Por ocasiao do recente passamento de Ruy Duarte de Carvalho, deixo aqui dois textos sobre a sua obra, respectivamente da poeta Ana Paula Tavares e do antropologo Miguel Vale de Almeida.
Escrever a Nação
[Sobre "A câmara, a escrita e a coisa dita...: fitas, textos e palestras", por Ana Paula Tavares - Maio, 2010]
A criação de um estado (acto jurídico) pressupõe a urdidura de uma nação (processo cultural). -- Ruy Duarte de Carvalho, Ana a Manda os filhos da rede
Vinte anos depois da publicação deste trabalho, inicialmente tese de doutoramento do 3º ciclo defendida na École des Hautes Études en Sciences Sociales, em 1986 e publicada em Lisboa em 1989, dele retiramos a epígrafe como fio que conduz a uma revisita de algumas das articulações mais complexas e pedagogicamente mais conseguidas de quem “atento desde sempre às falas do lugar”[1] enuncia os princípios da inteligibilidade que podem ajudar a perceber Angola, seus actos fundacionais e a proclamação pública que os acrescenta.
O livro de que nos ocupamos agora reúne ensaios produzidos em e sobre Angola que o autor organiza por ordem cronológica do mais recente (2005) ao mais antigo (1982) dando nova ordem de leitura a textos já publicados anteriormente[2] aos quais acrescenta produção posterior resultante da sua participação em palestras, colóquios e lições.
Importa abrir um lugar ao cinema não para falar de filmes (que são muitos e variados) mas sim de toda a reflexão teórica em torna das relações entre cinema e antropologia e assim resumir o que o autor chamou de “urgências” (p. 389), a primeira: “produzir filmes, cientificamente correctos, socialmente operantes, cinematograficamente válidos e eticamente honestos” (p. 450), labor a que se propôs logo após a independência nacional ao mesmo tempo que recuperarava a jeep e de máquina de filmar nas mãos o território que cabia dentro da nação.
Desde sempre o leitor sente a noção de estranhamento relacionada com a estratégia analítica a permitir formular as razões do cinema e as suas relações com a poesia, a tradição oral, o filmador e o filmado. É a abertura do texto ao mundo circundante, fazendo uso de todo o conhecimento para construir uma gramática das inquietações e elaborar uma obra que reconhecemos impar na maneira original como ainda hoje nos interroga, ausculta e esclarece.
Assumindo desde sempre um ‘eu’ sujeito, a consciência dentro do texto, Ruy Duarte de Carvalho escreve as circunstâncias inquietantes que vê e de que é informado e que o levam a produzir “mais do que honestos relatórios” a seduzir pela escrita os eventuais consumidores dos seus textos.
[Texto integral aqui]
Antropologia e Literatura: A Proposito e por Causa de Ruy Duarte de Carvalho
[Por Miguel Vale de Almeida - Fevereiro, 2008]
(...)
Onde os antropólogos, sobretudo a partir dos anos oitenta, se concentraram, foi antes na questão da relação entre autoria e autoridade. Afinal de contas, o texto etnográfico e/ou antropológico, dá ou não conta da pluralidade de vozes no terreno, dos conflitos entre elas, reproduz ou não estruturas de autoridade e precedência não só do terreno mas também das relações entre o Ocidente e o Resto, entre a Ciência e os seus “objectos”?
Na página 27 do seu livro mais marcadamente antropológico, Ana a Manda – Os Filhos da rede (sua tese de doutoramento, defendida em 1986 e publicada em 1989), Ruy Duarte de Carvalho escreve: «Nós estamos, do ponto de vista de uma ética profissional e intelectual, do lado daqueles para quem, em relação a um trabalho como este, a noção de autor se torna ambígua desde que o texto integre a participação de outrem.»
(...)
Se a relação entre “Antropologia e Literatura” é como cutucar uma ferida (pessoal até, no caso presente, já que me vejo como amador dos contos e da ficção científica, blogger, cronista político, ensaísta popularizador e, claro, antropólogo), a verdade é que não existe Betadine epistemológico, metodológico, ético ou político que a sare. James Clifford usa como epígrafe de um dos seus textos em The Predicament of Culture versos de William Carlos Williams que aludem a como «os produtos puros enlouqueceram».
É justamente a “impureza” da obra de Ruy Duarte, o seu não privilegiar de uma autoidentificação enquanto antropólogo, a sua fidelidade à autoria literária, que nos permite – a leitores vindos da antropologia como eu – reencontrar a sanidade e assim ver com caleidoscópica clareza a complexidade dos trânsitos culturais em que vivemos. Da obra de Ruy Duarte não transparece a ferida a que aludi. Quem se assume na multiplicidade de géneros e vozes, na hibridez, e no tráfico e trânsito, transcende os próprios termos em que a questão é colocada. A autoria – despida da autoridade da hiperdefinição literária ou antropológica – é, afinal de contas, o que evita a ferida.
