Saturday 16 June 2007

RECEITA PARA ULTRAPASSAR OS DOMINGOS


Como água dormida de véspera, aqui vos deixo esta receita para amanhã:

“Desce manso à cidade, na hora em que a noite indecisa se embrulha do terceiro pano e de joelhos compõe a cabeleira, retira do rosto os restos de luz e se recolhe tensa das horas por resolver. Não te deixes tentar pelas mãos de cacimbo que, de tão frescas, te poderão recolher, de novo, para o sítio dos sonhos onde as rosas de verdade nos podem explodir no peito.

A noite é enorme e hesita sempre na hora de partir. Os nossos fantasmas, lentos como cobras domésticas, gostam de se plantar – exactamente nesse momento – à beira da nossa condição frágil, rindo e à espera. Toda a gente sabe da sua paciência experimentada. Por isso acorda. Sacode a esteira e enrola-a devagarinho.

(…)

Desce, então, à cidade antes de toda a gente, porque esse é o unico momento em que Luanda se entrega à preguiça e te devolve o rosto, sem pintura, calcinado pelo tempo e ainda assim tão belo, na sua pobreza exposta maltratada pelo sol e pela fome, onde o erosinado casario se estende (a essa hora não parece sofrer de séculos de desorientação e amargura), ainda fechado ao dia, mas já desperto pelo choro de medo das canções de mar e de peixe com que as velhas preparam o caldo do pequeno-almoço. Atenção, estas nunca dormem, parecem ter escapado já à sua condição de dormir e acordar. Esperam, debruçadas na noite, envoltas num longo pano de musgo e capim e entregam aos outros (gente descuidada como tu e como eu) os sonhos que já não são capazes de sonhar.

A nossa cidade anda perdida de si mesma e não é só velhice, é antes um esquecimento que se instalou e a trata mal. Deixou de ser o espaço circular e protector de areia vermelha e súbitas lagoas. A propósito, evita, quando desceres, o Kinaxixi. Não se trata de um problema de sereias, esses seres nem machos nem fêmeas que o habitaram outrora. O problema tem a ver com pássaros que fugiram quase todos e foram inventar silêncio para outros cantos do mundo. Os que ficaram estão enredados nos limos do tempo e fabricam ninhos de seiva, na esperança de não morrerem. Não têm tempo para ti.

Por isso desce e procura as palmeiras. (…) Terás assim que visitar a ilha. Procura os antigos caminhos da água onde ainda podes ver barcos a dormir e demoradas redes postas em descanso por cima da areia. Descobre as marcas dos pés da noite e segue pelas rotas de seda para veres aonde te conduzem. Não digo já, para ser surpresa, e porque língua de coração não se escreve: é oral e perfeita.

(…)

Depois, e de alma lavada, podes voltar para casa. Mistura três colheres de sopa de café arábica (se ainda te sobrou algum do Amboim) com uma de robusta (pode ser de São Tomé) e deita na cafeteira da avó, onde deve já estar a ferver uma água dormida de pelo menos um dia. Acende uma vela branca e bebe até ao fim o café perfumado. Usa uma caneca de esmalte.

Talvez consigas então fechar os olhos, e já não digo dormir, mas entregar-te ao descanso. Os anjos, por essa hora, estão longe e deixaram acesas lamparinas de óleo de palma a marcar os caminhos. A sombra da palmeira maior velará por ti, enquanto deixa fermentar os seus pesados frutos.

É a essa hora que a cidade acorda, quando as mulheres inventam a água e um redemoinho de criancas se espalha respirando fundo a seiva da cidade. Todo o domingo passará por ti sem que o pressintas enquanto, na pá de zinco, alecrim, eucalipto, açucar mascavado e as horas se vão consumir suavemente.”

Extractos de “Receita para ultrapassar os domingos”, in A Cabeça de Salomé (2004), de Ana Paula Tavares.

