mestre Geraldo Morgado]
[Extractos de textos de Jorge Macedo, Artur Arriscado, João Chagas, Gilberto Junior e Ariel de Bigault, in Angola 60’s – Buda Musique 1999]
Finalmente, se me e' permitido, gostaria de regressar ao meu Carnaval.
Como afirmei em algumas ocasioes (e.g. aqui), tenho por principio fundamental nao falar, menos ainda tentar explicar, (d)os meus poemas, mesmo quando confrontada, como tem sido norma desde a publicacao do meu primeiro, e ate' agora, unico livro, com a sua total deturpacao, manipulacao, ou indevida interpretacao/apropriacao - voluntaria e conscientemente ou nao. Dito isso, tenho vindo ultimamente a abrir algumas excepcoes, como foi o caso aqui, aqui, aqui e aqui.
Fa-lo-ei agora tambem um pouco em relacao a esse poema em que tentei recriar a atmosfera do Carnaval.
Sempre entendi o Carnaval (em qualquer parte do mundo) como uma manifestacao de algo assim como o "festival da carne" - uma festa pagã destinada inicialmente a dar vazao a tudo (ou quase) quanto era proibido pela religiao ao longo do resto do ano (dai o "prazer 'imedido' na exorcisao das teias do armario"); uma especie de "teatro do absurdo", uma expressao de "transgressao" daquilo que vai contra a norma estabelecida, "anormal" portanto (e.g. "despir o nu e agasalhar o mal vestido" - algo expresso na exuberancia das vestes de Carnaval mesmo pelos que durante o resto do ano mal teem com que se vestir, podendo para tanto chegar a "despir o nu" -, ou "qualquer ovo que se machuca e se espalha lentamente pelo corpo", ou ainda "um aperto de maos, de costas, para dar mais prazer"). Tudo isso, porem, com um prazo limitado de que os folioes nao se lembram "senao a despedida", i.e., apenas quando e' tempo de "varrer as cinzas".
Enfim, uma festa destinada a "chocar", a provocar "choque(s)" no sistema social - e, nessa medida, ele tera' evoluido do chocar com o sistema religioso ao chocar com o sistema politico, "entre a calma do ocio - o dolce fare niente, o nao trabalhar, dos dias de Carnaval, que e' tambem um acto contra a 'norma' - e o desprezo da revolta" [contra o(s) sistema(s)].
E tudo isso para que a norma, o(s) sistema(s), enfim, os "valores e principios" estabelecidos, se possam manter (e reproduzir-se) quando tudo regressa a normalidade do resto do ano - dai a "tempestade que nunca desabara'" apesar do "vento rasteiro, sibilino": Carnaval.
Mas o tema do Carnaval foi apenas um pretexto para escrever sobre outras coisas que na altura se estavam a passar na minha vida, ao regressar a Luanda com o meu filho de Lisboa, depois de ter passado pelo Carnaval do Rio com o falecido pai dele em 1983. Mas essas sao outras historias.
Mas, por agora, falemos de datas: 4 de Fevereiro, ou 15 de Marco? 2 de Marco, ou… outra data qualquer? 27 de Marco, “dia do aniversario da Vitoria (em 76) das FAPLA sobre as tropas sul-africanas”, ou 25 de Maio (em 91), dia da assinatura do acordo de retirada das forcas cubanas na sequencia da batalha do Kuito Kwanavale?
Certo, certo, e porque o 4 de Abril parece que tambem ja’ mudou para o 5 de Marco, parece que as unicas datas certas do pos-Dipanda que temos, para alem do proprio 11 de Novembro, sao o 23 de Janeiro e o 27 de Maio… Essas datas, infelizmente, por muito que se as queira enterrar na 'bruma da memoria', de certeza que nunca poderao ser mudadas (mesmo porque ha' sempre alguem pronto a lembrar-nos delas ainda que "apenas por entre os dentes, em silencio"...), para o bem ou para o mal… E isso ao contrario do Carnaval, cuja data, de ha’ uns anos a esta parte, voltou a ser mudada para o dia que tradicionalmente lhe e' reservado.
E e’ essa palavra, “tradicionalmente”, que me faz voltar ao Carnaval depois de este ano o ter ja’ assinalado aqui. E tudo porque o Carnaval deste ano me deixou muito kafusa entre as nocoes de 'tradicao' e 'modernidade'...
