Tuesday, 17 April 2007

MAGAÍÇA... OU "QUANTO CUSTA UMA NOIVA?"




Foto: 'O sol nascendo a Oriente' by Ana Santana

MAGAÍÇA

A manhã azul e ouro dos folhetos de propaganda
engoliu o mamparra,
entontecido todo pela algazarra
incompreensível dos brancos da estação
e pelo resfolegar trepidante dos comboios
Tragou seus olhos redondos de pasmo,
seu coração apertado na angústia do desconhecido,
sua trouxa de farrapos
carregando a ânsia enorme, tecida
de sonhos insatisfeitos do mamparra.

E um dia,
o comboio voltou, arfando, arfando...
oh nhanisse, voltou.
e com ele, magaíça,
de sobretudo, cachecol e meia listrada
e um ser deslocado
embrulhado em ridículo.

Ás costas - ah onde te ficou a trouxa de sonhos, magaíça?
trazes as malas cheias do falso brilho
do resto da falsa civilização do compound do Rand.
E na mão,
magaíça atordoado acendeu o candeeiro,
á cata das ilusões perdidas,
da mocidade e da saúde que ficaram soterradas
lá nas minas do Jone...

A mocidade e a saúde,
as ilusões perdidas
que brilharão como astros no decote de qualquer lady
nas noites deslumbrantes de qualquer City.

(Noemia de Sousa)


A publicacao deste poema, que aqui fiz ha alguns dias, e agora tambem publicado no blog “A Materia do Tempo”, sugeriu-me uma das formas em que a blogosfera pode ser resgatada de uma certa tendencia de se a transformar em lugar de rivalidades, conflitos e “apartheids”.

O facto de o Denudado ter apresentado um breve glossario dos termos usados por Noemia de Sousa neste poema e o ter ilustrado com uma fotografia de “mamparras/magaicas” nas minas da Africa do Sul, sugeriu-me que talvez fosse oportuno ir desengavetar o texto em anexo (aqui), constituido por breves extractos de uma serie, que publiquei no Semanario Angolense (Luanda) em 2002, sobre a Historia Economica da Africa Austral. Nele faco uma breve analise historico-economica dos fluxos de trabalho migrante oscilatorio nas minas da Africa do Sul, de que o “mamparra/magaica” foi e, em grande medida, continua a ser, a figura central.

Com este post pretendo, portanto, contribuir para essa funcao de complementaridade, interaccao e partilha em que a blogosfera pode ser, positiva e produtivamente, usada e, tambem, salientar a funcao de analise e mensagem social que a poesia, quando escrita por poetas atenta(o)s e lucida(o)s, pode ter para o registo, ainda que apenas parcial, pontual e pictorico, da realidade social, economica, cultural e historica em qualquer pais ou regiao do mundo.



Stimela (Hugh Masekela)


“A análise económica, ou mesmo social, do trabalho migrante falhará em revelar o quadro completo dos seus custos em termos de miséria humana. Para apreender essa realidade, temos que ouvir a esposa solitária, a criança insegura... É ao nível familiar que o maior sofrimento é sentido e não nos podemos esquecer que a herança cultural Africana engloba um conceito de família mais abrangente e nobre do que a do Ocidente. A família alargada demonstrou-se uma excelente fonte de segurança para aqueles que, de outro modo, não teriam segurança alguma. O trabalho migrante destrói [esse tecido humano e social], ao retirar por longos períodos, o pai, o irmão, o marido e o amigo... e que ninguém tenha a ilusão de que esses homens podem viver vidas decentes num vacuum sexual.” (Barker: 1970)

“Há muito poucas dúvidas de que se grandes números de mineiros migrantes não especializados e com baixos salários não tivessem sido recrutados em todo o sub-continente, jamais teria havido uma indústria de extracção do ouro na África do Sul. Se depósitos similares aos da África do Sul tivessem sido encontrados na Austrália, no Canada, ou nos EUA, eles teriam certamente ficado por explorar devido à impossibilidade de mobilização da força de trabalho adequada. Ainda hoje, depois dos grandes avanços tecnológicos e da dramática mudança da estrutura de custos da indústria mineira, isso continua a ser verdade.” (Crush et al: 1991)

