Saturday, 8 May 2010

Pepetela perante si proprio...*


[...]
Thor sabia estórias. Até mesmo as passadas bem antes de ter nascido e que permaneciam na memória colectiva do Planalto Central como momentos de grande terror, tais as célebres razias dos incomparáveis cavaleiros kuanhama, vindos muito do sul para confiscar gado e mulheres. E gostava de narrar, hábito adquirido no seu terreiro natal em que toda a vida social se passava ao fim de tarde e parte da noite à volta da fogueira, ouvindo os mais velhos e sábios relatar cenas do presente e do passado. Talvez também adivinhando futuros, quem sabe.
[...]
A acácia rubra merece um parágrafo especial e peço licença para o introduzir. A casa nova, onde então habitávamos, tinha sido construída ao lado do antigo leito do rio Corinje. O meu pai era jovem quando desviaram o leito do rio para sul, servindo assim de limite ao território. É da sua recordação os antílopes irem beber água ao Corinje e os leões e onças aproveitarem a carne tentadora. A lenda contava que ao lado do rio, teve lugar uma luta de morte entre dois heróis: um leão de juba farta e acobreada e um homem armado apenas de um punhal. Foi alguma gazela o fruto da disputa? A lenda não reteve a razão. Apenas que o combate foi demorado e terminou com a morte de ambos os adversários. Diz ainda a lenda que o sangue dos dois heróis correu para a depressão onde uma jovem acácia brotava. Alimentada por esse sangue quase sagrado, a árvore ultrapassou as irmãs em altura e deu sempre flores mais encarnadas.
[...]
Por isso é tão complicado responder à questão do como e do quando se faz um escritor. Outros saberão. Prefiro deixar que búzios sejam atirados e os leitores adivinhem ou imaginem. O importante é a delícia e alívio que se tem quando um personagem nos surpreende, se apodera da narrativa e diz, agora sou eu que comando, tu, reles escritor, remete-te ao simples papel de escriba ou oráculo, enquanto eu, o personagem, passo a ditar a ação. Sim, nesse momento há o êxtase do corredor de fundo que ultrapassa as dores, a suprema fadiga, e entra no breve paraíso em que flutua sobre nuvens adocicadas antes do colapso final. Há sempre um colapso, todos o sabemos, mas o que interessa mesmo é o facto de se correr para lá da exaustão e pressentir como poderia ser o paraíso. Tal como escrever e deixar solta a imaginação, mesmo para a mais absurda das estórias. Por muito absurda que seja, nunca ultrapassará certas realidades.


[Texto integral aqui]


*{... ou de como 'a mulemba (acacia?) continua nao explicando o sopro, o vento, tao pouco a lagrima'...}


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White Negritude

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Thor sabia estórias. Até mesmo as passadas bem antes de ter nascido e que permaneciam na memória colectiva do Planalto Central como momentos de grande terror, tais as célebres razias dos incomparáveis cavaleiros kuanhama, vindos muito do sul para confiscar gado e mulheres. E gostava de narrar, hábito adquirido no seu terreiro natal em que toda a vida social se passava ao fim de tarde e parte da noite à volta da fogueira, ouvindo os mais velhos e sábios relatar cenas do presente e do passado. Talvez também adivinhando futuros, quem sabe.
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A acácia rubra merece um parágrafo especial e peço licença para o introduzir. A casa nova, onde então habitávamos, tinha sido construída ao lado do antigo leito do rio Corinje. O meu pai era jovem quando desviaram o leito do rio para sul, servindo assim de limite ao território. É da sua recordação os antílopes irem beber água ao Corinje e os leões e onças aproveitarem a carne tentadora. A lenda contava que ao lado do rio, teve lugar uma luta de morte entre dois heróis: um leão de juba farta e acobreada e um homem armado apenas de um punhal. Foi alguma gazela o fruto da disputa? A lenda não reteve a razão. Apenas que o combate foi demorado e terminou com a morte de ambos os adversários. Diz ainda a lenda que o sangue dos dois heróis correu para a depressão onde uma jovem acácia brotava. Alimentada por esse sangue quase sagrado, a árvore ultrapassou as irmãs em altura e deu sempre flores mais encarnadas.
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Por isso é tão complicado responder à questão do como e do quando se faz um escritor. Outros saberão. Prefiro deixar que búzios sejam atirados e os leitores adivinhem ou imaginem. O importante é a delícia e alívio que se tem quando um personagem nos surpreende, se apodera da narrativa e diz, agora sou eu que comando, tu, reles escritor, remete-te ao simples papel de escriba ou oráculo, enquanto eu, o personagem, passo a ditar a ação. Sim, nesse momento há o êxtase do corredor de fundo que ultrapassa as dores, a suprema fadiga, e entra no breve paraíso em que flutua sobre nuvens adocicadas antes do colapso final. Há sempre um colapso, todos o sabemos, mas o que interessa mesmo é o facto de se correr para lá da exaustão e pressentir como poderia ser o paraíso. Tal como escrever e deixar solta a imaginação, mesmo para a mais absurda das estórias. Por muito absurda que seja, nunca ultrapassará certas realidades.