Entao nao e’ que o vencedor do ano passado, o Unidos de Caxinde (UC), da Associacao Cha' de Caxinde dirigida por Jacques dos Santos, este ano ficou em oitavo lugar , ou seja, a um passo de ser relegado para o segundo escalao, e decidiu, na semana que ontem terminou, nao mais voltar a competir no Carnaval de Luanda?! Mas nao, desenganem-se os que comecaram ja’ a pensar em “mau perder”: aparentemente e’ tudo so’ mesmo em nome da 'modernidade' e… do 'respeito pelas instituicoes'! Mas o 'respeito pelas instituicoes' nao implica de algum modo o respeito pela 'tradicao' e suas instituicoes? Estou mesmo kafusa!
E pode la’ haver mais modernidade do que uma Segunda Marginal novinha em folha para inaugurar com o desfile de Carnaval, na data certa, no pos-Dipanda?
E mais kafusa ainda fico quando me dizem que e’ tudo por culpa da Delegacao Provincial da Cultura de Luanda de que aqui se fala… Mas, na altura nao os aplaudiram todos e todas (embora tenham feito vista grossa e assobiado pro lado perante certos corpos semi-nus e respectivas bundonas klassiko-kulturais sendo paradeados em publico exactamente naquela mesma altura...)? Ou estariam, em ambos os casos, so' a fingir? E o que e’ que eles fizeram ali senao proibir a "exibicao de bundas em publico"? E isso estara’ muito longe da "exibicao de mini-saias e ‘pernoes’" (... como cantava o Mestre Geraldo: oh mini-saia brinca na areia, mulher e' bessangana, mulher e' de respeito, brinca rebita...) que supostamente (tambem?) representariam a 'modernidade' do UC, em vez das damas com aquelas “saias compridas tipo varina” dos tempos do kaprandanda que “nao deixam ver nada” e os cavalheiros vestidos segundo a "estetica do pinguim" sob o sol escaldante?! Nao... estou mesmo kafusa!
Nao deixo, no entanto, de lamentar essa dramatica decisao, aparentemente in extremis , do UC. Nao necessariamente pela 'modernidade' em nome da qual se manifestam, uma vez que, como venho repetindo, estou bastante kafusa sobre o que isso possa significar no contexto do Carnaval Angolano, mas pela diversidade que, obviamente, se perde com a saida de um grupo que, pelos ecos que me vao chegando, se tornou tao proeminente no Carnaval de Luanda durante a ultima decada. E sentindo-me tao frequentemente entre os excluidos e rejeitados de toda a ordem e natureza, nao posso, em nome do conceito de cidadania e seus respectivos direitos, deixar de sentir simpatia por quem tambem assim se sinta em quaisquer circunstancias.
Porem, porque e’ (foi) Carnaval, espero que nao me levem a mal por sugerir aos membros do UC que 'sigam o leader' (a.k.a. Banda Desenhada) e vao paradear toda a sua 'modernidade' no Carnaval de Benguela… ou, ja' agora, em Portugal, onde abriram recentemente uma "delegacao"... ali e’ que talvez ninguem mesmo lhes vai levar a mal!
Entretanto...
Numa segunda abordagem, porem, talvez a principal razao de eu estar tao kafusa nao tenha bem a ver com a decisao dos UC, mas mais com o facto de eu ter pensado, como aqui expressei, que "progresso" (ou, se se preferir, "modernidade") em termos de "semba, kizomba e kuduro", especialmente se em comparacao com outras formas de expressao desses generos, poderia (tambem e por exemplo) significar o que ouve nesse Kamusekele do Dog Murras com o Kota Bonga, utilizando sons, ritmos e o espirito do Carnaval tradicional de Luanda... E nao e' que esse mesmo Kamusekele so' me trouxe bwerere' do bwe' do bwe' de makas de sanzala aki pro mo kubiku, com ameacas de morte e tudo?!
[Kamusekele - Dog Murras, feat. Bonga]
Mas afinale parece que, tal como a decisao dos UC, nem tudo o que parece nas reaccoes e atitudes intolerantes dos "absolutamente alergicos" ao kuduro (e... aparentemente, a este blog! - como se eu o tivesse inventado ou fosse a sua maior aficcionada e propagandista e, ultimamente, tambem dos tais de melindros, kambwas e sei eu la' mais o que!...) e': porque a maka deles parece ter tudo a ver, apenas e tao so', com a letra desse Kamusekele... a qual, quanto a mim, constitui, nada mais nada menos, do que um bom exemplo de "critica social" que, paradoxal e ironicamente, alguns dos seus maiores depredadores dizem praticar, apelidando-a de "musica sem conteudo"! Mas, e mais uma vez nao me levem a mal porque de Carnaval se trata, la' diz o ditado: "quem se ofendeu, carapuca lhe serviu"!
