Friday 13 August 2010

Ruy Duarte de Carvalho (R.I.P.)


Hoje continuo a não conseguir andar muito tempo por fora sem devolver-me ao murmúrio de Luanda à noite que sobe das traseiras da minha casa na Maianga, e sem continuar a dar de vez em quando um salto ao Sul, para visitar pastores.

E julgo, chegado a esta altura da vida, não poder deixar de ter que entender que o mundo, por toda a parte e não só aqui, se urde e se produz recorrendo sempre, ou quase sempre, ao uso e ao abuso da boa-fé dos outros. Temo não conseguir nunca chegar, mesmo velhinho, a conformar-me com isso e a tornar-me no sujeito bem acabado, dissimulado, pirata, adaptável e finalmente adaptado que nunca, durante toda a vida, consegui ser.

Mas acho que também aprendi, entretanto, a rir-me de mim mesmo, das minhas incompetências congénitas e do mau-feitio que neste mundo sou evidentemente o único a ter. E tem uns intervalos em que tudo parece ficar virginalmente vivável, bom e bonito, conforme pensa a onça quando, segundo Guimarães Rosa, não teme nada e vai, guiada só pela alma que tem.

Ruy Duarte de Carvalho (1941-2010)



[Biografia aqui - Homenagem aqui]

Hoje continuo a não conseguir andar muito tempo por fora sem devolver-me ao murmúrio de Luanda à noite que sobe das traseiras da minha casa na Maianga, e sem continuar a dar de vez em quando um salto ao Sul, para visitar pastores.

E julgo, chegado a esta altura da vida, não poder deixar de ter que entender que o mundo, por toda a parte e não só aqui, se urde e se produz recorrendo sempre, ou quase sempre, ao uso e ao abuso da boa-fé dos outros. Temo não conseguir nunca chegar, mesmo velhinho, a conformar-me com isso e a tornar-me no sujeito bem acabado, dissimulado, pirata, adaptável e finalmente adaptado que nunca, durante toda a vida, consegui ser.

Mas acho que também aprendi, entretanto, a rir-me de mim mesmo, das minhas incompetências congénitas e do mau-feitio que neste mundo sou evidentemente o único a ter. E tem uns intervalos em que tudo parece ficar virginalmente vivável, bom e bonito, conforme pensa a onça quando, segundo Guimarães Rosa, não teme nada e vai, guiada só pela alma que tem.

Ruy Duarte de Carvalho (1941-2010)



[Biografia aqui - Homenagem aqui]

2 comments:

Koluki said...

Conheci-o, bem no inicio da decada de 80, no seu apartamento da Maianga, com o entao nosso amigo comum David Mestre.
Voltamo-nos a encontrar mais algumas vezes nos anos que se seguiram, tanto em casa do David como no de outros amigos comuns (como a saudosa Ada, uma mulher muito interessante de nacionalidade Suica, com quem eu na altura trabalhava no CICR em Luanda). Infelizmente, tanto o David como a Ada tambem ja' faleceram.
Alguns anos depois, o Luandino Vieira deu-me a ler as opinioes sobre o manuscrito do meu S.O.S. que pedira a alguns escritores, sem lhes revelar a minha identidade.
A do Ruy comecava por pedir desculpas "pelas borras de cafe' no papel" em que escrevia e dizia varias coisas, dentre as quais se destacava: "um poeta capaz de invencao no acto da escrita, com a coragem de penetrar areas defendidas ou minadas por palavreado e retorica anteriores, que faz explodir para fonte do seu futuro trabalho poetico, ou outros futuros - se for pessoa das tuas relacoes, por favor encoraja"...

Obrigada pelo encorajamento Ruy (embora ele ainda nao tenha produzido um outro livro... em parte devido a alguns "desencorajamentos" - um dos quais se viria a manifestar de forma absolutamente inacreditavel ja' em plena decada de 90 tambem naquele mesmo seu apartamento da Maianga... - em parte porque tenho estado demasiado ocupada com os meus "outros futuros"...) e Ate' Sempre!

Koluki said...

E para que fique aqui registado o que, independentemente de quaisquer outras possiveis questoes, eu pensava dele, deixo aqui o seguinte extracto de um comentario em que o mencionava (lamentando apenas te-lo feito num contexto algo conturbado - i.e. num anexo a este post: http://koluki.blogspot.com/2007/04/maka-de-sanzala.html):


(...) Tem graça que ouvi há dias na TSF uma entrevista do Ruy Duarte de Carvalho, uma das poucas pessoas verdadeiramente cultas da autoconvencida ‘intelligentzia’ angolana cada vez menos culta e sem quaisquer possibilidades de alguma vez ser considerada inteligente no mundo global, com ou sem as “suas máscaras da Phwo”, em que ele dizia que, por respeito aos membros desses grupos e às suas culturas jamais, como antropólogo ou poeta, revelaria práticas ou segredos por ele presenciados durante o seu relacionamento com os grupos étnicos com que tem tido contacto ao longo dos anos… presumívelmente, isso incluiria qualquer coisa que tivesse visto por baixo de quaisquer panos… Mas ele é não só uma pessoa adulta, íntegra e responsável, mas também e acima de tudo POETA e ANTROPÓLOGO! (...)