[Texto integral aqui]


*{... ou de como 'a mulemba (acacia?) continua nao explicando o sopro, o vento, tao pouco a lagrima'...}


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White Negritude

2 comments:

Koluki said...

A proposito do passamento de Saramago e a sua exaltacao da Filosofia “como espaco, lugar, metodo de reflexao” (vide http://koluki.blogspot.com/2010/06/jose-saramago-rip.html), lembrei-me de uma “longa conversa” havida em finais de 2005 no espaco do Angonoticias (aqui: http://www.angonoticias.com/full_headlines.php?id=7831), na qual participei, sob o pseudonimo “Kalu Pura”, com os seguintes dois comentarios; o primeiro em resposta a um comentario (tambem reproduzido abaixo) supostamente assinado por Saramago (ou apenas de alguem citando-o):

Kalu Pura

Nao fosse o assunto que e’ e nao estivesse nele envolvido o nome de um premio Camoes, duvidaria da autenticidade da assinatura de um premio Nobel aposta a um dos comentarios nestas humildes paginas. Mas quaisquer duvidas que porventura ainda me sobrassem seriam desvanecidas pelo conteudo de tal comentario. Saramago faz jus a espinha dorsal do pensamento filosofico que partilha com Pepetela: o materialismo (historico e dialectico) e a negacao da verdade como conceito absoluto (“toda a verdade e’ relativa”). E’ nessa dialectica marxista-leninista que ambos assentam a sua ficcao narrativa, com relativo sucesso literario (aceita a relatividade da critica literaria?), mas com um enorme custo real do ponto de vista humanistico: o da negacao da realidade objectiva do ser humano concreto (este foi, alias, o pecado capital do “socialismo cientifico”). Foi na relativizacao, compartimentacao e atomizacao da VERDADE que lhes permitiu a negacao de “algumas verdades” em favor de “outras” mais suportaveis, que alguns dos nossos intelectuais encontraram respaldo para o que de outro modo seriam, no minimo, sentimentos de culpa insuportaveis. Mas, queira-se ou nao, a VERDADE EXISTE - em particular para os orfaos, pais e irmaos a quem nao se pode simplesmente dizer: e’ mentira, os vossos pais, filhos e irmaos nao foram presos, nem torturados e muito menos mortos! A verdade existe sim e, como diz o ditado popular, tal como o azeite vem sempre ao de cima! Por isso nao me posso conformar com a ideia de que um acontecimento que teve um impacto tao traumatico e devastador sobre a sociedade angolana seja simplesmente enterrado com os seus principais protagonistas, quando centenas, senao milhares, de orfaos, viuvas e um grande numero de familias angolanas continuam sem saber o que e porque realmente aconteceu com os seus entes queridos, ou sequer onde estao os seus ossos, ja para nao falar na simples admissao oficial da sua liquidacao sumaria e na emissao das respectivas certidoes de obito, que sao basicos direitos humanos e de cidadania de todos nos! Para mim, eh precisamente o respeito que devemos a TODOS os mortos do 27 de Maio que exige que a verdade e nada menos do que a verdade venha completamente ao de cima. E nao so o respeito pelos mortos: a construcao de um futuro de paz e harmonia para nos os ainda vivos e para as geracoes dos nossos filhos, netos e bisnetos exige que todos os fantasmas do nosso passado sejam completamente exorcisados e as suas cinzas completamente varridas, sob pena de as almas dos nossos mortos jamais virem a gozar da paz eterna que lhes eh devida! Como nos aconselha o senso comum, ha que enterrar os nossos mortos condignamente, mas a nossa prioridade deve ser cuidar apropriadamente dos vivos, senao viveremos para sempre como mortos-vivos em eterno estado de luto num pais mal assombrado… Agora que a paz institucional entre o MPLA e a UNITA parece ser irreversivel, os acontecimentos do 27 de Maio e todos os contenciosos ainda pendentes da guerra que devastou o pais por decadas que pareciam nao ter fim deveriam sim ser objecto de algo assim como a ‘Comissao para a Verdade e Reconciliacao’ que tanto ajudou a Africa do Sul a enfrentar o seu futuro com optimismo e com espiritos mais ou menos pacificados. E tal evento, que deveria assumir foros de um verdadeiro Komba Ditokwa Nacional, deveria realizar-se mais cedo do que tarde!