So' que, enquanto eu aqui sou bombardeada sem apelo nem agravo com obuses no meu quintal por causa da musica dele, o Dog Murras passou este Carnaval, bem como os dos ultimos anos, na maior la' pras bandas do Brasil, abrilhantando o Carnaval da Bahia com os sons do Carnaval de Luanda, como aqui se pode verificar... Ja' viram?!
Mas, voltando ao Carnaval de Luanda, uma coisa que gostei particularmente de saber foi do desfile dos kanukos, onde, segundo esta noticia , "o prémio correspondente à classe C (infantil) foi atribuído à canção “Defesa da tradição”, do grupo União Cassules dos Jovens da Cacimba, pelo carácter explícito das mensagens apelativas, aproximando o ritmo expressivo do Carnaval à tradição musical angolana, enaltecendo, desta forma, as origens sócio-culturais do Carnaval angolano."
Bom, o que eu e os ndengues do meu bairro (na altura B.O./Sao Paulo - o qual, alias, tanto quanto julgo saber, tambem foi, se e' que ja' nao e', o de Jacques dos Santos do UC acima mencionado...) nao dariamos para podermos ir tambem desfilar "oficialmente" na Marginal! ... Naqueles nossos tempos, nas vesperas do Carnaval, era um corre-corre para arranjarmos nas despensas das nossas maes 'massa estrelinha' e 'massa cotovelo', mais feijoes de varios tipos, cores e tamanhos e aquelas sementes vermelhas e castanhas que iamos coleccionando ao longo do ano quando iamos a praia da floresta da Ilha ou ao Mussulo, mais algumas missangas de varias cores que desenrascavamos no mercado de Sao Paulo para fazermos os nossos colares e pulseiras; mais saias feitas de rafia ou sacos de sarapilheira, desfiados da meia-perna para baixo e uns tops tambem do mesmo material ou de panos de cores garridas, com turbantes na cabeca a condizer e as caras pintadas das cores e geitos da nossa criatividade, com muito vermelho e branco a mistura...
Mas ali nao havia bem competicao, nem juri: ganhava o grupo que conseguisse amealhar mais kitari dos mais-velhos pelas ruas em que desfilavamos - um pouco como fazem os miudos do ocidente no seu Halloween.
Entao, escolhiamos os nossos principe e princesa e saiamos em grupos pelo bairro afora pra brinkar o nosso karnaval, a bater os nossos batukitos bem aquecidos e as nossas latas e garrafas bem pintadas e decoradas, a soprar os nossos apitos e cornetas e a dikanzar os nossos bordoes bem trabalhados e os nossos chocalhos, todos bem ritmados e animados atras do Mayado, que era o nosso maskarado 'a Tchinganji ou Mukixi:
Tam-taram-tam-tam... mayado! Tam-tam-taram-tam-tam... mayado! Pao com gin-gu-ba... mayado! Tam-tam-taram-tam-tam... mayado! Pao com gin-gu-ba... mayado! Tam-tam-taram-tam-tam... Mayado!!!
A 'Tradicao'
“O semba e’ uma adaptacao do kazukuta. O meu pai transpos os ritmos kimbundus para a viola. Tinha conhecimento das musicas portuguesas e brasileiras. Transpos muita coisa em tom menor.” - Carlitos Vieira Dias
Em Luanda e noutras cidades (Malange, Benguela) o Carnaval e’ desde o seculo XIX a festa popular por excelencia onde os africanos se mascaram de figuras portuguesas e dancam pantomimas alegoricas. Nos anos 40, nos grupos carnavalescos dos musseques, ganham forca as percussoes e a dikanza, ao lado da corneta, dos apitos e dos chocalhos. As dancas sao dizanda, varina, kabetula, cidralia, maringa, kazukuta, njimba. O carnaval foi proibido de 61 a 68.
