Thursday, 4 January 2007

O LIVRO DOS RIOS

Luandino Vieira apresentou recentemente em Luanda, de onde andava ausente desde 1992, a sua mais recente obra, "O Livro dos Rios" (o primeiro volume de uma trilogia que intitulou `De Velhos Rios e Guerrilheiros`). Fê-lo no jardim da União dos Escritores Angolanos (UEA), tendo afirmado aos presentes: "É um conforto imerecido, esta vossa prova de carinho, estima e compreensão, para não dizer de misericórdia, em relação a vários pecados meus." Luandino referiu-se também, em declarações à imprensa luandense, á sua regeição, em meados deste ano, do Prémio Camões, o maior galardão literário de língua portuguesa. Assim: "As razões que invoquei na altura são as que permanecem, são razões de consciência, de ordem pessoal, não há outra razão." Na altura, houve quem o acusasse de “traição” alegando, entre outras coisas, que deveria ter recebido os 100 mil euros do prémio e doá-lo a causas nobres em Angola… Críticas ressentidas que se repetiram agora por altura do lançamento deste livro em Luanda, tendo havido quem se achasse no direito, em nome dos angolanos, de lhe cobrar explicações pela longa ausência… Em minha opinião, quaisquer que sejam as suas alegadas razões pessoais e de consciência, o Luandino continua a dar sinais de uma humildade e honestidade que nenhum outro dos escritores que foram associados a dita "comissão das lágrimas" do processo 27 de Maio foi capaz de dar, pelo menos públicamente, até agora… E creio que isso deve ser reconhecido. Se ele pede perdão pelos seus pecados, quaisquer que eles sejam, cabe aos angolanos, como bom povo que é e sempre foi, ser magnânime. O Luandino não é propriedade dos angolanos... ele soube apenas, e muito bem, fazer-se filho de Angola e, muito particularmente, de Luanda. Um filho pródigo que regressou a casa e que Luanda deve receber de braços abertos, mesmo que ele volte a partir para onde se sente melhor neste momento... quantos outros filhos de Angola nao o têm feito? Eu, por mim, dou-me por bastante honrada com a dedicatória que me endereçou: "… 'In thy orisons be all my sins remembered!' Só o velho Shakespeare me ajuda neste momento." Porque fala dos tais “pecados” a que públicamente se referiu, menciono-a aqui, onde a língua de Shakespeare não se faz rogada em conceder os seus prêstimos… Não me lembro dos “pecados”, quaisquer que eles tenham sido… Apenas digo: obrigada Luandino.


"Conheci rios. E sonhei um sonho. Peregrinando os rios deste mundo, fui dar a um sítio onde que tinha uma caverna; e me deitei junto com ela para descansar; e, logo-logo, adormeci. E no sono onde que fui, adiantei sonhar nosso rio Kwanza desenhado como era uma jibóia de três caudas... Em quimbundo, assim: Ng'anjiua nzoji, kala kiki:
Mu ku nhunga mu jingiji ja mu ngongo mumu, ngisanga kididi buala o mbonge ia puri; anga ngibokona, ngizeka. O ku kilu ku ngaii, ng'anjiua nzoji. Mu nzoji mumu ngadiangela ku tala o ngiji ietu ia Kwanza ioxindi kala moma ia mikila itatu.
Ngadimuene jingiji. Jingiji ja ukulu, akua-îta, jingiji jakalelaku. Manhinga a menha.
(...) Aditernos rios, águas de sangue."


O livro: O escritor que tão bem nos revelou as múltiplas cidades de Luanda traz‑nos um novo espaço, conduzindo‑nos pelos rios que recortam a memória de um tempo e vão desaguar numa narrativa densa, desconcertante, fabulosa. O estilhaçamento da sintaxe convencional, a presença de neologismos, a incorporação de expressões em quimbundo, a articulação entre as matrizes da tradição e as da modernidade modulam o texto que exprime o compasso desgovernado da memória, marca essencial da obra de José Luandino Vieira.
O confronto entre o dilaceramento e a noção de inteireza que define o percurso de seus melhores personagens atravessa aqui a linguagem, imprimindo‑lhe um movimento em que as elipses se alternam com o curso caudaloso das referências. A imagem da travessia que povoa o texto é senha para o mergulho nessas águas que o autor oferece em mais uma manifestação da sua excepcional capacidade de combinar invenção e resistência.
Contenção e transbordamento — o rio e suas margens — refletem‑se assim numa escrita em que se projeta a história recente de Angola, mas não só. É também de outras crises que O Livro dos Rios se ocupa, abismos da contemporaneidade e problemas que desde tempos imemoriais têm envolvido o homem e mobilizado os grandes escritores.

Rita Chaves
(Universidade de São Paulo)


O autor: José Luandino Vieira. Cidadão angolano pela sua participação no movimento de libertação nacional e contribuição no nascimento da República Popular de Angola. Infância, juventude e estudos primários e secundários em Luanda. Diversas profissões. Preso pela PIDE em 1959 (Processo dos 50). De novo preso (1961) e condenado a 14 anos de prisão e medidas de segurança. Transferido, em 1964, para o Campo de Concentração do Tarrafal, onde passou 8 anos, foi libertado em 1972, em regime de residência vigiada em Lisboa. Iniciou então a publicação da sua obra, na grande maioria escrita nas diversas prisões por onde passou. Membro fundador da União dos Escritores Angolanos, exerceu a função de secretário‑geral desde a sua fundação — 10‑12‑1975 — e em vários mandatos até 1992. (Editorial Nzila)


