AINDA SOBRE O 'JUNE 16, 1976'
Por ocasiao da passagem de mais um aniversario do massacre de Soweto - perpetrado pelas forcas policiais do regime do apartheid sobre criancas, adolescentes e jovens estudantes negros sul-africanos que se manifestavam contra a obrigatoriedade do ensino do Afrikaans, e a exclusao do Ingles e disciplinas estruturantes como as Ciencias Naturais e a Matematica, nos seus curriculos escolares -, agora celebrado como o 'Dia da Juventude' na Africa do Sul e tambem como 'Dia da Crianca Africana' no resto do continente, recebi ontem uma referencia a este artigo, com esta nota:
"(não sei bem quando é que nós, em Angola, "começámos a degenerar...", mas acho que estas questões se aplicam igualmente, tão bem, a qualquer um dos nossos países...talvez fosse um bom exercício tentarmos encontrar respostas para o nosso caso? - xxxx)"
O artigo (que esta' em Ingles, mas acredito que os leitores exclusivos de Portugues poderao 'apanhar' o seu sentido geral atraves deste post) sugeriu-me os seguintes comentarios:
"The perversion of economic growth and its fruits begins when we attempt to make up for the scarcity of public goods by producing more private ones, and to find in private consumption a barren solace for social frustration."
1. O crescimento economico e’ geralmente definido como o resultado da taxa de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB). Os seus frutos sao, por conseguinte, os rendimentos, tanto do sector publico como do privado, dele auferidos. Portanto, para o crescimento economico concorre tambem o sector privado, dai decorrendo que a producao de bens privados nao e’ necessariamente uma “perversao do crescimento economico”. A haver “perversao”, ela decorrera’ das politicas distributivas e redistributivas do PIB adoptadas pelo governo, que poderao ou nao, dependendo das preferencias e escolhas dos cidadaos, que sao ditadas sobretudo por factores culturais, conduzir a “to find in private consumption a barren solace for social frustration” por alguns individuos ou sectores da sociedade;
2. Ha’ no ‘statement’ uma flagrante confusao entre “bens publicos” e “servicos publicos”. Os bens publicos, por definicao, nao podem, ou nao devem, ser privatizados, ao passo que os servicos publicos o podem ser. A privatizacao de certos servicos publicos, ou seus sub-sectores, tem-se revelado, em muitos casos, socialmente benefica, particularmente la’ onde o estado tem uma limitada capacidade de os prover com eficiencia. O beneficio social desse tipo de privatizacao e’ tanto maior quanto mais ele for feito sob sub-contratacao com o estado, o qual passa a agir apenas como “distribuidor” desses servicos ao publico para o seu consumo privado, gratuitamente ou a precos subsidiados. Ele pode tambem ter, em varios casos, efeitos redistributivos positivos, tanto para provedores como para consumidores, nos sectores mais carenciados da sociedade, particularmente quando tais servicos podem ser prestados por populares normalmente afectos ao sector informal (e.g., descontando a ‘nuisance’ que eles podem ser nas estradas, “candongueiros” prestando servicos de transporte publico);
3. “The scarcity of public goods (ou melhor dito, de 'public services')” em paises como a Africa do Sul e Angola resulta, nao necessaria ou exclusivamente do crescimento economico ou da privatizacao mas – entre outros factores, como o crescimento demografico e a sangria de quadros pelas mais diversas razoes (particularmente, e coincidindo com o agravamento da pandemia do SIDA, do sector de saude publica da Africa do Sul, especialmente para paises como a Australia e o UK) – do crescimento da demanda por servicos publicos que no tempo do apartheid e do colonialismo, respectivamente, eram restritos apenas a uma minoria. A concessao, como um direito constitucional universal, de um acesso generalizado aos servicos publicos sob os novos regimes (que no caso de Angola se torna mais dramatico com as restricoes impostas pela inicial estatizacao da economia e com a concentracao das populacoes na capital devido a guerra), sem um correspondente aumento da capacidade de oferta por parte do estado e’ que cria a tal escassez. Ora, o que tem que se saber e’ se o crescimento economico da Africa do Sul post-apartheid foi suficiente para criar tal capacidade e a mesma questao se poe em relacao a Angola do pos-guerra, ou, se se preferir, do pos-independencia;
4. Qualquer que seja a resposta a essas questoes, ha’ que ter em conta que quem privatiza determinados servicos, que de outro modo estariam exclusivamente na esfera do sector publico, na Africa do Sul, nao e’ apenas o estado mas tambem, e sobretudo, os investidores privados, nacionais ou estrangeiros, por sua propria iniciativa empresarial, como alias ja’ se verificava antes do fim do apartheid. O mesmo se passa agora em Angola (ressalvando o facto, obviamente condenavel, de alguns provedores de servicos privados o fazerem fraudulentamente a custa de fundos publicos obtidos ilicitamente, ou de ‘benesses’ varias do estado… mas essa e’, quanto a mim, uma questao a ser analisada sob outros parametros analiticos). E quem recorre a esses servicos privados e‘ quem pode, ou quem quer, como em todo o lado. Mas isso nao significa necessariamente, como o autor implica, que os servicos privados sejam sempre superiores aos prestados pelo sector publico e ha’ bastantes exemplos disso em toda a parte e em varios sectores, desde a saude a comunicacao social, passando pela educacao;