[Texto integral aqui]
Escrever a Nação
[Sobre "A câmara, a escrita e a coisa dita...: fitas, textos e palestras", por Ana Paula Tavares - Maio, 2010]
A criação de um estado (acto jurídico) pressupõe a urdidura de uma nação (processo cultural). -- Ruy Duarte de Carvalho, Ana a Manda os filhos da rede
Vinte anos depois da publicação deste trabalho, inicialmente tese de doutoramento do 3º ciclo defendida na École des Hautes Études en Sciences Sociales, em 1986 e publicada em Lisboa em 1989, dele retiramos a epígrafe como fio que conduz a uma revisita de algumas das articulações mais complexas e pedagogicamente mais conseguidas de quem “atento desde sempre às falas do lugar”[1] enuncia os princípios da inteligibilidade que podem ajudar a perceber Angola, seus actos fundacionais e a proclamação pública que os acrescenta.
O livro de que nos ocupamos agora reúne ensaios produzidos em e sobre Angola que o autor organiza por ordem cronológica do mais recente (2005) ao mais antigo (1982) dando nova ordem de leitura a textos já publicados anteriormente[2] aos quais acrescenta produção posterior resultante da sua participação em palestras, colóquios e lições.
Importa abrir um lugar ao cinema não para falar de filmes (que são muitos e variados) mas sim de toda a reflexão teórica em torna das relações entre cinema e antropologia e assim resumir o que o autor chamou de “urgências” (p. 389), a primeira: “produzir filmes, cientificamente correctos, socialmente operantes, cinematograficamente válidos e eticamente honestos” (p. 450), labor a que se propôs logo após a independência nacional ao mesmo tempo que recuperarava a jeep e de máquina de filmar nas mãos o território que cabia dentro da nação.
Desde sempre o leitor sente a noção de estranhamento relacionada com a estratégia analítica a permitir formular as razões do cinema e as suas relações com a poesia, a tradição oral, o filmador e o filmado. É a abertura do texto ao mundo circundante, fazendo uso de todo o conhecimento para construir uma gramática das inquietações e elaborar uma obra que reconhecemos impar na maneira original como ainda hoje nos interroga, ausculta e esclarece.
Assumindo desde sempre um ‘eu’ sujeito, a consciência dentro do texto, Ruy Duarte de Carvalho escreve as circunstâncias inquietantes que vê e de que é informado e que o levam a produzir “mais do que honestos relatórios” a seduzir pela escrita os eventuais consumidores dos seus textos.
[Texto integral aqui]
Antropologia e Literatura: A Proposito e por Causa de Ruy Duarte de Carvalho
[Por Miguel Vale de Almeida - Fevereiro, 2008]
(...)
Onde os antropólogos, sobretudo a partir dos anos oitenta, se concentraram, foi antes na questão da relação entre autoria e autoridade. Afinal de contas, o texto etnográfico e/ou antropológico, dá ou não conta da pluralidade de vozes no terreno, dos conflitos entre elas, reproduz ou não estruturas de autoridade e precedência não só do terreno mas também das relações entre o Ocidente e o Resto, entre a Ciência e os seus “objectos”?
Na página 27 do seu livro mais marcadamente antropológico, Ana a Manda – Os Filhos da rede (sua tese de doutoramento, defendida em 1986 e publicada em 1989), Ruy Duarte de Carvalho escreve: «Nós estamos, do ponto de vista de uma ética profissional e intelectual, do lado daqueles para quem, em relação a um trabalho como este, a noção de autor se torna ambígua desde que o texto integre a participação de outrem.»
(...)
Se a relação entre “Antropologia e Literatura” é como cutucar uma ferida (pessoal até, no caso presente, já que me vejo como amador dos contos e da ficção científica, blogger, cronista político, ensaísta popularizador e, claro, antropólogo), a verdade é que não existe Betadine epistemológico, metodológico, ético ou político que a sare. James Clifford usa como epígrafe de um dos seus textos em The Predicament of Culture versos de William Carlos Williams que aludem a como «os produtos puros enlouqueceram».
É justamente a “impureza” da obra de Ruy Duarte, o seu não privilegiar de uma autoidentificação enquanto antropólogo, a sua fidelidade à autoria literária, que nos permite – a leitores vindos da antropologia como eu – reencontrar a sanidade e assim ver com caleidoscópica clareza a complexidade dos trânsitos culturais em que vivemos. Da obra de Ruy Duarte não transparece a ferida a que aludi. Quem se assume na multiplicidade de géneros e vozes, na hibridez, e no tráfico e trânsito, transcende os próprios termos em que a questão é colocada. A autoria – despida da autoridade da hiperdefinição literária ou antropológica – é, afinal de contas, o que evita a ferida.
[Texto integral aqui]
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