1. Antes de mais, tenho que registar aqui o meu profundo suspiro de alivio por estas eleicoes nao terem descambado em violencia descontrolada, nem em interminaveis disputas quanto a sua credibilidade, apesar das admitidas insuficiencias e irregularidades pontuais que se verificaram e a que varios observadores internacionais aludiram (lamentando apenas que tais contratempos, nao tendo posto em causa a validade do processo eleitoral no seu todo, puseram de certo modo em causa a afirmacao do Presidente no discurso de abertura da campanha eleitoral, segundo a qual “Angola pode dar um exemplo ao nosso continente e ao mundo em geral, sobre a forma de realizar eleições democráticas, livres e transparentes”): UUUFFFFFFFFFFFF!!!!!!!!!!
2. Tendo suspirado a contento, deixem-me agora falar do meu descontentamento perante os resultados que se teem vindo a desfraldar nas ultimas horas. Descontentamento porque? Porque, nao sendo militante nem simpatizante de nenhum partido, esperava, e desejava, um maior equilibrio dos resultados, senao exclusivamente entre o MPLA e a UNITA, pelo menos entre o partido da situacao e o total da oposicao. Ora, pelos resultados provisorios, que nada deixa prever se venham a alterar significativamente ate’ que a contagem final seja divulgada e homologada, estes revelam uma esmagadora victoria do partido da situacao e um virtual eclipse da oposicao – um resultado muito pior para esta do que o que tera’ obtido em 1992, particularmente no que a UNITA diz respeito.
3. Varios terao sido os factores determinantes de tais resultados, dos quais alguns se apresentam de imediata identificacao: i) a vantagem comparativa do MPLA em termos de meios materiais e financeiros, controlo da imprensa estatal e dos circulos de influencia a varios niveis do poder e a manipulacao do processo eleitoral que tal vantagem lhe tera’ possibilitado; ii) a falta de coerencia do(s) discurso(s) da oposicao, nao so’ devido a multiplicidade de partidos – a qual apenas foi mitigada a poucas semanas do acto eleitoral, quando o recem-constituido Tribunal Constitucional os passou a pente fino e aprovou apenas 14 dos potenciais concorrentes –, mas tambem, e sobretudo, devido a falta de coerencia interna desses partidos: praticamente todos registaram nos ultimos anos episodios de dissencao e cisao, com especial relevo para os dezasseis “deputados renegados” da UNITA e as fissuras nela criadas pelo (des)posicionamento partidario de lideres como Chivukuvuku ou Valentim; iii) o factor ‘experiencia’ (indisputavel?) por parte dos detentores do poder ha’ mais de 30 anos, aliado ao factor ‘habituacao’ de um eleitorado que tera’ decidido preferir “o diabo que ja’ conhece”.
4. Entre a oposicao, pelo menos um partido tera’ escapado a imagem geral de falta de coesao interna, disputas pela lideranca e (quase?) exclusiva preocupacao com as benesses materiais e financeiras do poder, que caracterizou nao poucos dos seus companheiros da oposicao durante a longa travessia no deserto desde as legislativas de 1992: a Frente para a Democracia (FpD). Mas se essa tera’ sido a sua
bendicao, tambem tera’ sido a sua
maldicao. Porque? Porque, dadas as expectativas que gerou, em particular entre a elite urbana de Luanda, e a forma como ela propria se projectou nos ultimos tempos como “terceira forca” ou “partido charneira”, a FpD surge como a grande derrotada destas eleicoes, pelo menos a julgar pelos resultados ate’ agora divulgados (em decimo lugar no momento em que escrevo). Ora, esta particular “derrota” da FpD leva-me a tecer algumas consideracoes sobre o que realmente esteve em causa nestas eleicoes.