5. Quanto a pergunta “If you had a choice, would you like your mother to be treated in a public or private hospital?” e todas as que se lhe seguem, julgo que elas devem ser ponderadas a luz do ponto anterior. Mas a questao fundamental aqui, do ponto de vista redistributivo, nao e’ “if you had a choice”, mas a quem e’ que e’ dada essa escolha nos nossos paises e porque? E aqui estou a pensar particularmente no caso de Angola, porque no caso da Africa do Sul, teem essa escolha os que a podem pagar com o rendimento do seu trabalho, ou de contribuicoes pessoais para fundos de provisao de saude a titulo privado, ou atraves de outros esquemas de seguranca social. No caso de Angola, sei apenas que para a esmagadora maioria dos cidadaos (parcial ou completamente excluidos) tal escolha nao e’ sequer uma possibilidade…
6. Agora, a percepcao de “degeneracao” na Africa do Sul parte claramente de um pressuposto ideologico que o autor nao explicita, e e’ pena que nao o faca, embora se o depreenda do sentido geral do discurso. Em particular, seria importante que ele demonstrasse que os indicadores sociais para a maioria da populacao na era post-apartheid sao piores que os da era anterior. Nao e’ isso, no entanto, o que as estatisticas teem demonstrado, tanto quanto e’ do meu conhecimento (veja-se, por exemplo o relatorio que aqui postei ha' algum tempo). Pode-se argumentar que eles poderiam ser melhores do que teem sido, nao fosse a pandemia do SIDA, as alegadas ma’ governacao, corrupcao e factores correlatos, ou os efeitos da actual crise economica global? Concerteza! Mas dai a falar-se em “degeneracao”, vai alguma distancia… particularmente se se tiverem em conta dois “bens publicos” fundamentais e inestimaveis produzidos pelo fim do apartheid: a Liberdade e a Democracia (e, no caso de Angola, a conquista da Paz). E por essa e todas as razoes apontadas nos pontos anteriores, do meu ponto de vista, embora o autor disso pareca nao se aperceber, o seu e’ precisamente um dos tipos de discurso que podem ser eficazmente usados (e estao precisamente a ser usados neste momento - embora por elementos de diferentes espectros sociais, economicos, culturais, politicos e/ou ideologicos - tanto em Angola como na Africa do Sul...) por “populist leaders, threatening to recommence the destructive pendular swing between economic populism and economic orthodoxy”, num ambiente de crescente exclusao social…
7. Finalmente, quanto a questao central: “Where were you and what did you do when (Angola) began to degenerate?”
Eu (que, alegadamente - ou, mais precisamente, segundo uma significantissima menina-bem "mais angolana do que a Angolanidade" -, "fugi de Angola em 1975 por nao aguentar a Dipanda pela qual ela lutou"...) estava nos laranjais do Mazozo, depois de ter passado pelos canaviais do Bom Jesus, numa celebre “campanha de producao estudantil”, corria precisamente o ano de 1976. Passei fome e humilhacoes com os meus colegas de acampamento (muitas vezes, para arranjarmos qualquer coisa para comer tinhamos que fazer, a pe, os oito kilometros ate’ e de Catete), mas nao deixei de ir ao campo trabalhar todos os dias. Vim de la’ com uma infeccao nos pes e nas pernas, provocada pelas picadas dos miruis e pelo contacto directo com a terra, sem qualquer tratamento por nao o haver disponivel, que me deixou cicatrizes para o resto da vida (... esses mesmos pes que hoje servem de motivo de xacota nos blogs das mesmas significancias acima referidas...).
Contudo, nao foi isso que me desalentou e me fez pensar naquele episodio como o principio da “degeneracao”: o que o fez foi que, tanto no meu acampamento como pelo que tive noticias de outros, nao se viu qualquer filho ou filha de “mwata” nos campos durante aquela campanha (onde estariam? Sei apenas que muitos se encontravam 'nos cavalos' e nas praias de Luanda, ou de ferias na Europa, isto quando nao andavam efectivamente foragidos da Dipanda...). Isso constituiu uma “degeneracao” tambem no sentido em que eramos todos da mesma “geracao”, dos mesmos estabelecimentos de ensino em Luanda e estavamos todos, pelo menos no discurso vigente, imbuidos do “mesmo espirito”… E la’ dizia Fanon, como o autor sublinha: "We who are citizens of the under-developed countries, we ought to seek every occasion for contact with the rural masses … We ought never to lose contact with the people [who have] battled for [their] independence and for the concrete betterment of [their] existence" – o que alias sempre fiz na minha vida, uma vez que uma parte significativa, com intervalos pelo meio, da primeira metade da minha vida ate hoje foi passada em zonas rurais, com aqueles a quem devo o que sou hoje e que tambem contribuiram, cada um a seu modo, para a nossa independencia e o melhoramento das nossas vidas: os meus pais e avos, restante familia alargada e comunidades locais.
Mas, pior do que o que me aconteceu naquele acampamento, foi que durante os meses que andei em tratamento, ja' em Luanda, com as pernas e pes enfaixados, nao recebi uma visita, ou um telefonema sequer, dos “meus camaradas” que tinham ficado na capital a organizar aquele que foi, afinal, um tremendo “falhanco logistico”, a perguntar como e’ que eu estava e se precisava de alguma coisa... Esse foi, aos meus olhos, o primeiro sinal de que algo se estava a “degenerar” em Angola. “What did I do?” Continuei com a minha vida – sempre a enfrentar mais e mais sinais de “degeneracao” economica, social, cultural e moral na sociedade angolana, ate’ hoje. E todos eles aconteceram, ou comecaram a acontecer, muito antes dos adventos do “neoliberalismo”, da “privatizacao” e do “crescimento economico” no pais…
1 comment:
Um pouco à margem.
Vou-me ausentar para o fim de semana, sem internete, e já lá vão 9.990 leitores de Portugal, pressupondo que atinja os 10.000 durante a minha ausência.
Desde já os meus parabéns.
Obrigado também por este rico espaço, com grande qualidade.
E pensar que seria possível, foi coisa que, sinceramente, não julguei concretizável!
Agora, na meta dos 20.000, vamos ver o que se nos oferece...
BFS
umBhalane
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