“De certo modo é até humilhante observar os mineiros a trabalhar... Levanta-se em nós uma momentânea dúvida sobre o nosso próprio status como ‘intelectuais’, ou pessoas superiores em geral. Faz-nos lembrar, pelo menos enquanto olhamos, que é apenas porque esses mineiros transpiram as suas entranhas até à exaustão que as pessoas superiores podem permanecer superiores. Você e eu, o editor do Times Literary Supplement e os poetas, o Arcebispo de Canterbury e o Camarada X, autor de ‘Marxismo para Infantes’ – todos nós devemos realmente a decência comparativa das nossas vidas aos pobres condenados nos subterrâneos... com as suas gargantas cheias de... poeira, erguendo e baixando as suas pás com braços e músculos de ferro” (George Orwell, Down the Mine, 1937)







Foto: 'O sol nascendo a Oriente' by Ana Santana

MAGAÍÇA

A manhã azul e ouro dos folhetos de propaganda
engoliu o mamparra,
entontecido todo pela algazarra
incompreensível dos brancos da estação
e pelo resfolegar trepidante dos comboios
Tragou seus olhos redondos de pasmo,
seu coração apertado na angústia do desconhecido,
sua trouxa de farrapos
carregando a ânsia enorme, tecida
de sonhos insatisfeitos do mamparra.

E um dia,
o comboio voltou, arfando, arfando...
oh nhanisse, voltou.
e com ele, magaíça,
de sobretudo, cachecol e meia listrada
e um ser deslocado
embrulhado em ridículo.

Ás costas - ah onde te ficou a trouxa de sonhos, magaíça?
trazes as malas cheias do falso brilho
do resto da falsa civilização do compound do Rand.
E na mão,
magaíça atordoado acendeu o candeeiro,
á cata das ilusões perdidas,
da mocidade e da saúde que ficaram soterradas
lá nas minas do Jone...

A mocidade e a saúde,
as ilusões perdidas
que brilharão como astros no decote de qualquer lady
nas noites deslumbrantes de qualquer City.

(Noemia de Sousa)


A publicacao deste poema, que aqui fiz ha alguns dias, e agora tambem publicado no blog “A Materia do Tempo”, sugeriu-me uma das formas em que a blogosfera pode ser resgatada de uma certa tendencia de se a transformar em lugar de rivalidades, conflitos e “apartheids”.

O facto de o Denudado ter apresentado um breve glossario dos termos usados por Noemia de Sousa neste poema e o ter ilustrado com uma fotografia de “mamparras/magaicas” nas minas da Africa do Sul, sugeriu-me que talvez fosse oportuno ir desengavetar o texto em anexo (aqui), constituido por breves extractos de uma serie, que publiquei no Semanario Angolense (Luanda) em 2002, sobre a Historia Economica da Africa Austral. Nele faco uma breve analise historico-economica dos fluxos de trabalho migrante oscilatorio nas minas da Africa do Sul, de que o “mamparra/magaica” foi e, em grande medida, continua a ser, a figura central.

Com este post pretendo, portanto, contribuir para essa funcao de complementaridade, interaccao e partilha em que a blogosfera pode ser, positiva e produtivamente, usada e, tambem, salientar a funcao de analise e mensagem social que a poesia, quando escrita por poetas atenta(o)s e lucida(o)s, pode ter para o registo, ainda que apenas parcial, pontual e pictorico, da realidade social, economica, cultural e historica em qualquer pais ou regiao do mundo.



Stimela (Hugh Masekela)


“A análise económica, ou mesmo social, do trabalho migrante falhará em revelar o quadro completo dos seus custos em termos de miséria humana. Para apreender essa realidade, temos que ouvir a esposa solitária, a criança insegura... É ao nível familiar que o maior sofrimento é sentido e não nos podemos esquecer que a herança cultural Africana engloba um conceito de família mais abrangente e nobre do que a do Ocidente. A família alargada demonstrou-se uma excelente fonte de segurança para aqueles que, de outro modo, não teriam segurança alguma. O trabalho migrante destrói [esse tecido humano e social], ao retirar por longos períodos, o pai, o irmão, o marido e o amigo... e que ninguém tenha a ilusão de que esses homens podem viver vidas decentes num vacuum sexual.” (Barker: 1970)

“Há muito poucas dúvidas de que se grandes números de mineiros migrantes não especializados e com baixos salários não tivessem sido recrutados em todo o sub-continente, jamais teria havido uma indústria de extracção do ouro na África do Sul. Se depósitos similares aos da África do Sul tivessem sido encontrados na Austrália, no Canada, ou nos EUA, eles teriam certamente ficado por explorar devido à impossibilidade de mobilização da força de trabalho adequada. Ainda hoje, depois dos grandes avanços tecnológicos e da dramática mudança da estrutura de custos da indústria mineira, isso continua a ser verdade.” (Crush et al: 1991)