5. Antes de entrar propriamente em tais consideracoes (que, por imposicoes do
timing e da distancia em que as teco, serao necessariamente tao provisorias quanto os resultados das eleicoes divulgados ate’ agora)* importa olhar um pouco mais atentamente para quem votou nestas legislativas. Foram os Angolanos (ou parte deles residentes no pais). E quem sao os Angolanos? Em tracos gerais, nunca e’ demais nota-lo, sao um povo que foi colonizado pelo pais menos desenvolvido da Europa Ocidental durante boa parte dos ultimos 5 seculos, que lutou (ou pelo menos parte dele) pela obtencao da sua independencia politica durante boa parte dos ultimos 50 anos, que se viu envolvido numa guerra fratricida, alimentada parcialmente por potencias estrangeiras, e em particular pelos protagonistas da Guerra Fria, durante boa parte dos ultimos 30 anos e que foi agora pela primeira vez as urnas 16 anos depois de umas eleicoes inconclusivas e com resultados desastrosos. Em suma, para la’ da exuberancia e do ‘bravado’ que os nossos brilharetes evidenciam – nos campos de futebol e de basquetebol, nas pistas de danca e, mais recentemente, nas exibicoes novo-riquistas dos novos edificios e aquisicoes materiais e nas estatisticas resultantes do
output dos nossos pocos de petroleo –, um povo brutalizado e traumatizado por toda a sorte de violencias e adversidades, as quais tiveram profundos impactos materiais, psicologicos e espirituais nas suas vidas quotidianas e na forma como tendem a perspectivar o seu futuro. Impactos esses que, embora se pretendam disfarcar por tras do tal ‘bravado’ e exuberancia, se revelam amiude na inseguranca, frequentemente mascarada de arrogancia (que, a par de uma doentia subserviencia a tudo quanto seja estrangeiro, particularmente se europeu ou brasileiro, quantas vezes se traduz na mais flagrante falta de solidariedade, cortesia e respeito mutuo entre compatriotas e em varios graus de complexos de inferioridade e/ou de superioridade que invariavelmente conduzem a accoes destrutivas ‘do outro’, particularmente se tal 'outro' nao detem uma posicao qualquer de poder na sociedade local ou, seja por que razao for, seja parte da Diaspora, espelhando ainda uma certa psicose de guerra fratricida permanente…), com que os Angolanos em geral, desde as chamadas “massas populares” as chamadas "elites", de esquerda ou de direita, se comportam na sua vida social aos mais diversos niveis e exercem as suas escolhas, desde as mais triviais, as mais importantes e decisivas como, neste caso, as eleicoes.
6. Foi, pois, esse povo que produziu os resultados eleitorais que temos observado nas ultimas horas. Foi um povo, qual “Teresa Baptista” de Jorge Amado, cansado de guerra; um povo em busca de seguranca e da concretizacao, de forma observavel, de aspiracoes e necessidades materiais, psicologicas e espirituais imediatas e nao de promessas longinquas e impalpaveis; um povo que, como notei acima, parece ter preferido escolher, entre varios possiveis, “o diabo que ja’ conhece”. Poe-se, entao, uma dupla questao incontornavel: onde e’ que o MPLA foi buscar tanta credibilidade para ser julgado capaz de conceder seguranca, mitigar carencias, concretizar aspiracoes e satisfazer necessidades que, quanto muito, apenas tera’ contribuido para agravar durante a maior parte dos ultimos 30 anos e porque que a oposicao, em face de tais carencias, necessidades e aspiracoes nao foi capaz de as capitalizar em seu favor?
7. Responder cabalmente a tal questao e’ um desafio de alta ordem que, contudo, creio poder ser simplificado ao essencial e reduzido a algumas constatacoes basicas: i) mais do que tudo, a maioria do eleitorado tera’ priorizado, entre as suas expectativas e aspiracoes, a necessidade de estabilidade politica e normalizacao institucional no pais, antes de apostar decididamente na mudanca do status-quo; ii) o partido da situacao tera’ sabido capitalizar a sua experiencia de decadas no poder, reforcando-a em vesperas de eleicoes com uma profusao de inauguracoes de novos empreendimentos imobiliarios e infrastruturais e promessas (crediveis?) de os multiplicar nos proximos anos; iii) a oposicao nao esteve a altura nem das expectativas e aspiracoes da grande maioria do eleitorado, nem do
challenge do partido da situacao (e aqui ha’ que notar que, se JES
se afirmou e se comportou como um “decimo segundo jogador em campo marcando golos fora de jogo” ou como “um treinador ou arbitro que entra em campo para marcar o
penalty decisivo a favor de uma das equipas”, nada faria supor de antemao que a sua entrada em campo viria a revelar-se necessariamente uma vantagem para a sua equipa e… tudo parece indicar que ainda nao apareceu entre os lideres da oposicao um
challenger capaz de o por definitivamente fora de campo – mas isso e’ uma conversa mais la’ para o proximo ano).