{Leia aqui uma entrevista de Luandino Vieira sobre o "Livro dos Rios"}
Luandino Vieira apresentou recentemente em Luanda, de onde andava ausente desde 1992, a sua mais recente obra, "O Livro dos Rios" (o primeiro volume de uma trilogia que intitulou `De Velhos Rios e Guerrilheiros`). Fê-lo no jardim da União dos Escritores Angolanos (UEA), tendo afirmado aos presentes: "É um conforto imerecido, esta vossa prova de carinho, estima e compreensão, para não dizer de misericórdia, em relação a vários pecados meus." Luandino referiu-se também, em declarações à imprensa luandense, á sua regeição, em meados deste ano, do Prémio Camões, o maior galardão literário de língua portuguesa. Assim: "As razões que invoquei na altura são as que permanecem, são razões de consciência, de ordem pessoal, não há outra razão." Na altura, houve quem o acusasse de “traição” alegando, entre outras coisas, que deveria ter recebido os 100 mil euros do prémio e doá-lo a causas nobres em Angola… Críticas ressentidas que se repetiram agora por altura do lançamento deste livro em Luanda, tendo havido quem se achasse no direito, em nome dos angolanos, de lhe cobrar explicações pela longa ausência… Em minha opinião, quaisquer que sejam as suas alegadas razões pessoais e de consciência, o Luandino continua a dar sinais de uma humildade e honestidade que nenhum outro dos escritores que foram associados a dita "comissão das lágrimas" do processo 27 de Maio foi capaz de dar, pelo menos públicamente, até agora… E creio que isso deve ser reconhecido. Se ele pede perdão pelos seus pecados, quaisquer que eles sejam, cabe aos angolanos, como bom povo que é e sempre foi, ser magnânime. O Luandino não é propriedade dos angolanos... ele soube apenas, e muito bem, fazer-se filho de Angola e, muito particularmente, de Luanda. Um filho pródigo que regressou a casa e que Luanda deve receber de braços abertos, mesmo que ele volte a partir para onde se sente melhor neste momento... quantos outros filhos de Angola nao o têm feito? Eu, por mim, dou-me por bastante honrada com a dedicatória que me endereçou: "… 'In thy orisons be all my sins remembered!' Só o velho Shakespeare me ajuda neste momento." Porque fala dos tais “pecados” a que públicamente se referiu, menciono-a aqui, onde a língua de Shakespeare não se faz rogada em conceder os seus prêstimos… Não me lembro dos “pecados”, quaisquer que eles tenham sido… Apenas digo: obrigada Luandino.


"Conheci rios. E sonhei um sonho. Peregrinando os rios deste mundo, fui dar a um sítio onde que tinha uma caverna; e me deitei junto com ela para descansar; e, logo-logo, adormeci. E no sono onde que fui, adiantei sonhar nosso rio Kwanza desenhado como era uma jibóia de três caudas... Em quimbundo, assim: Ng'anjiua nzoji, kala kiki:
Mu ku nhunga mu jingiji ja mu ngongo mumu, ngisanga kididi buala o mbonge ia puri; anga ngibokona, ngizeka. O ku kilu ku ngaii, ng'anjiua nzoji. Mu nzoji mumu ngadiangela ku tala o ngiji ietu ia Kwanza ioxindi kala moma ia mikila itatu.
Ngadimuene jingiji. Jingiji ja ukulu, akua-îta, jingiji jakalelaku. Manhinga a menha.
(...) Aditernos rios, águas de sangue."


O livro: O escritor que tão bem nos revelou as múltiplas cidades de Luanda traz‑nos um novo espaço, conduzindo‑nos pelos rios que recortam a memória de um tempo e vão desaguar numa narrativa densa, desconcertante, fabulosa. O estilhaçamento da sintaxe convencional, a presença de neologismos, a incorporação de expressões em quimbundo, a articulação entre as matrizes da tradição e as da modernidade modulam o texto que exprime o compasso desgovernado da memória, marca essencial da obra de José Luandino Vieira.
O confronto entre o dilaceramento e a noção de inteireza que define o percurso de seus melhores personagens atravessa aqui a linguagem, imprimindo‑lhe um movimento em que as elipses se alternam com o curso caudaloso das referências. A imagem da travessia que povoa o texto é senha para o mergulho nessas águas que o autor oferece em mais uma manifestação da sua excepcional capacidade de combinar invenção e resistência.
Contenção e transbordamento — o rio e suas margens — refletem‑se assim numa escrita em que se projeta a história recente de Angola, mas não só. É também de outras crises que O Livro dos Rios se ocupa, abismos da contemporaneidade e problemas que desde tempos imemoriais têm envolvido o homem e mobilizado os grandes escritores.

Rita Chaves
(Universidade de São Paulo)


O autor: José Luandino Vieira. Cidadão angolano pela sua participação no movimento de libertação nacional e contribuição no nascimento da República Popular de Angola. Infância, juventude e estudos primários e secundários em Luanda. Diversas profissões. Preso pela PIDE em 1959 (Processo dos 50). De novo preso (1961) e condenado a 14 anos de prisão e medidas de segurança. Transferido, em 1964, para o Campo de Concentração do Tarrafal, onde passou 8 anos, foi libertado em 1972, em regime de residência vigiada em Lisboa. Iniciou então a publicação da sua obra, na grande maioria escrita nas diversas prisões por onde passou. Membro fundador da União dos Escritores Angolanos, exerceu a função de secretário‑geral desde a sua fundação — 10‑12‑1975 — e em vários mandatos até 1992. (Editorial Nzila)


{Leia aqui uma entrevista de Luandino Vieira sobre o "Livro dos Rios"}

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