“De certo modo é até humilhante observar os mineiros a trabalhar... Levanta-se em nós uma momentânea dúvida sobre o nosso próprio status como ‘intelectuais’, ou pessoas superiores em geral. Faz-nos lembrar, pelo menos enquanto olhamos, que é apenas porque esses mineiros transpiram as suas entranhas até à exaustão que as pessoas superiores podem permanecer superiores. Você e eu, o editor do Times Literary Supplement e os poetas, o Arcebispo de Canterbury e o Camarada X, autor de ‘Marxismo para Infantes’ – todos nós devemos realmente a decência comparativa das nossas vidas aos pobres condenados nos subterrâneos... com as suas gargantas cheias de... poeira, erguendo e baixando as suas pás com braços e músculos de ferro” (George Orwell, Down the Mine, 1937)




4 comments:

Fernando Ribeiro said...

Cara amiga Koluki

É excelente o seu trabalho publicado no Semanário Angolense, sobre a história do desigual relacionamento económico entre Moçambique e a África do Sul, enquadrando-o num relacionamento geograficamente mais vasto, sempre centrado na África do Sul e na sua oligarquia.

Permita-me realçar a primeira citação que trouxe para o seu blog, a do médico sul-africano Barker. Esta citação também se aplica a Angola, como sabe sobejamente, com as suas migrações de trabalhadores forçados (cinicamente chamados "contratados"), tanto os que eram levados para São Tomé e Príncipe, como os que eram movimentados internamente, entre diferentes regiões de Angola. Seria interessante analisar as consequências económicas, sociais, humanas e até psicológicas destas migrações, não só no passado, mas também no presente e mesmo no futuro.

Dentro desta linha, chamo a sua atenção para o artigo que o seu compatriota Upindi Pacatolo, do Lobito, escreveu no seu blog "Ondaka Usongo!" sob o título "Agora é que vão apanhar café!!!", a propósito da forma como a notícia da morte de Jonas Savimbi lhe foi transmitida. Na minha opinião, este artigo dá muito que pensar. Não só explica (pelo menso em parte) o grande apoio de que Savimbi gozou entre os Ovimbundu, como exprime um estado de espírito perturbador e uma desconfiança profunda em relação ao governo de Luanda. Como se verifica no artigo de Pacatolo, esta desconfiança não é uma manifestação de tribalismo, como alguns pensam, porque não sabem o que está por detrás dela.

Koluki said...

Caro Amigo Denudado,

Muito obrigada por este seu enriquecedor comentario.
Obrigada tambem pelo link ao blog do compatriota Upindi Pacatolo que ainda nao conhecia. Gostei muito de ler o artigo dele, como gosto sempre de ler relatos de experiencias pessoais e factuais tal como elas sao vividas e, neste caso particular, sem a mediacao do “conhecimento” adquirido na imprensa, na literatura ou noutros meios de veiculacao/informacao.

Tenho apenas uma reserva quanto ao que ele diz sobre: “No rescaldo da guerra imediatamente a seguir a Independência, entre os anos de 1976 a 1978, houve uma brutal escassez de alimentos e paralização dos campos de algodão e café do norte de Angola. Para fazer face a esse desafio, o governo de Angola reeditou a guerra do Kwata-Kwata. (2) Guerra do Kwata-Kwata: literalmente, guerra do apanha-apanha. Foi desencadeada pelas autoridades coloniais para apanhar camponêses e enviá-los às roças, sobretudo do norte de Angola. As famosas levas de contratados Ovimbundu ou Bailundo;”

Nao pretendendo contradizer as suas fontes, tenho que confessar que me parece bastante questionavel o “facto” de o governo angolano ter “reeditado a guerra do kwata-kwata” para apanhar camponeses para as rocas de café e algodao do norte, durante o periodo 76-78, em que as maiores parcelas do territorio, quer do norte quer do sul, ou estavam sob guerra aberta, ou a viver o seu imediato rescaldo, ou sujeitas a permanentes accoes de guerrilha e as rocas de café e algodao estavam todas virtualmente abandonadas por donos e trabalhadores. Nessas condicoes nao me parece muito credivel que se reeditassem “guerras do kwata-kwata” para as reactivar e, menos ainda, para fazer face a escassez de alimentos no pais e, particularmente, na capital.