[Segue no proximo comentario]

Koluki said...

Kalu Pura

Nas ultimas 2 semanas a Namibia tem sido assolada por uma onda de descoberta de valas comuns (por sinal muito perto da fronteira com Angola) datadas dos anos 80, do periodo deles de "luta de libertacao"... Ha varios anos que varias organizacoes da sociedade civil namibiana vinham reclamando ao governo a instituicao de uma comissao de verdade e reconciliacao, mas este sempre se recusou, em nome de nao "reavivar fantasmas do passado"... A verdade e' que entre as ossadas descobertas ocasionalmente por construtores, ha vitimas de todos os lados e mais alguns: da SWAPO contra militantes seus, do exercito sul-africano contra a SWAPO e tudo a volta, do grupo etnico maioritario da SWAPO contra grupos etnicos minoritarios... enfim! Resultado, a paz podre que tentaram instaurar em vez de abrirem o processo da verdade acabou por rebentar-lhes aos pes e a vista desarmada: alguns jornais publicaram fotografias de ossadas humanas a serem exumadas em praias sob o olhar estupefacto e horrorizado de turistas... os tais que pretendiam atrair varrendo todo o tipo de "lixo" para debaixo dos tapetes! Um espectaculo que poderia bem ter sido evitado, tivesse o governo ouvido o clamor da nacao! Agora, perante a evidencia indesmentivel, a SWAPO ja comeca a dar sinais de comecar a aquiescer a inevitabilidade da VERDADE HISTORICA...


VERDADE

A verdade não existe. Se a verdade existisse, teria de existir sempre e então ter-nos-íamos apercebido de que, além das mudanças de todo o tipo que acontecem, e continuarão a acontecer, haveria qualquer coisa que se manteria imutável, constante, e essa seria a verdade. Não há nenhuma verdade dessas; há muitas verdades e, como eu creio ter escrito alguma vez, as verdades são muitas e têm que lutar umas com as outras e depois logo se vê o que resulta. Resultará uma ou outra verdade mas sempre serão verdades transitórias, que abrem ou fecham caminhos. A verdade com maiúscula, com letra grande, isso não é coisa que exista, embora algumas pessoas, creio, acreditem que sim e vivam ou tentem viver em função disso. Para mim, a verdade não existe... não há verdades históricas e acabou. JOSE SARAMAGO