Ler poema seleccionado de 'Manual para Amantes Desesperados' aqui.


Como água dormida de véspera, aqui vos deixo esta receita para amanhã:

“Desce manso à cidade, na hora em que a noite indecisa se embrulha do terceiro pano e de joelhos compõe a cabeleira, retira do rosto os restos de luz e se recolhe tensa das horas por resolver. Não te deixes tentar pelas mãos de cacimbo que, de tão frescas, te poderão recolher, de novo, para o sítio dos sonhos onde as rosas de verdade nos podem explodir no peito.

A noite é enorme e hesita sempre na hora de partir. Os nossos fantasmas, lentos como cobras domésticas, gostam de se plantar – exactamente nesse momento – à beira da nossa condição frágil, rindo e à espera. Toda a gente sabe da sua paciência experimentada. Por isso acorda. Sacode a esteira e enrola-a devagarinho.

(…)

Desce, então, à cidade antes de toda a gente, porque esse é o unico momento em que Luanda se entrega à preguiça e te devolve o rosto, sem pintura, calcinado pelo tempo e ainda assim tão belo, na sua pobreza exposta maltratada pelo sol e pela fome, onde o erosinado casario se estende (a essa hora não parece sofrer de séculos de desorientação e amargura), ainda fechado ao dia, mas já desperto pelo choro de medo das canções de mar e de peixe com que as velhas preparam o caldo do pequeno-almoço. Atenção, estas nunca dormem, parecem ter escapado já à sua condição de dormir e acordar. Esperam, debruçadas na noite, envoltas num longo pano de musgo e capim e entregam aos outros (gente descuidada como tu e como eu) os sonhos que já não são capazes de sonhar.

A nossa cidade anda perdida de si mesma e não é só velhice, é antes um esquecimento que se instalou e a trata mal. Deixou de ser o espaço circular e protector de areia vermelha e súbitas lagoas. A propósito, evita, quando desceres, o Kinaxixi. Não se trata de um problema de sereias, esses seres nem machos nem fêmeas que o habitaram outrora. O problema tem a ver com pássaros que fugiram quase todos e foram inventar silêncio para outros cantos do mundo. Os que ficaram estão enredados nos limos do tempo e fabricam ninhos de seiva, na esperança de não morrerem. Não têm tempo para ti.

Por isso desce e procura as palmeiras. (…) Terás assim que visitar a ilha. Procura os antigos caminhos da água onde ainda podes ver barcos a dormir e demoradas redes postas em descanso por cima da areia. Descobre as marcas dos pés da noite e segue pelas rotas de seda para veres aonde te conduzem. Não digo já, para ser surpresa, e porque língua de coração não se escreve: é oral e perfeita.

(…)

Depois, e de alma lavada, podes voltar para casa. Mistura três colheres de sopa de café arábica (se ainda te sobrou algum do Amboim) com uma de robusta (pode ser de São Tomé) e deita na cafeteira da avó, onde deve já estar a ferver uma água dormida de pelo menos um dia. Acende uma vela branca e bebe até ao fim o café perfumado. Usa uma caneca de esmalte.

Talvez consigas então fechar os olhos, e já não digo dormir, mas entregar-te ao descanso. Os anjos, por essa hora, estão longe e deixaram acesas lamparinas de óleo de palma a marcar os caminhos. A sombra da palmeira maior velará por ti, enquanto deixa fermentar os seus pesados frutos.

É a essa hora que a cidade acorda, quando as mulheres inventam a água e um redemoinho de criancas se espalha respirando fundo a seiva da cidade. Todo o domingo passará por ti sem que o pressintas enquanto, na pá de zinco, alecrim, eucalipto, açucar mascavado e as horas se vão consumir suavemente.”

Extractos de “Receita para ultrapassar os domingos”, in A Cabeça de Salomé (2004), de Ana Paula Tavares.

Ler poema seleccionado de 'Manual para Amantes Desesperados' aqui.

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