[Na Rua de Sao Paulo - Kabokomeu]
Apos a independencia, o Estado passou a financiar os grupos e fixou a data do carnaval a 27 de Marco, dia do aniversario da vitoria (em 76) das FAPLA sobre as tropas sul-africanas. Uniao Operaria Kabokomeu foi fundado em Janeiro de 1952, por operarios do Sambizanga. Uniao Mundo da Ilha juntou em 1968 varios grupos da Ilha de Luanda. Na Rua de Sao Paulo e’ um kazukuta, danca baseada em pantomima. Amanha Vamos a Procura da Chave e’ uma varina. Se bem que gravadas em 1978, estas duas musicas sao representativas do carnaval dos anos 50-60. Mas as letras, no contexto politico do pos-independencia, expressam o apoio popular a Agostinho Neto, Presidente da Republica.
[Amanha Vamos a Procura da Chave
- Uniao Mundo da Ilha]
A rebita apareceu no final do seculo XIX nos saloes de uma elite negra e mulata das cidades (Luanda, Benguela). A danca de origem europeia (quadrille ou contre danse) foi africanizada. Toca-se com concerina e dikanza. As damas sao trajadas de panos africanos, com penteados kindumba, os cavalheiros de fato, a rigor, com chapeu de coco. Os apitos e as ordens (com algumas palavras em frances) do “comandante”, dao o sinal das viragens, acompanhadas de palmas e umbigadas. O nome tradicional e’ massemba, a palavra rebita aparece mais tarde. Mestre Geraldo, grande mestre de rebita e chefe de grupos carnavalescos, introduziu percussoes dos pescadores da Ilha de Luanda, tornando-a mais popular. Mini Saia, muito celebre, e’ uma mistura de varina e massemba.
[Mini Saia - Mestre Geraldo Morgado]
[Extractos de textos de Jorge Macedo, Artur Arriscado, João Chagas, Gilberto Junior e Ariel de Bigault, in Angola 60’s – Buda Musique 1999]
Finalmente, se me e' permitido, gostaria de regressar ao meu Carnaval.
Como afirmei em algumas ocasioes (e.g. aqui), tenho por principio fundamental nao falar, menos ainda tentar explicar, (d)os meus poemas, mesmo quando confrontada, como tem sido norma desde a publicacao do meu primeiro, e ate' agora, unico livro, com a sua total deturpacao, manipulacao, ou indevida interpretacao/apropriacao - voluntaria e conscientemente ou nao. Dito isso, tenho vindo ultimamente a abrir algumas excepcoes, como foi o caso aqui, aqui, aqui e aqui.
Fa-lo-ei agora tambem um pouco em relacao a esse poema em que tentei recriar a atmosfera do Carnaval.
Sempre entendi o Carnaval (em qualquer parte do mundo) como uma manifestacao de algo assim como o "festival da carne" - uma festa pagã destinada inicialmente a dar vazao a tudo (ou quase) quanto era proibido pela religiao ao longo do resto do ano (dai o "prazer 'imedido' na exorcisao das teias do armario"); uma especie de "teatro do absurdo", uma expressao de "transgressao" daquilo que vai contra a norma estabelecida, "anormal" portanto (e.g. "despir o nu e agasalhar o mal vestido" - algo expresso na exuberancia das vestes de Carnaval mesmo pelos que durante o resto do ano mal teem com que se vestir, podendo para tanto chegar a "despir o nu" -, ou "qualquer ovo que se machuca e se espalha lentamente pelo corpo", ou ainda "um aperto de maos, de costas, para dar mais prazer"). Tudo isso, porem, com um prazo limitado de que os folioes nao se lembram "senao a despedida", i.e., apenas quando e' tempo de "varrer as cinzas".
Enfim, uma festa destinada a "chocar", a provocar "choque(s)" no sistema social - e, nessa medida, ele tera' evoluido do chocar com o sistema religioso ao chocar com o sistema politico, "entre a calma do ocio - o dolce fare niente, o nao trabalhar, dos dias de Carnaval, que e' tambem um acto contra a 'norma' - e o desprezo da revolta" [contra o(s) sistema(s)].
E tudo isso para que a norma, o(s) sistema(s), enfim, os "valores e principios" estabelecidos, se possam manter (e reproduzir-se) quando tudo regressa a normalidade do resto do ano - dai a "tempestade que nunca desabara'" apesar do "vento rasteiro, sibilino": Carnaval.
Mas o tema do Carnaval foi apenas um pretexto para escrever sobre outras coisas que na altura se estavam a passar na minha vida, ao regressar a Luanda com o meu filho de Lisboa, depois de ter passado pelo Carnaval do Rio com o falecido pai dele em 1983. Mas essas sao outras historias.
No comments:
Post a Comment