Como
aqui anunciado, foram lancados em Luanda, na quinta-feira que passou, mais dois volumes de "Um Amplo Movimento", de Lucio Lara. O lancamento coincidiu com a apresentacao ao publico da
Associacao e Centro de Documentacao Tchiweka, que tambem abriu recentemente
este portal na internet.
O
Jornal de Angola (JA)noticiou assim o evento:
"O anfiteatro da Faculdade de Arquitectura acolhe(u) a sessão de lançamento do segundo e terceiro volumes da obra intitulada "Um amplo movimento –Itinerário do MPLA através de documentos de Lúcio Lara ". Trata-se de um trabalho iniciado há cerca de dez anos por Ruth, esposa e companheira de Lúcio Lara, com a publicação do primeiro volume em 1998. Depois da morte de Ruth Lara, também ela figura ligada à génese do MPLA, o projecto foi retomado pela filha Wanda, sob o apadrinhamento da Africa Group da Suécia e do Instituto Nórdico de Estudos Africanos. São documentos e cartas de extrema valia para quem esteja interessado em descodificar alguns dos enigmas mais persistentes da história do maior partido político de Angola, tais como a expulsão de Matias Miguéis, José Bernardo Domingos e Viriato da Cruz, em 1963, a fuga de Agostinho Neto para o Reino de Marrocos, em 1962, e também perceber alguns dos episódios da luta de libertação nacional no período de 1961 a 1964."
Wanda Lara, coordenadora do projecto, afirmou em entrevista ao
JA:
"Desejo que as pessoas tenham interesse
pelos livros e pelos documentos nele
inseridos. E que de alguma forma isso sirva
não só para que as pessoas que
participaram na luta de libertação, quer na
clandestinidade, quer na luta armada,
escrevam as suas memórias"
(...)
Penso que dependendo de quem vai ler,
um historiador, um estudante de Direito,
um interessado pela história de Angola,
cada um vai retirar sempre alguma coisa
diferente. Uns vão gostar e outros não. As
coisas têm sempre dois ou mais lados."
rememora experiencias de vida que alguns dos documentos ora publicados lhe evocam:
"Eu nasci em 1956, no ano do famoso manifesto do MPLA, e de facto há muitas coisas de que me lembro perfeitamente e que estão relacionadas com momentos importantes que nós tivemos ao longo da nossa vida. Eu era miúdo quando cheguei a Guiné-Conacry, não lembro de nada do que se passou antes da ida a Conacry, da saída de Portugal, a ida para a Alemanha, a ida ao Reino de Marrocos, mas de Conacry sim, até porque as fotografias ajudam nos a lembrar de coisas. Lembro-me de Amílcar Cabral e sua família. Da filha de Amílcar Cabral, com quem brincava, e do filho de Aristides Pereira, lembro-me perfeitamente de ter ficado em casa de Hugo de Menezes. Lembro-me do momento em que nós saímos de Conacry para Léopoldville, quem nos acompanhou até ao aeroporto foi Amílcar Cabral, e lembro porque inclusivamente ele me ofereceu um relógio. (…) O relógio devia ter vindo lá da Checoslováquia. Mas sei que era tão bom que quando cheguei a Léopoldville já não funcionava (risos). Durou apenas a viagem de avião até Brazzaville e depois de barco para Léopoldville. Mas foi o primeiro relógio da minha vida. Se hoje os relógios se vendem em qualquer canto, naquela altura um relógio era uma relíquia.
Quando chegámos a Léopoldville foi em plena crise com o Viriato, onde o MPLA estava para ser expulso de Léopoldville. O velho (Lúcio Lara) e o Presidente Neto já haviam sido até detidos por algum tempo pelas autoridades congolesas e acabámos por voltar outra vez a Brazzaville. Ficámos poucos dias em Léopoldville e quando regressámos a Brazzaville havia a revolução Brazzaville, as famosas "Três Gloriosas", no mês de Agosto. Portanto, vivemos tudo, evidentemente que muito jovens, não entendendo bem o que se passava, mas são coisas que nos marcaram profundamente. Há muita coisa que está aí que acompanhámos. Por exemplo, aí no livro aparece uma fotografia em que já éramos chamados 'kudianguelas' (naquele tempo não se chamava pioneiros). Portanto, os jovens, miúdos, kudianguelas, que estávamos em Brazaville naquele tempo, fomos organizados para cantarmos o primeiro hino do MPLA. Nestes documentos vem quando é que apareceu o hino e quem foi o autor do hino.