8. Em particular, a FpD parece nao ter conseguido destrincar, aos olhos de grande parte do eleitorado, aquela
fine line que separa um “partido com um numero significativo de intelectuais” de um “partido elitista”. Isto e’, embora se tenha multiplicado em discursos mobilizadores da sociedade civil e em accoes de solidariedade para com alguns dos segmentos populacionais mais vitimizados pelo poder (desde os contestatarios de Cabinda, aos desalojados da Boavista, passando pela Diaspora impedida de votar), tera’ desconseguido engajar completa e decisivamente quer a sociedade civil (muito provavelmente por significativos sectores desta ainda se considerarem membros da “grande familia”), quer “as massas populares” de que tantas vezes se tem manifestado como porta-voz (as quais, muito provavelmente lhes terao agradecido a simpatia e o apoio, mas nao passaram por isso a identificar-se com eles ao ponto de votar neles), quer a generalidade dos "diasporenses" (no caso destes, fundamentalmente, por, para la' de ter tentado obter dividendos politicos dos seus varios descontentamentos, pouco ou nada ter avancado no sentido de propor solucoes viaveis para um dos seus maiores anseios: o regresso a patria, com dignidade). Tera’ tambem, apesar de nao se ter rogado, durante a campanha, a fazer amplo alarde do peso dos seus intelectuais, falhado em desbancar, com argumentos suficientemente crediveis, inteligiveis e incontestaveis, o grande trunfo do partido no poder: o real crescimento do PIB e a alegada “estabilidade macro-economica” observados nos ultimos anos e que “apenas a sua equipa economica supostamente sera’ capaz de continuar a proporcionar ao pais”. Tendo sido tal falha tambem devida, em grande medida, a gritante falta de cultura do debate que caracteriza a sociedade angolana em geral, a qual, por sua vez, tem muito a ver com a inseguranca de que falo acima.
9. Nao menos importante, pelo que pude observar, nao so’ do acompanhamento que tenho feito ao longo dos anos, como dos ecos que me foram chegando do terreno ao longo desta campanha e de alguns dos seus posicionamentos registados na blogosfera, a FpD, tal como alguns dos varios grupos de elite que ao longo da historia do MPLA dele se desafectaram por uma razao ou por outra, evidenciou uma caracteristica que tem marcado geralmente alguns desses grupos: um radicalismo (embora raramente assumido abertamente) dito “de esquerda” em termos politico-ideologicos e de ideais economicos, associado a um conservadorismo marcadamente “de direita” e, no limite, de matizes a rocar o puro reaccionarismo (quando nao o mais despudorado neocolonialismo e racismo - em exacta equivalencia ao dito "
endocolonialismo" de que alguns acusam o partido no poder), em termos socio-culturais. So’ para dar um exemplo, um dos
claims que fez a saciedade durante a campanha foi a sua “preocupacao com as questoes do genero”. No entanto, nao me dei conta, quer em termos de propostas concretas de politica, quer em termos de demonstracoes praticas, de uma particular sensibilidade desse partido em relacao a tais questoes. Em suma, a FpD, salvaguardados todos os seus indiscutiveis meritos relativos, parece ser um partido ainda em busca de um equilibrio satisfatorio entre o populismo e o programatismo, o dogmatismo e o pragmatismo, a retorica politica e a formulacao de politicas, a teoria e a pratica, enfim, entre o ideal e o real. E essa, quanto a mim, a razao fundamental para a sua “derrota” relativa, enquanto partido oposicionista mais promissor ate’ as vesperas destas eleicoes.
10. Do que vai dito resta-me uma consolacao: se a real expressao politica actual dos varios partidos da oposicao e’ a que os resultados destas legislativas revelam (e nunca e’ demais repeti-lo: apesar de todas as “trafulhas” que o partido da situacao possa ter feito para garantir a sua victoria, nada garantiria ou deixaria prever uma victoria tao retumbante como a que se vem desenhando desde o inicio da contagem dos votos), entao e’ bom que eles se mantenham na oposicao por pelo menos os proximos quatro anos, assumindo que terao a necessaria maturidade como partidos e responsabilidade como Angolanos para desses resultados retirarem as devidas licoes e ilacoes e nao cometerem os mesmos erros na caminhada para as proximas legislativas. Porque restam-me poucas duvidas de que estes resultados, mais do que um voto de confianca na situacao, revelam um voto de desconfianca na oposicao!