Wednesday 3 January 2007

O IMAGINÁRIO BANTU DA LITERATURA ANGOLANA (I)

Por Norberto Costa*


“A cultura angolana é africana”,
Agostinho Neto




Contrariamente ao que pretendem fazer convencer alguns, sem sucesso, o imaginário indígena brasileiro, embora marginalizado, é basicamente índio. A dignificação do negro, agrupamento humano de origem alógena, na literatura brasileira é um fenómeno recente, mais a mais, na telenovela, em que ainda aparece a fazer os papéis mais baixos reservados na escada social, - moleque ou doméstica.
Vale recordar que, só com a Semana da Arte Moderna em 1922 é que o negro brasileiro conquistou o seu papel de sujeito na literatura brasileira.
Pretender o contrário para a literatura angolana é falsear a evolução do fenómeno literário angolano, como procuraremos demonstrar à luz da raiz da sua cultura. Ou seja, trago o assunto doutro modo: “in limini”, o angolano assume-se como sujeito da sua literatura no conflito civilizacional entre o colono e o colonizado. A literatura angolana emerge da manifestação inequívoca deste direito à diferença, uma identidade literária distinta da potência colonial, como uma reacção ao labéu racista da inferioridade congenital do negro angolano, será estribado na polémica do “A voz de Angola clamando no deserto”, em 1902. “Mutatis mutandis”, já vai mais de um século, e a história parece querer repetir-se a todo gás e a todo tempo...

O imaginário angolano é, primacialmente, veiculado nas línguas maternas angolanas de origem bantu, cujas ocorrências são detectadas em empréstimos e coloquiasmos embebidos na literatura angolana, para não falarmos dos provérbios, fábulas, contos e adivinhas, recolhidas e trabalhadas por Óscar Ribas, Raúl David, Costa Andrade, S. Cacueji, Rosário Marcelino, etc, ou mesmo atravessados nos textos narrativos e poéticos de Agostinho Neto, Viriato da Cruz, António Jacinto. O pregão e o drama do “modus vivendi” da quitandeira, metonímia do sofrer colectivo (lutando pela vida), é paradigmático nestes autores, bem como enquanto cultora e transmissora dos valores antigos de geração para geração, veiculados por via da oralidade.
Jofre Rocha, Jorge Macedo, Timóteo Ulika, expressamente em “Kandudu”, sem esquecer os prosadores e poetas da nova fornada despoletada nos anos 80, nomeadamente, António Fonseca, recolhendo peças da oralidade kikongo e não só, Jacinto de Lemos, este resgata os coloquialismos dos musseques, bebendo empréstimos linguísticos decorrentes da interpenetração idiomática entre a primeira e segunda línguas. O mesmo ocorre com outros poetas como Panguila, Curry Duval, Lopito Feijó, Luís Kandjimbo e dos também ficcionistas Cikakata Mbalundu e Rosária da Silva e Miguel Júnior, este último no seu texto narrativo “kikinhas da fonseca”, cuja indumentária, autêntico modelo de representação cultural e simbólica dos ilhéus, do “hinterland” de Luanda, tende a desaparecer, daí que os escritores e demais homens de cultura deverão curar da sua reabilitação e preservação.
A contribuição desses e outros autores não se esgotam no âmbito sócio-linguístico, assim sendo, fazem apelo ao ambiente e espaço tributário do nosso contexto “local”, geografia física e emocional que presidem o aludido imaginário identitário.

A literatura angolana é uma expressão da cultura angolana e africana, pois, por mais que doa a muito boa gente em “crise permanente de identidade”, a literatura angolana não é resultante da cultura portuguesa, embora seja primacialmente, não exclusivamente, cultivada em língua portuguesa. Esta é devedora do contexto plurilinguístico e multicultural das suas ocorrências em Angola, que se distingue e contradistingue do vernáculo falado em Portugal. Mesmo em Portugal, a língua não ocorre da mesma maneira em Trás os Montes, em Setúbal ou em Belém e no Algarve. Basta ver que enquanto uns falam vinho outros falam binho; enquanto outros falam Bié outros ainda falariam Vié, o que já deu motivo para “trazer água na barba” ou “pôr as barbas de molho, quando a palhota do vizinho estiver a arder”, - provérbios que dizem respeito ao imaginário português e que presidiriam o imaginário colonial ou neocolonial nos dias que correm. De resto, o imaginário português será o filão espiritual que enforma a sua cultura, substracto em que assentará a literatura portuguesa e seus afluentes. Disso se ocupara com proficiência e autoridade o pensador português Eduardo Lourenço. Convenhamos ainda que, a literatura portuguesa será aquela em que se deverá encaixar a literatura exótica cultivada por colonos ou neo-colonos em Angola. O caso de Geraldo Bessa Victor e companhia é paradigmático.
Nestes termos, a literatura angolana, apesar de exercitada maioritariamente em Português, traz no seu susbtracto a cultura angolana, cuja matriz é africana e bantu. A literatura angolana será, por maioria de razão, representada simbolicamente por aquela franja que se revê basicamente nesta matriz bantu, tudo resto será subsidiário e periférico, e qualquer tentativa de colocar um sub-grupo marginal (no sentido antropológico do termo) ou que se assume como “guetho” sócio-linguístico, cultural ou rácico no seu centro, estará viciada e peca por defeito ou por excesso (dependendo do julgamento de valor de cada um), `a partida , reflectindo uma profunda crise de identidade cultural, geradora de conflitos ainda que latentes.