Este ultimo, a escassez de alimentos, e’ um facto indesmentivel, mas era suprido, minimamente que fosse, pela importacao, usando sobretudo linhas de credito do Brasil, de Portugal e dos paises do Leste e os rendimentos do petroleo – sector que nunca foi totalmente paralizado pela guerra. Nao me parece fazer muito sentido tentar-se suprir uma escassez alimentar daquela dimensao, que o Pacatolo bem descreve como “brutal”, com café’ e algodao, ou com os rendimentos da sua exportacao que, ‘a altura, era virtualmente impossivel dadas as dificuldades de transporte por estrada das rocas para os portos (isto e’, os que ainda eram acessiveis e nao estavam tambem eles completamente paralizados).

Por outro lado, as “guerras do kwata-kwata” nao foram “desencadeadas pelas autoridades coloniais para apanhar camponêses e enviá-los às roças, sobretudo do norte de Angola.” Nao ponho em causa a possibilidade de essa pratica ter sido usada no periodo colonial pos-escravatura porque nao tenho dados que me permitam faze-lo, mas tenho para mim que nesse periodo o regime colonial ja’ tinha sedimentado mecanismos institucionais para a reproducao do sistema de “contrato” sem necessidade de recorrer a “guerras do kwata-kwata”, a nao ser, possivelmente, em casos pontuais. As “guerras do kwata-kwata” que, por sinal, aqui tambem mencionei na nossa discussao sobre o aniversario da abolicao da escravatura pelos Britanicos, remontam aos sec. XV-XIX, no contexto do comercio transatlantico de escravos e nao se restringiam a “apanha” de membros da etnia Ovimvundu.

Tem toda a razao quanto a citacao do Barker. Sobre isso tenho uma experiencia pessoal marcante: quando eu nasci, o meu pai estava preso pela Pide e, por altura do baptizado da minha irma que aqui postei ha dias, tinha apenas sido recentemente libertado e arranjado o seu primeiro emprego depois da prisao, sendo por isso que ele estava ausente, ao que chamei “razoes ponderosas” naquele post. Isso porque, depois da sua libertacao, como parte da punicao, ele foi expulso do “quadro do funcionalismo do estado portugues” e sem direito a qualquer compensacao ou pensao de reforma. Como enfermeiro qualificado, a mais imediata opcao que lhe restou foi ir trabalhar para as rocas de café, algodao e sisal, sobretudo nas regioes do Kwanza Norte e Sul, para empregadores privados, sobretudo Alemaes. Durante as ferias grandes e pequenas, iamos visita-lo e la pude desde pequena observar as condicoes quase sub-humanas em que viviam os “contratados”…

Dessa experiencia falo brevemente num ensaio que escrevi “A Proposito de Patriotas”, o primeiro livro de Sousa Jamba, que foi publicado na Revista Vertice, Lisboa, 1993 (nao o posso publicar aqui porque nao o tenho em registo electronico). Nesse ensaio tentei justamente fazer o que sugere: “analisar as consequências económicas, sociais, humanas e até psicológicas destas migrações, não só no passado, mas também no presente e mesmo no futuro.” Em resumo, creio ter chegado a conclusoes muito proximas daquelas a que o Pacatolo chegou (sei, certamente, que aquele meu ensaio permitiu uma maior aproximacao de pontos de vista entre mim e o Sousa Jamba) mas com base nao nos motivos imediatos que ele aponta, mas na historia mais longa das relacoes entre Kimbundu e Ovimbundu, desde o periodo pre-colonial ate’ ao fim do periodo colonial, nao escamoteando, no entanto, a tragedia do trabalho “contratado” que, sem duvida, afectou de forma absolutamente desproporcional, em relacao a outras etnias angolanas, as populacoes Ovimbundu.

Raquel Sabino Pereira said...

Aprende-se tanto neste blogue!!!!
Parabéns a todos!!!...

Koluki said...

Obrigada Sailor Girl,

Tambem se aprende imenso no(s) seu(s) blog(s)! Sobre alegria, sobre amizade, sobre solidariedade, sobre sabedoria, sobre conhecimento, sobre compaixao, sobre paixao, enfim, sobre INTELIGENCIA EMOCIONAL, enfim, sobre a VIDA!!!

Um forte abraco!