Uma questão importante que estes documentos vêm clarificar é, por exemplo, a de saber de quem foi a iniciativa de organizar a fuga de Agostinho Neto. Se foi do Partido Comunista Português ou se partiu mesmo a nível interno, da direcção do MPLA. Outra questão tem a ver com a crise com Viriato da Cruz. Nos livros tem correspondências que dão conta das divergências entre o grupo de Viriato da Cruz e a Direcção do MPLA. E há a questão da altura em que surge o manifesto. Trata-se de uma questão que os documentos ajudam a esclarecer, embora já seja um assunto de certo modo ultrapassado."
A apresentacao esteve a cargo de Joao Melo, que o fez atraves do que entitulou "Um Retrato a preto-e-branco da Revolucao":
“A Revolução foi feita pelos revolucionários disponíveis”. Esta citação do grande e
inquieto – como convém aos intelectuais dignos da sua profunda vocação cívica, ou
seja, assumirem-se como a consciência crítica das suas sociedades e do seu tempo –
poeta e dramaturgo alemão Bertolt Brecht assaltou-me pela primeira vez quando li o
romance inaugural Mayombe, de Pepetela, lançado no distante ano de 1980.
A mesma ocorreu-me agora, mais uma vez, ao ler estes dois volumes dos documentos
de Lúcio Lara acerca do itinerário histórico do MPLA, que a Associação Tchiweka de
Documentação teve a gentileza de me convidar a apresentar e que eu agradeci de
imediato, talvez demasiado afoitamente, entre honrado, emocionado e amedrontado.
Afinal, apresentar uma obra deste vulto implica um grande sentido de responsabilidade, em especial se o apresentador, como eu, não é historiador.
Os documentos que compõem estes dois volumes revelam alguns dos principais
protagonistas da gesta nacionalista angolana em toda a sua dimensão, não só política,
mas também pessoal. Forças e fraquezas, ousadias e temores, misérias e grandezas –
tudo perpassa por esta enorme quantidade de documentos, que, sendo um retrato a pree-
branco original, ou seja, sem quaisquer retoques, da fase inicial da Revolução
Angolana, também podem ser lidos, se o quisermos, como uma espécie de “história do
quotidano” do nosso nacionalismo.
Os “revolucionarios disponíveis” que iniciaram a longa e difícil luta pela independência
de Angola estão todos aqui, em carne e osso, sem romantismos de qualquer espécie. O
retrato histórico de alguns pode ser, a partir de agora, mais objectivo, o que confirma
que os tabus e o “black out” informativo só ajudam a alimentar os mitos.
É o caso – vou dizê-lo – do Viriato da Cruz revolucionário (e não, ressalvo, do Viriato
da Cruz poeta), sobre quem foi lançado no mês passado um livro, cujo título remete
precisamente para a sua dimensão mítica. Esse retrato, como é evidente, não pode
esquecer as circunstâncias que envolviam as personagens, pelo que não pode continuar
a servir de pretexto para a tentativa de eliminar algumas delas da fotografia, como, para
usar o mesmo exemplo, o próprio Viriato.
Isso suscita a minha primeira sugestão. Creio ser chegada a hora da direcção actual do
MPLA, confortada pela larga vitória do mencionado partido nas últimas eleições,
resgatar o papel e a memória de algumas das suas figuras históricas, as quais, dentro dos
seus limites e circunstâncias, contribuíram para a sua própria formação e ajudaram a
configurar a feição que o transformou na única organização política verdadeiramente
nacional. Se o MPLA é hoje, mais do que um partido, uma cultura, uma mística e uma
marca, também o deve a figuras como Mário Pinto de Andrade, Viriato da Cruz, Matias
Miguéis e tantos outros.
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Afonso Van-Dúnem Mbinda, veterano do MPLA, afirmou a proposito:
Lúcio Lara encarnou o MPLA e deu a este país e ao MPLA o maior contributo que nós podemos imaginar. Era um caça bilhetinhos. Tudo quanto saísse nos congressos, nas reuniões, ele recolhia. Era um "caça bichinhos", como nós o chamávamos. Esse comportamento permite que hoje se possa lançar em livro tudo quanto guardou. O leitor encontra os fenómenos que aconteceram na vida de uma organização como é o MPLA, que tem vários tipos de pessoas, vários estratos sociais, desde o camponês, o operário, o estudante, toda esta amalgama de pessoas que constituem uma grande riqueza. São fenómenos que serviram de lição para que o MPLA reforçasse, na sua direcção, a coesão interna. Foi exactamente a falta de coesão interna naquela altura que levou à divisão no seio do MPLA. Mas o partido resolveu os seus problemas, continua forte e hoje é uma organização forte, coesa, solidaria. Vimos agora no resultado das eleições, porque no seio da direcção do MPLA tivemos em causa os interesses supremos do povo angolano.
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