* Poeta, Jornalista, Ensaista e Critico Literario Angolano
Por Norberto Costa*


“A cultura angolana é africana”,
Agostinho Neto




Contrariamente ao que pretendem fazer convencer alguns, sem sucesso, o imaginário indígena brasileiro, embora marginalizado, é basicamente índio. A dignificação do negro, agrupamento humano de origem alógena, na literatura brasileira é um fenómeno recente, mais a mais, na telenovela, em que ainda aparece a fazer os papéis mais baixos reservados na escada social, - moleque ou doméstica.
Vale recordar que, só com a Semana da Arte Moderna em 1922 é que o negro brasileiro conquistou o seu papel de sujeito na literatura brasileira.
Pretender o contrário para a literatura angolana é falsear a evolução do fenómeno literário angolano, como procuraremos demonstrar à luz da raiz da sua cultura. Ou seja, trago o assunto doutro modo: “in limini”, o angolano assume-se como sujeito da sua literatura no conflito civilizacional entre o colono e o colonizado. A literatura angolana emerge da manifestação inequívoca deste direito à diferença, uma identidade literária distinta da potência colonial, como uma reacção ao labéu racista da inferioridade congenital do negro angolano, será estribado na polémica do “A voz de Angola clamando no deserto”, em 1902. “Mutatis mutandis”, já vai mais de um século, e a história parece querer repetir-se a todo gás e a todo tempo...

O imaginário angolano é, primacialmente, veiculado nas línguas maternas angolanas de origem bantu, cujas ocorrências são detectadas em empréstimos e coloquiasmos embebidos na literatura angolana, para não falarmos dos provérbios, fábulas, contos e adivinhas, recolhidas e trabalhadas por Óscar Ribas, Raúl David, Costa Andrade, S. Cacueji, Rosário Marcelino, etc, ou mesmo atravessados nos textos narrativos e poéticos de Agostinho Neto, Viriato da Cruz, António Jacinto. O pregão e o drama do “modus vivendi” da quitandeira, metonímia do sofrer colectivo (lutando pela vida), é paradigmático nestes autores, bem como enquanto cultora e transmissora dos valores antigos de geração para geração, veiculados por via da oralidade.
Jofre Rocha, Jorge Macedo, Timóteo Ulika, expressamente em “Kandudu”, sem esquecer os prosadores e poetas da nova fornada despoletada nos anos 80, nomeadamente, António Fonseca, recolhendo peças da oralidade kikongo e não só, Jacinto de Lemos, este resgata os coloquialismos dos musseques, bebendo empréstimos linguísticos decorrentes da interpenetração idiomática entre a primeira e segunda línguas. O mesmo ocorre com outros poetas como Panguila, Curry Duval, Lopito Feijó, Luís Kandjimbo e dos também ficcionistas Cikakata Mbalundu e Rosária da Silva e Miguel Júnior, este último no seu texto narrativo “kikinhas da fonseca”, cuja indumentária, autêntico modelo de representação cultural e simbólica dos ilhéus, do “hinterland” de Luanda, tende a desaparecer, daí que os escritores e demais homens de cultura deverão curar da sua reabilitação e preservação.
A contribuição desses e outros autores não se esgotam no âmbito sócio-linguístico, assim sendo, fazem apelo ao ambiente e espaço tributário do nosso contexto “local”, geografia física e emocional que presidem o aludido imaginário identitário.

A literatura angolana é uma expressão da cultura angolana e africana, pois, por mais que doa a muito boa gente em “crise permanente de identidade”, a literatura angolana não é resultante da cultura portuguesa, embora seja primacialmente, não exclusivamente, cultivada em língua portuguesa. Esta é devedora do contexto plurilinguístico e multicultural das suas ocorrências em Angola, que se distingue e contradistingue do vernáculo falado em Portugal. Mesmo em Portugal, a língua não ocorre da mesma maneira em Trás os Montes, em Setúbal ou em Belém e no Algarve. Basta ver que enquanto uns falam vinho outros falam binho; enquanto outros falam Bié outros ainda falariam Vié, o que já deu motivo para “trazer água na barba” ou “pôr as barbas de molho, quando a palhota do vizinho estiver a arder”, - provérbios que dizem respeito ao imaginário português e que presidiriam o imaginário colonial ou neocolonial nos dias que correm. De resto, o imaginário português será o filão espiritual que enforma a sua cultura, substracto em que assentará a literatura portuguesa e seus afluentes. Disso se ocupara com proficiência e autoridade o pensador português Eduardo Lourenço. Convenhamos ainda que, a literatura portuguesa será aquela em que se deverá encaixar a literatura exótica cultivada por colonos ou neo-colonos em Angola. O caso de Geraldo Bessa Victor e companhia é paradigmático.
Nestes termos, a literatura angolana, apesar de exercitada maioritariamente em Português, traz no seu susbtracto a cultura angolana, cuja matriz é africana e bantu. A literatura angolana será, por maioria de razão, representada simbolicamente por aquela franja que se revê basicamente nesta matriz bantu, tudo resto será subsidiário e periférico, e qualquer tentativa de colocar um sub-grupo marginal (no sentido antropológico do termo) ou que se assume como “guetho” sócio-linguístico, cultural ou rácico no seu centro, estará viciada e peca por defeito ou por excesso (dependendo do julgamento de valor de cada um), `a partida , reflectindo uma profunda crise de identidade cultural, geradora de conflitos ainda que latentes.


* Poeta, Jornalista, Ensaista e Critico Literario Angolano

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